Domingos da Guia e a arte da “domingada”
Atualizado: 19 de set. de 2022
“O interesse pelo futebol, em princípio, foi a necessidade. Pertenço a uma família pobre. Iniciei meus primeiros passos aqui mesmo em Bangu, trabalhando na fábrica, como mata-mosquito, no calçamento da Avenida Rio Branco, até que surgiu a oportunidade no futebol”.
Domingos da Guia
A busca por recordes é uma das principais características dos esportes modernos. O louro de um campeão mundial, o feito inédito de uma equipe e tantos outros exemplos que o leitor pode vir a preferir são partes fundamentais que explicam o sucesso dos esportes ao longo dos séculos. Essas questões têm por base o uso do corpo por homens e mulheres. Por isso, é necessário nos atentarmos à especialização e racionalização dos corpos. Apesar disso, existem outras dimensões que podem ser extraídas a partir de técnicas corporais que marcam época ao complexificar o lúdico por meio do novo, do original. Domingos da Guia (1912-2000), apelidado de Divino, foi desses agentes históricos que brilhou em campeonatos locais, regionais, nacionais e internacionais. Neste texto, tratarei de um personagem pouco evocado nos dias de hoje, mas que, certamente, está entre os melhores jogadores de seu tempo.
As conquistas espetaculares de Domingos da Guia, um jogador negro, operário e natural do subúrbio de Bangu, no Rio de Janeiro, só podem ser compreendidas em sua totalidade quando olhamos em comparação a práticas lúdicas de outros indivíduos. A popular “Domingada”, que, por muitos, era vista como mais do que a mera antevisão de uma jogada, se equiparava a uma dança, um drible moderníssimo. Assim, não pode ser descolada das adversidades do corpo negro em um país que passou por séculos de escravidão.
O zagueiro Domingos, ao invés de fazer o tradicional “chutão”, conduzia a bola, driblando os adversários com habilidade. Tal performance fez do jogador um ser cosmopolita, com ritmo e jeito próprios de jogar futebol. E foi assim, de certa forma, que ele se firmou enquanto imortal e essencialmente moderno. Domingos e outros jogadores populares, como veremos, se aproveitaram de espaços livres de dentro de uma estrutura social que passava por intensos momentos de transformação.
A urbanização, a industrialização e a modernidade são conceitos que circundam o universo dos que pesquisam o futebol no século XIX e XX. Complementarmente, nos últimos anos, têm surgido em maior número estudos críticos acerca do controle social na história dos esportes. Mesmo que esta seja uma movimentação ainda pequena, não seria surpresa se o número de pesquisas aumentasse cada vez mais, dada as tendências recentes dentro da profissão histórica em se atentar às questões de gênero e raça. Hoje, a historiografia brasileira tem mais clareza das formas como os indivíduos experimentavam o tempo moderno. A mudança deste cenário veio em um misto de estudo sobre Cultura e Sociedade e a possibilidade de diálogo com outras disciplinas. De toda forma, os historiadores que desejam estudar o futebol precisam refletir a modernização. Uma das ferramentas metodológicas para isso, segundo Nestor Canclini (1997), seria desconstruir o conceito epistemologicamente e permitir que as fontes se articulem para que coloquemos outras formas de modernidades.
No Brasil, entre 1894 e 1920, segundo Joel Rufino dos Santos (1981), só jogava futebol quem era “inglês, grã-fino e branco”. Essa mentalidade burguesa foi, até pouco tempo atrás, amplamente reproduzida mesmo pelas Ciências Humanas. Hoje, podemos levantar a hipótese de que as colônias britânicas e as elites foram extremamente bem-sucedidas nos registros dos muitos acontecimentos esportivos que surgiram na capital. De toda forma, isso não nos permite concluir que negros, indígenas e mulheres não praticavam futebol ou outros jogos com bola. Ainda assim, essa comunicação letrada entre as elites e os estrangeiros consolida, para além de uma extensa rede de trocas de informações, a adoção de formas associativas que monopolizam as narrativas e segregaram a sociedade entre os que podiam e os que não podiam praticar o foot-ball.
