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Foto do escritorHistória da Ditadura

Do que permanece em suspenso – Resenha do livro “O espírito dos meus pais continua a sub

Atualizado: 12 de mai. de 2020

 

Em O espírito dos meus pais continua a subir na chuva, romance de Patricio Pron, um escritor retorna ao pampa argentino porque seu pai está morrendo. Ao revolver a biblioteca doméstica, ele encontra uma pasta com recortes de jornais sobre o desaparecimento recente de um morador da pequena cidade. Não demora muito para descobrir que a irmã da vítima fora raptada e assassinada em 1977 pelas forças oficiais da ditadura argentina. Esses rastros, que denotam um desejo investigativo do pai, são o material a partir do qual o narrador esboça um corpo com o qual seria capaz de entrar em contato, colocando a trama num registro espectral e detetivesco.

O texto de Pron aproxima-se de outros autores contemporâneos que colocam em jogo as experiências latino-americanas sob repressão militar –entre eles A resistência, Jamais o fogo nunca e Formas de voltar para casa, de Julián Fuks, Diamela Eltit e Alejandro Zambra, respectivamente. Portanto, O espírito dos meus pais continua a subir na chuva não se configura como um trabalho distensivo, que se quer documento ou monumento de uma memória, pois seu processamento acontece justamente num devir-especulativo:

A ficção especulativa […] inventa um universo diferente do conhecido, fundando-o a partir do zero. Também propõe outro modo de conhecimento. Não pretende ser verdadeira ou falsa; gira em torno do como se, imaginemos e suponhamos: na concepção de uma pura possibilidade. (LUDMER, 2013, p. 8)

Patricio Pron (Fonte: Editora Todavia)

Os pequenos grumos narrativos tramam um espaço que coloca em crise as noções de realidade, ficção, autor, leitor ou estilo. Nesta “realidade ficção” a que se refere Josefina Ludmer, torna-se pouco produtivo pensar em resgate do passado ou preenchimento de lacunas: o fracasso é o próprio procedimento de escrita. Seu espaço espectral é o que promove o encontro, desborda os meios e suspende a literatura a uma arena que mobiliza atravessamentos de sentido – ou seja,

o desenho de um espaço contíguo com o real cava dentro de si um lugar para o espectador, onde ele é confrontado com seu próprio descentramento; a indistinção entre realidade e ficção lança a especificidade da literatura para uma zona em que as elucubrações sobre ela valem mais pelo que dizem com respeito a questões existenciais ou conflitos sociais que habitam esse outro espaço […]. (GARRAMUÑO, 2014, p. 21)

Portanto, o romance de Pron traz à tona a ditadura militar argentina, mas não para recuperar uma memória – justamente porque não há o que ser recuperado. O investimento é no sentido de aproximar-se do pai e de esgarçar o presente a partir dos dispositivos que chegam do passado.

Quando eu era menino, tinha ordens de não trazer outras crianças para casa; quando andava sozinho pela rua, tinha que caminhar em sentido contrário ao trânsito e prestar atenção se algum carro parasse perto de mim. […] Essas regras, que naquele momento voltaram à minha memória pela primeira vez em muito tempo, tinham o objetivo de me proteger, de proteger meus pais, eu e meus irmãos em uma época de terror, e embora parecesse que meus pais já tinham se esquecido delas, eu não tinha – porque, quando me lembrei delas, pensei em algo que eu estava fazendo até mesmo na Alemanha: traçava caminhos imaginários para chegar ao meu destino, sempre andando em sentido contrário ao trânsito. (PRON, 2018, p. 130)

Se num primeiro momento o tom ensaístico de Pron parece falar de uma aproximação entre privado e público, o processamento do texto, ao se retroalimentar da falha, esboça um espaço onde essas noções são desestabilizadas. Não interessa tanto o que é interior e exterior, mas o que a performance dessa escritura espectral provoca politicamente, na medida em que produz intervenções no discurso ordenador e histórico.

O espírito dos meus pais continua a subir na chuva é um livro em que o procedimento formal e estético revela sua ética, seu desejo em intervir na arena pública – ainda que a partir da despersonalização do privado para produzir esse devir-especulativo a que podemos chamar de “realidade ficção”.

Rafael Gurgel é mestrando em Literatura e Cultura pela UFBA.

Referências

Florencia Garramuño. Frutos estranhos: da inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

Josefina Ludmer. Aqui América Latina: uma especulação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

Patricio Pron. O espírito dos meus pais continua a subir na chuva. São Paulo: Todavia, 2018.

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