Ditaduras do Cone Sul e a construção da memória pós-democratização: o que se tem em comum?
Atualizado: 2 de jul.
Durante as décadas de 1960 a 1980, parte dos países que ocupam o sul do continente americano foi marcada por experiências ditatoriais em que o Estado usava de meios autoritários para governar e manter a população sob seu comando. Neste texto, me detenho em abordar as experiências argentina, chilena e brasileira, evidenciando especificamente como estes países construíram suas políticas de memória acerca desse período, além de apontar as semelhanças e diferenças entre tais políticas.
A produção da memória a qual me refiro está ligada especificamente a políticas de memória criadas pelo Estado (BAUER, 2017). A forma como o Estado organizou esses acontecimentos após o fim dos regimes autoritários também influenciou como a própria sociedade compreendeu o que foram esses períodos. Tal compreensão ocorreu não apenas por aqueles que vivenciaram as ditaduras, mas também pelas gerações posteriores, que, por meio de certa memória oficial, construíram suas próprias percepções acerca da história dos regimes de exceção.
Os anos de 1976 a 1983 marcaram um contexto ditatorial na Argentina. Uma das formas para perpetrar esse Estado repressor foram os desaparecimentos forçados, utilizados como meio para evitar que a sociedade civil contestasse a ordem estabelecida. Movimentos de denúncia começaram a emergir ainda em 1983 por parte da imprensa, divulgando os crimes cometidos pelo Estado ao publicar sobre a exumação de desconhecidos, além de acusações de familiares dos desaparecidos (CRENZEL, 2008). Nas disputas de memória, os militares alegavam que estariam defendendo a pátria contra o terrorismo e a subversão.
O presidente que iniciou a retomada democrática na Argentina, Raúl Alfonsín, defendeu que não se podia esquecer o que foi feito durante o regime ditatorial. Todavia, ele também legitimava a ideia de não se vingar, algo que ensejou conflitos com organismos de direitos humanos que pediam a punição dos responsáveis pelas práticas arbitrárias do regime (CRENZEL, 2008). Essa foi uma postura adotada não somente pela Argentina, mas também pelo Brasil, que, após a ditadura (1964-1985), defendeu a ideia de não punir os crimes cometidos por agentes do Estado, além do esquecimento e silenciamento dessas ações. O Chile, depois de uma ditadura que terminou de maneira negociada, evitou igualmente a punição das práticas repressivas.
Por meio das demandas sociais, ainda em dezembro de 1983, foi criada na Argentina a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), à qual foi atribuído o dever de investigar os desaparecidos (não apenas militantes, mas crianças que sumiram por ação ou omissão do Estado), registrar denúncias e reportar à justiça. Esse trabalho deveria ser cumprido em um prazo de seis meses. A CONADEP tornou-se uma ferramenta importante para a construção de uma memória sobre o regime ditatorial argentino, pois possibilitou que se criassem mecanismos para produzir uma memória que não fosse a do esquecimento num momento em que o fim da ditadura ainda era recente.
A oposição do presidente Alfonsín em relação a punir os militares estava fundamentada no medo de criar um conflito com as Forças Armadas quando a democracia acabara de ser reinstaurada, ou seja, num período em que os militares ainda influenciavam os rumos e as decisões políticas.
La Comisión decidió llamar a la población a aportar denuncias concretas. Procure, decía su convocatória, que “la denuncia contenga datos objetivos evitando interpretaciones personales o subjetivas. Eleve, si los tiene, documentos que puedan servir como pruebas de su denuncia (CRENZEL, 2008, p. 66).
Os testemunhos e as provas de suas denúncias se tornaram documentos importantes de veracidade dos fatos para a CONADEP. Ainda existia a expectativa por parte dos familiares de que, através das investigações, pessoas presas de forma ilegal pudessem ser encontradas. Apesar de a CONADEP ter sido importante no processo de construção da memória ditatorial argentina, ela possuía limitações geradas pelas divergências entre os movimentos sociais que a apoiavam. As Madres de la Plaza de Mayo, por exemplo, criticavam o fato de os militares não serem obrigados a depor.
As críticas também vinham das Forças Armadas, que entendiam a comissão como um rechaço às ações cometidas por agentes do Estado. Segundo os militares, todos os seus próprios atos tinham como objetivo proteger a nação do terror e da subversão pretensamente representados pelas esquerdas. Ao final das investigações da CONADEP, o relatório conhecido como Nunca más apresentou o pedido dos familiares para que os nomes dos militares que cometeram crimes fossem divulgados. No dia 20 de setembro de 1984, num ato simbólico, o presidente Raúl Alfonsín recebeu o documento na presença de setenta mil pessoas na Plaza de Mayo.
O relatório possibilitou o reconhecimento dos crimes cometidos entre 1976 e 1983 pelas Forças Armadas. Sua publicação trouxe os desaparecidos para o centro da discussão, o que permitiu a condenação de cinco agentes militares, mesmo que, um ano mais tarde, a Ley del punto final tenha impedido novos julgamentos.
No Chile, foi criada a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliacón, que funcionou entre 1990 e 1991. Assim como a CONADEP, a comissão chilena buscou apurar os crimes cometidos e encontrar os desaparecidos forçadamente, mas, como seu próprio nome indicou, seu caráter era reconciliatório e não visava criar conflitos com as Forças Armadas ou culpá-las pelos crimes cometidos. Segundo Carroll Hiner (2009), não havia no Chile a intenção de compreender como ocorreram as torturas, pois a comissão entendia que as vítimas estavam todas mortas. Portanto, nessa perspectiva, seriam os familiares que iriam conceder os testemunhos.