O Cone Sul, vale recordar, sofreu políticas estatais de branqueamento, com chancelas de teorias pseudocientíficas de sua época. Algumas, como no caso da Argentina, obtiveram êxito. A criação da raça, pelos europeus, é uma das bases da modernidade ocidental e é, ainda hoje, um dos principais problemas sociais que se refletem no futebol. Pelas bandas de Buenos Aires e zonas mais distantes, os descendentes de africanos escravizados foram completamente apagados da história oficial e, aos poucos, vêm sendo recuperados por historiadores e comunidades negras. No outro país do Prata, o Uruguai, embora a prática do football seja anterior ao Brasil, é só em 1908 que entra na cancha o primeiro jogador negro, Federico Arrieta, atuando pelo Intrépido. Aliás, na América Latina, mesmo que em tempo descompassado, a prática do futebol, de início, ficou restrita aos imigrantes e à elite local.
Ainda escrevendo sobre o Uruguai, o Nacional, equipe tradicional do país, incorporou em seus quadros no ano de 1911, os jogadores negros Antonio Ascunzi e, em 1912, José Maria Viamont. Com essas duas contratações, alguns sócios saíram do clube. Esse movimento de rompimento com a sede social só ocorreu devido à chegada de novos cracks. O Peñarol, grande rival do Nacional, refundado em 1913, só contaria com jogadores negros em 1916, com Isabelino Grádin e, em 1917, com Juan Delgado. Ambos os jogadores atuaram pela seleção uruguaia no sul-americano de 1916. E foi nessa competição que o Chile pediria a retirada de pontos do Uruguai por escalar “jogadores africanos”, como sustenta Alabarces (2018).
No Brasil, bem longe do centro metropolitano, em Bangu, local de pertencimento da família de Domingos da Guia, o bairro sofreu intensas transformações ao longo do século XIX e início do século XX. Das antigas fazendas de açúcar, imigrantes fundaram a Fábrica Progresso Industrial do Brasil, com capital português e mão de obra especializada da Europa – principalmente britânica e italiana. Além da fábrica, fundaram uma vila operária que necessitava de espaços e de espaços de lazer – seja dançante ou esportivo. Por isso, britânicos como Thomas Donohoe, William French, Thomas Hellowell, Andrew Procter, William Procter e outros fundaram então o The Bangu Athletic Club. Não tardou a serem fundadas a Sociedade Musical Progresso de Bangu, que foi transformada no famoso Cassino Bangu, Igrejas e sociedades carnavalescas como a Flor da União e a Flor da Lira.
Os novos usos do espaço urbano, junto do aumento demográfico e de outras mudanças populacionais, possibilitaram modificações dentro da estrutura social. Em 1905, o Bangu Atlético Clube já contava com o jogador negro Francisco Carregal e, em 1906, contaria em seus quadros com o goleiro negro Manuel Maia. Os historiadores Leonardo Pereira (2020) e Nei Jorge dos Santos Junior (2014) destacam a possibilidade da experiência, do contato e da realização do corpo negro em uma sociedade que os reprimia, domesticava, controlava, expulsava e, ao mesmo tempo, absorvia certos aspectos da cultura popular que depois se tornariam baluartes da identidade brasileira. Por isso, precisamos entender esse processo de formação de comunidades e subcomunidades a partir de suas contradições e das diferentes formas de comportamento. Nessa perspectiva, o lazer é uma valorosa lupa de análise social.
Domingos Antônio da Guia, filho de Antônio e Maria Ramos da Guia, experimentou a ideia moderna da prática esportiva do futebol, bem longe do controle obsessivo das elites. Foi perto da Igreja, na rua, que o pequeno Domingos deu seus primeiros “pontapés”. O nosso personagem fez do seu primeiro time de rua, o Júlio Cezar, um meio de se afirmar enquanto indivíduo do mundo. “Afinal, uma novidade circulava pelas redes internacionais” (MASCARENHAS, 2014, p. 34).
“O meu mundo é Bangu...é onde meu espírito fica tranquilo”, afirmou Domingos da Guia em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS). O local, ou o espaço, é tão importante quanto a trajetória ou a análise meramente futebolística dos acontecimentos do passado. Aliás, é no encontro entre o local, o global e a biografia do indivíduo intelectual da bola que se torna possível compreender os efeitos da razão capitalista que racializa, normaliza conhecimentos e massifica as comunicações por meio da imprensa. E é aí, também, que se inicia o processo de desumanização do corpo negro, o codificando em mitos, divindades e elementos sobrenaturais. Talvez, o motivo deste texto seja um convite a discutir e rever os pressupostos e as memórias consolidadas, “driblando” os olhares coloniais das elites e buscando no cotidiano, a partir dos corpos racializados, outras formas de linguagens e de expressões em múltiplas esferas.
