Elizabeth nos tristes trópicos da ditadura
Nessa semana, faleceu Elizabeth II, rainha do Reino Unido e soberana da Commonwealth britânica, aos noventa e seis anos. Ela reinou por setenta anos, sendo assim a monarca com o reinado mais longo da história da monarquia britânica – sete anos a mais que Vitória, a grande rainha do imperialismo.
Mestra da diplomacia, Elizabeth II é um marco em si mesma. Ela conseguiu manter a Inglaterra relevante em períodos turbulentos: da crise generalizada da reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial até as invasões mais recentes no Afeganistão e no Iraque, passando pela Guerra Fria e pela independência de diversas antigas colônias inglesas ao redor do globo. Elizabeth soube navegar pelas águas turbulentas da política externa, pelas mudanças políticas e pelas oscilações sociais internas como poucos. Do Estado de bem-estar social dos anos 1950-60 (que apoiava ferrenhamente), passando pelo neoliberalismo dos anos 1980-90, até os sistemas financeiristas atuais. Que uma única personagem tenha conseguido se adaptar e se manter no poder frente a todas essas mudanças é prova do poder estratégico e adaptativo da mística que parece ainda cercar as (poucas) instituições monárquicas existentes.
Antes de mais nada, Elizabeth representava e era leal à sua dinastia: a Casa de Windsor. Tal nome foi criado em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial contra os alemães, para renomear a dinastia chamada originalmente Saxe-Coburg und Gotha, de origem germânica. Como chefe de Estado, ela esteve à frente de uma das maiores potências mundiais.
A diminuição da área de influência do Império Britânico é outra característica do turbulento reinado de Elizabeth. Turbulento, pois, ainda que tenhamos cristalizada a imagem da senhora grisalha, pacífica e maternal, a representação da avó com a qual soube jogar muito bem. Seu reinado, por ser tão longo, testemunhou a independência das colônias britânicas na África e na Ásia, algumas de maneira sangrenta, outras de maneira negociada. Elizabeth foi a monarca que esteve no timão no momento do ocaso do antigo Império no qual o sol nunca se punha, sendo a representação final personificada do poder britânico. Com efeito, Elizabeth esteve sempre em consonância com o valor central da monarquia inglesa: a adaptabilidade. Nenhuma outra instituição monárquica soube se adaptar às mudanças dos tempos como a inglesa, e Elizabeth foi a última a levar a cabo essa tarefa, em uma longa lista de monarcas de duas dinastias diferentes desde a restauração da monarquia em 1668. Visita real ao Brasil, novembro de 1968
Quanto ao Brasil, a relação de Elizabeth foi a das mais cordiais – mais até do que gostaríamos. A falecida monarca parecia não ter problemas com um sanguinário regime militar, desde que este mantivesse a temida sombra do comunismo distante da América Latina. O governo britânico, nos anos 1960, buscava estreitar laços com o Brasil e outros países latinos, na onda da manutenção do status quo da Guerra Fria. Valia a realpolitik das potências capitalistas. A rainha, obviamente, desempenhou um papel no teatro das representações das relações diplomáticas. No dia 1 de novembro de 1968, conforme noticiado pela Folha de São Paulo e pelo Jornal O Globo, (que acompanharam passo a passo a visita a pedido do Itamaraty), ela e o marido, o Príncipe Consorte Philip, desembarcaram no Recife para uma visita diplomática de dez dias. Réplicas das joias da Coroa Britânica haviam chegado ao Brasil semanas antes e estavam em exposição em Brasília e no Teatro Municipal de São Paulo. Entre as réplicas exibidas destacavam-se o cetro real com o diamante Grande Estrela da África (Cullinan I), de quinhentos e trinta quilates, e a Coroa Imperial com o Pequena Estrela da África (Cullinan II), de trezentos e dezessete quilates. Ambos, oriundos de uma mina inglesa na África do Sul (colônia britânica até 1910), são considerados um dos maiores e mais puros diamantes do mundo.