Assim como no caso argentino, a comissão chilena foi criada no mesmo ano em que o regime autoritário terminou, mostrando que, embora ela já propusesse uma reconciliação, houve preocupação em lidar com a construção da memória daquele momento por parte do Estado. Em mensagem televisionada, Aylwin Azócar, primeiro presidente do regime democrático, mostrou os resultados obtidos pela comissão e, como representante do Estado, pediu perdão às vítimas (CARROL HINER, 2009).
Se compararmos a experiência chilena com a brasileira, é possível perceber grandes diferenças na construção de políticas de memória entre os dois países. No Brasil, não houve preocupação de se criar meios institucionais para que a sociedade tivesse conhecimento dos crimes cometidos pelo Estado. A nossa Comissão da Verdade (CNV) foi criada quase trinta anos após o fim da ditadura, mostrando a dificuldade que nosso país teve em reconhecer as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura. No Chile também não houve punições aos militares, como ocorreu, ainda que numa proporção bastante limitada, na Argentina.
De todo modo, não se pode desconsiderar que, no caso brasileiro, houve outros mecanismos de justiça transicional como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995, e a Comissão de Anistia, que passou a funcionar em 2002. Apenas em 2011, após longos embates, a presidenta Dilma Rousseff assinou a lei 12.528, determinando a fundação da CNV. Nesse contexto, houve intensas discussões a respeito dos limites do órgão. Enquanto grupos de defesa dos direitos humanos pediam a punição dos torturadores, o governo defendia uma postura de não enfretamento dos responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura. Considerar essas tensões é fundamental para se compreender o ambiente político em que a CNV foi criada, bem como o período em que executou suas atividades. Dito de outro modo, predominou a cultura da conciliação, tão presente ao longo da história brasileira.
Em discurso proferido em 16 de maio de 2012, no Palácio do Planalto, Rousseff afirmou que:
A Comissão da Verdade tem grande significado para o Brasil e para os brasileiros. O Congresso Nacional reconheceu isso, pois o projeto que hoje sancionamos foi apoiado por todos os partidos políticos com representação no Legislativo federal. Este apoio suprapartidário mostra que a Comissão significa, fundamentalmente, uma manifestação de respeito e um tributo aos que lutaram pela democracia no Brasil em qualquer época. [...] Isso lançará luzes sobre períodos da nossa história que a sociedade precisa e deve conhecer. São momentos difíceis que foram contados até hoje, ou, melhor dizendo, foram contados durante os acontecimentos sob um regime de censura, arbítrio e repressão, quando a própria liberdade de pensamento era proibida. [...] É fundamental que a população, sobretudo os jovens e as gerações futuras, conheçam nosso passado, principalmente o passado recente, quando muitas pessoas foram presas, foram torturadas e foram mortas. [...] Depois de passarem por períodos ditatoriais, vários países da América Latina tiveram suas comissões da verdade com nomes diferentes, com formas de atuação distintas. Houve experiências no Chile, na Argentina, no Peru, na África do Sul. Cada país fez do seu jeito e fez a seu tempo, segundo as suas próprias circunstâncias e sua própria história. O Brasil está fazendo agora. Este é o nosso momento histórico, esta é a nossa hora (BRASIL, apud NADER; PELEGRINE, 2011, p. 17).
As comissões tinham também como objetivo tentar impedir, através da produção de uma memória oficial estatal, que fatos parecidos com o regime ditatorial tornassem a ocorrer. Dilma Rousseff evidenciou e ainda justificou o tempo que o Brasil levou para criar a CNV. Assim como ocorreu nos demais países mencionados neste texto, a presidenta deixou claro que ela não estava disposta a desafiar as Forças Armadas e reforçou que o objetivo da CNV não era punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos. Mesmo passados tantos anos, havia (e ainda há) medo de colocar os militares na posição de criminosos, assassinos e torturadores.
Embora Argentina, Chile e Brasil tenham criado órgãos de justiça transicional, a forma como estes foram constituídos guardam muitas diferenças entre si. A maneira pela qual esses países decidiram atravessar seu passado ditatorial definiu, em larga medida, a produção da memória no futuro. O fato de no Brasil ter predominado a negação e o silenciamento sobre os crimes cometidos durante a ditadura influenciou a criação de uma memória social muito deturpada acerca desse contexto. Nesse sentido, há um abismo que separa memória e história quando nos referimos ao modo como grande parte da sociedade brasileira enxerga o último período ditatorial que vivenciamos.
Referências:
CARROLL HINER, Hillary. ¿El “nunca más” tiene género? Un estudio comparativo de los discursos de las comisiones de verdad en Chile y Argentina. XII Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia. Departamento de Historia, Facultad de Humanidades y Centro Regional Universitario Bariloche. Universidad Nacional del Comahue, San Carlos de Bariloche, 2009.
CRENZEL, Emilio. La historia política del Nunca Más: la memoria de las desapariciones em la Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008.
NADER, M. B; PELEGRINE, A. R. O. Memória traumática e direito à verdade: o legado da ditadura militar no Brasil. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, setembro-dezembro, 2020.
Como citar este artigo:
CARVALHO, Maria Aline S. Ditaduras do Cone Sul e a construção da memória pós-democratização: o que se tem em comum? História da Ditadura, 24 jun. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/ditaduras-do-cone-sul-e-a-constru%C3%A7%C3%A3o-da-mem%C3%B3ria-pos-democratizacao-o-que-se-tem-em-comum. Acesso em: [inserir data].
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