Diferente de muitos de sua época, Domingos da Guia não caiu no esquecimento. Sua expressão corporal, o respeito ao adversário, a imposição dentro de campo e sua técnica deixaram marcas como esta: “todos nós sabemos o que é uma domingada”. O famoso drible de Domingos consistia em matar a bola e sair driblando com notória habilidade os seus rivais. “Gênio”, escreveram muitos. O maior “center-half”, “back” ou zagueiro de todos os tempos, afirmaram outros. Ao flutuar entre a memória do passado futebolístico a partir de um trabalhador popular, logo veio à mente a cozinheira Lisa, personagem fenomenal do livro de Isaias Pessotti (1993), Aqueles cães malditos de Arquelau.
Tanto Domingos da Guia quanto Lisa são criadores de algo original. Lisa levava os clientes ao delírio com sua receita de “faisão alabastro”. Tal receita teria sido desenvolvida a partir de métodos próprios e nada “científicos”. Domingos mobilizou emoções dos torcedores e da imprensa especializada enquanto esteve em campo produzindo a “domingada”, que tem suas raízes no futebol de rua.
O objetivo de Isaias Pessotti (1993), ao apresentar a personagem Lisa, era mostrar que existem sabores muito além do sabor. Lisa não criou a receita de faisão. Ela a aperfeiçoou a partir de sua própria experiência. Esticando um pouco mais a corda, explora-se os limites da interdisciplinaridade e se esbarra nos limites criados pela própria racionalidade liberal (considerada a moderna). A personagem tenta, na medida do possível, superá-la como fez Domingos e tantos outros.
No local em que o jovem Domingos jogava, nenhuma grama crescia. Da bola de meia, para a bola de borracha desproporcional e dura, até a camisa emprestada pelo Esperança, um time de camisa verde, também de Bangu, que foi fundado em 1905 e durou até 1940. Experimentou a liberdade e, mais do que isso, o “ser dono” de seu destino. Afinal, antes de atuar profissionalmente no primeiro quadro do Bangu A.C, Domingos da Guia havia sido dono de seu próprio time – o Júlio Cezar. Dessas coisas que só o fazer história tem.
No ano de 1929, Domingos da Guia já figurava no time de amadores do Bangu A.C. Aliás, foi nesse mesmo ano que os quatro irmãos (Luiz Antonio, Médio, Ladislau e Domingos) atuaram juntos em um amistoso contra o São Cristóvão. No ano seguinte, Luiz Antônio, um dos diretores do clube do Bangu, ficou sem zagueiro para o campeonato carioca, e recorreu ao “magrinho, muito fino” Domingos da Guia para a posição. Dali em diante, o mais novo dos da Guia não saiu mais do time – até 1932, quando trocou o Bangu A.C para ser estagiário no Vasco da Gama. Na época, havia a Lei do Estágio que visava moralizar o futebol amador e evitar o “troca-troca” dos jogadores. Domingos da Guia não conta, mas segundo as manchetes, o jogador trabalhava como “polícia especial” nesse período em que mudou de time.
Nosso personagem só atuaria pelo quadro profissional do Vasco da Gama em 1934, pois em 1933 – ano do primeiro campeonato de futebol profissional no Brasil, do qual, aliás, o Bangu A.C seria campeão – ele aceitou uma proposta do Nacional do Uruguai.
Naquele momento, desfilava pelos campos de Montevidéu e adjacências, José Leandro Andrade, “a maravilha negra”. A primeira grande figura afrodescendente do futebol latino-americano. Alabarces (2018) escreve que Andrade estreou em 1921 pelo Bella Vista e, em 1924 e 1928, jogou os jogos olímpicos de Paris e Amsterdã. Esteve em campo em todas as partidas da primeira Copa do Mundo de futebol, no Uruguai. O Uruguai ou a celeste olímpica assombrou a Europa com seu futebol. É neste cenário que Domingos da Guia trocou o “bicho” e a incerteza do futebol amador pelos valores milionários do profissionalismo do Prata. Nas palavras do próprio: “Assim sendo, poderei vestir a camisa de profissionais, sem me julgar, por isso, na obrigação de ficar constrangido”.
Domingos da Guia foi o homem que encheu de “espectativas o football uruguayo”. Na crônica A Copa de 30, o escritor Eduardo Galeano escreve que o Uruguai era o grande centro do futebol. Pode-se encontrar na imprensa brasileira algumas referências a Montevidéu como a meca do futebol mundial. Rivalidade entre nações à parte, o Brasil havia conquistado duas Copa Rio Branco – amistosos entre Brasil e Uruguai – seguidamente em 1931 e 1932.