Elizabeth desembarcou de seu avião da Força Aérea Real inglesa vestida nas cores da bandeira brasileira, sendo recebida pelo embaixador britânico e conduzida para o iate Britannia, que a levaria para Salvador. Ficou na capital baiana por apenas quatro horas, de onde foi para o Rio de Janeiro e, em seguida, para Brasília. O trajeto Recife-Salvador-Rio de Janeiro-Brasília-São Paulo-Rio de Janeiro havia sido cuidadosamente estudado pelos serviços de inteligência de ambos os países e levava em conta questões de segurança misturadas com questões diplomáticas. Era importante que a rainha e seu marido fossem vistos pela população brasileira e fossem fotografados pelos veículos de imprensa nacionais e internacionais, mas havia o temor de que algum incidente relacionado com o estado policial de repressão ocorresse. Forças do Exército brasileiro foram mobilizadas para fazer a segurança ao lado dos guardas pessoais do serviço de inteligência britânico. O iate Britannia foi escoltado por quatro navios de defesa brasileiros, ao lado da escolta oficial de duas fragatas de guerra inglesas. A bandeira brasileira foi hasteada ao lado da bandeira do Reino Unido no iate.
O Correio Braziliense noticiou a chegada de Elizabeth e seu marido na capital no dia 8 de novembro. Ao desembarcar no Aeroporto Militar de Brasília, o casal foi recebido pelo general Artur da Costa e Silva, pela primeira-dama Yolanda Costa e Silva, pelo Ministro das Relações Exteriores, deputado José de Magalhães Pinto, e pelos chefes dos gabinetes civil e militar da Presidência da República. Após a execução dos hinos nacionais da Inglaterra e do Brasil pela Banda da Aeronáutica, no Campo de Marte, sob 32 graus e com umidade baixíssima, Elizabeth e o marido passaram em revista a tropa montada em seu nome, constituída de destacamentos especiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Devido ao calor, o casal foi levado em carro fechado, seguido de grande cortejo, à suíte presidencial do Hotel Nacional, no centro de Brasília. Em seguida, no fim da tarde, foi recebida no Palácio da Alvorada e visitaram o Superior Tribunal Federal (reunido em sessão solene especial), o Itamaraty e o Congresso Nacional.
Discursando no palanque central do Congresso para os poucos parlamentares ainda em atuação e sendo filmada para o Cine Jornal Informativo da Agência Nacional (controlada pelo regime militar), Elizabeth disse estar emocionada com a generosidade do povo brasileiro, exaltou os conceitos da liberdade e da tolerância, enaltecendo o Parlamento “como representante e meio para que os cidadãos influenciem o governo e a maneira pela qual são governados”. Em seguida, elogiou o Poder Legislativo, sublinhando a grandeza territorial do Brasil, as diversidades regionais, étnicas e econômicas, chamando a atenção para “a pesada tarefa [do Congresso brasileiro] de criar unidade na diversidade”. Afirmou estar impressionada com o patriotismo e a unidade do povo brasileiro “como uma profunda fonte de força”. Seguindo a longa e longeva tradição da suposta democracia racial brasileira, Elizabeth elogiou o Brasil como exemplo mundial de que “povos de inúmeras raças podem trabalhar juntos na busca por objetivos comuns”. Em seguida, exaltou a tradição liberal e democrática junto com a “profunda humanidade de seu povo” como sendo capazes de dar uma notável contribuição para as bases de civilidade na qual todas as nações devem viver.
No discurso, belamente escrito na envolvente e polida tradição diplomática, ficou de fora que o Brasil não era mais nem uma democracia e nem prezava pelos “nobres ideais de civilidade e representação de seu povo”. Os objetivos comuns da nação, laureados por Elizabeth II em seu discurso, há quatro anos haviam sido sequestrados pelo brutal golpe militar. A rainha certamente estava ciente de que o Brasil vivia sob a bota dos militares, que os partidos políticos haviam sido abolidos e seus membros, perseguidos. A democracia e a representação nacional no Legislativo eram apenas fachada. Difícil imaginar que a Rainha do Reino Unido e da Commonwealth Britânica, com todo o serviço de inteligência e de diplomacia ao seu dispor e em viagem diplomática rigorosamente planejada, não tivesse conhecimento desse fato. Mais uma vez imperou a realpolitik da diplomacia das nações dominantes em busca da manutenção de suas zonas de influência.
Para o repórter da Agência Nacional, Elizabeth afirmou, ao sair do Congresso, estar encantada com a capital, “em especial a ideia, traduzida na mais ousada e bela das arquiteturas, de se construir uma capital em torno dos três poderes fundamentais do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário”.
Após o discurso, Elizabeth e o marido se instalaram no Palácio da Alvorada e se prepararam para um jantar de gala com a família Costa e Silva, o alto oficialato das Forças Armadas Brasileiras e mais de quatro mil convidados. Antes do jantar, Costa e Silva e Elizabeth conversaram sozinhos e de maneira informal, trocando presentes e condecorações. Ela foi condecorada com o Grande Colar da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul; em retorno, agraciou Costa e Silva com a Most Honourable Order of the Bath.