Em 1931, o amistoso ocorreu no histórico estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O Brasil ganhou de 2x0 com dois gols de Nilo. A segunda edição da Copa ocorreu no ano de 1932 no estádio Centenário, em Montevidéu. Mais uma vitória da seleção brasileira. Dessa vez com dois gols de Leônidas da Silva e os donos da casa marcaram uma vez com Juan José Garcia. Nos dois jogos, o zagueiro de origem banguense esteve em campo. O Uruguai, assim como grande parte dos países que adotaram o profissionalismo, passava por certa instabilidade. Vários de seus cracks estavam partindo para a Itália fascista de Mussolini, outros chegavam, como o caso do ex-Boavista Leônidas da Silva, ao Peñarol.
A imprensa uruguaia tratava os dois craques brasileiros como pessoas de sorte, mas isso durou até 12 de junho de 1933, quando críticos, técnicos e jornalistas “platinos” se converteram à arte de Domingos da Guia. “Diz a imprensa do Prata que quando faz uma jogada provoca tal enthusiasmo que até a torre do stadium parece vir abaixo”. O encanto era tanto que desejavam “baptisar de uruguayos os nossos homens”. “Tira a carta de cidadania!”, escreveram.
Além do exposto acima, os cronistas uruguaios deixaram o seguinte registro: “Por que Domingos é a depuração exacta de defesa. Por que e uma lança onde se enfiam todos os elogios que a palavra escripta pode tributar a um footballer – e ainda fica curto o idioma!” em um momento em que eles produziam e tinham os melhores jogadores.
O fazer história por meio do futebol é ir além do campo esportivo como escreveu Victor Figols, em sua coluna para o site História da Ditadura. Tentar identificar as matrizes futebolísticas (Damo, 2006) e se atentar aos silenciamentos e os esquecidos não é uma tarefa fácil. Talvez não seja o caso de Domingos da Guia, pois tem resquício do passado. Com o tempo passamos a entender que a história é uma fonte de poder. E a fonte é um poder para a História. Existem muitos outros jogadores de futebol negros amadores ou profissionais que merecem ter visibilidade, assim como as mulheres que praticavam o futebol. São sujeitos e necessitam de suas vozes para que tenhamos consciência de suas visões do processo social. Isto independe de como se expressa ou dos êxitos esportivos. O importante é se atentar às marcas do passado. Que a arte da “Domingada” não seja um fim em si mesmo, mas um horizonte a ser explorado. Por fim, como deixou por escrito o original mendigo do bom futebol, Eduardo Galeano: “A Leste, a Muralha da China. A oeste, Domingos da Guia”.
Créditos da imagem destacada: Mundo Sportivo, 28.mar.1947. Reprodução.
MORAES, Mario de. Futebol é arte parte II. Rio de Jameiro, MIS Editorial, FAPERJ, 2002.
MORAES, Mario de. Futebol é arte parte II. Rio de Jameiro, MIS Editorial, FAPERJ, 2002.
Ver: Última Hora, 4 de abril de 1957, p. 3.
Ver: Jornal dos Sports, 14 de novembro de 1932, p. 8.
Ver: Jornal dos Sports, 14 de março de 1933, p. 8.
Ver: GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: LP&M, 2012. p.240.
Ver: Jornal dos Sports, 28 de novembro de 1932, p. 8.
Ver: O Globo, 12 de junho de 1933, p. 2.
Idem.
Ver: O Globo, 12 de junho de 1933, p. 2.
Bibliografia:
ALABARCES, Pablo. Historia mínima del fútbol en América Latina / Pedro Alabarces -- 1a. ed. -- Ciudad de México, México : El Colegio de México, 2018 269 p.
CANCLINI, Nestor. Culturas Hibridas. São Paulo: Edusp, 1997.
DAMO, Arlei. Senso de jogo. Esporte e Sociedade, número 1, Nov 2005/ Fev 2006. http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/
DOS SANTOS JUNIOR, Nei Jorge. A construção do sentimento local: o futebol nos arrabaldes de Bangu e Andaraí (1914-1923). Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2014.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: LP&M, 2012.
MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.
MORAES, Mario de. Futebol é arte parte II. Rio de Jameiro, MIS Editorial, FAPERJ, 2002.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881 – 1933). Campinas. SP. Editora Unicamp; Rio de Janeiro. RJ: EdUERJ, 2020.
SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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