Após a visita oficial à capital, a turnê seguiu para São Paulo, aonde chegou no dia 6 de novembro. Na capital paulista, o casal visitou o Monumento do Ipiranga e o Terraço Itália. Ainda durante o dia, passaram de conversível pelo Vale do Anhangabaú e seguiram pela Avenida 9 de Julho. No dia seguinte, Elizabeth e Philip participaram da inauguração do novo prédio do Museu de Arte de São Paulo (MASP), desenhado por Lina Bo Bardi, na Avenida Paulista, ao lado do prefeito Faria Lima e do governador Abreu Sodré. Em ato solene, ela descobriu a pedra de inauguração do prédio no vão central, sendo guiada em seguida pelo diretor do Museu pelas galerias recém-instaladas. A pedra com o nome e a assinatura de Elizabeth ainda se encontra no vão central do MASP.
De São Paulo, partiram para Campinas, onde visitaram uma fazenda experimental de preservação e cuidado de animais ameaçados de extinção. De maneira inusitada, o estabelecimento deu de presente para a rainha duas onças e duas preguiças, que foram despachadas de avião para o Zoológico de Londres.
De Campinas voltaram para o Rio de Janeiro. O dia 9 de novembro, um sábado, foi recheado de atividades. O casal conheceu pontos turísticos da cidade, como a Praia de Botafogo, o Mirante Dona Marta e o Outeiro da Glória. Circulou em carro aberto, seguido de cortejo de milhares de cariocas curiosos, por Copacabana, Ipanema, Lagoa, Laranjeiras e Catete. Houve ainda um almoço para duzentos convidados com o governador Negrão de Lima no Museu de Arte Moderna (MAM). Da Zona Sul, partiu para o centro da cidade, onde desvelou a pedra fundamental da construção da Ponte Rio-Niterói, cujo nome oficial é Ponte Presidente Costa e Silva, o mesmo ditador que visitou em Brasília. O trajeto passava em frente à Prefeitura, na região hoje conhecida como Cidade Nova. O prédio da Prefeitura do Rio de Janeiro era – e ainda é – conhecido como “Piranhão”, devido à zona de prostituição em seu entorno, composta por cinquenta e quatro casebres e barracos num terreno de aproximadamente 6.000 metros quadrados. Para evitar que o casal real visse a zona da prostituição, a Prefeitura cobriu o prédio e seu entorno com tapumes decorados com desenhos das praias cariocas. À noite, o casal real assistiu a um pequeno desfile de samba da Estação Primeira de Mangueira na Embaixada do Reino Unido, em Botafogo.
A visita real terminou no domingo, com uma partida amistosa entre as seleções do Rio de Janeiro e de São Paulo no estádio do Maracanã. A rainha assistiu ao jogo da tribuna de honra do estádio com o marido e políticos brasileiros. Após a partida, o casal conheceu Pelé – que recebeu a taça da vitória das mãos de Elizabeth – e outros jogadores célebres como Carlos Alberto, Gerson, Rivellino e Jairzinho. O dia terminou com um jantar privado no iate Britannia, no qual compareceram o prefeito e o governador do Rio de Janeiro e a alta oficialidade da Marinha Mercante Brasileira.
A rainha e o príncipe encerraram a visita no Aeroporto do Galeão, sendo conduzidos pelo marechal Costa e Silva. Ao embarcar no avião, depois dos hinos do Reino Unido e do Brasil, Elizabeth II deixava para trás um país que há quatro anos vivia uma violenta ditadura militar. Do Galeão, o casal real foi para o Chile em convulsão social com o fortalecimento da direita sob Eduardo Frei Montalva.
Apesar do clima amistoso exibido pelo teatro diplomático conjunto entre Brasil e Reino Unido e materializado na visita da monarca, o país vivia dias duros. A repressão política aumentou paulatinamente e se tornou cada vez mais violenta e generalizada. A sombra das prisões e da tortura rondava o país. Pouco mais de um mês depois, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi outorgado pela ditadura militar que a rainha visitou e elogiou. Com o decreto, o poder do Executivo aumentava ainda mais, com a possibilidade de suspender os direitos civis e políticos de qualquer cidadão. O mesmo Congresso em que discursou foi fechado; o STF que visitou foi monitorado de maneira rígida; o povo que achou tão generoso e patriótico, teve seus direitos civis básicos retirados. Era a apoteose do Poder Executivo, com armas, perseguições, prisões e tortura, sobre os outros dois poderes.
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