A Lei da Anistia e a transição em disputa
Atualizado: 20 de jan. de 2022
A perenidade do saudosismo da Ditadura no Brasil da Nova República
O saudosismo da ditadura, alimentado tanto pelo negacionismo quanto pela apologia aberta ao regime, é constantemente propalado pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, e por membros de seu governo. No último dia 6 de maio, o presidente recebeu no Palácio do Planalto o tenente-coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o “Major Curió”, um dos responsáveis pelo assassinato e desaparecimento de militantes políticos da Guerrilha do Araguaia. O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, em 2010, que trata justamente das violações aos direitos humanos cometidas pela ditadura no âmbito dessa guerrilha. Como resposta à referida condenação, uma das ações do governo brasileiro foi a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em novembro de 2011.
Da mesma maneira, não se pode dizer que sejam recentes, na Nova República, os casos de declarações de exaltação ao regime ditatorial iniciado em 1964. Em 2004, uma crise do então ministro da Defesa do governo Lula, José de Viegas, com os militares que publicaram elogios ao regime culminou em seu pedido de demissão. Outro exemplo elucidativo é de que, apenas a partir de 2011, a data de 31 de março, que marca o início do movimento golpista, foi retirada do calendário de comemorações do Exército. Todavia, o evento continuou a ser relembrado e festejado nos círculos dos clubes militares.
O próprio Jair Bolsonaro foi eleito por sete mandatos consecutivos para o cargo de deputado federal, exercido entre 1991 e 2019, utilizando-se de um discurso de defesa da ditadura e de combate aos direitos humanos. Notabilizou-se por elogiar reconhecidos torturadores, a quem chama de heróis, como é o caso de Carlos Alberto Brilhante Ustra, homenageado por Bolsonaro em seu voto favorável ao impeachment de Dilma Roussef, em 2016. Ustra, já falecido, foi julgado e condenado na esfera cível, em 2012, pela prática de sequestro e tortura contra opositores do regime, quando chefiava o DOI-CODI de São Paulo, durante a ditadura. Contudo, em 2018, o Tribunal de Justiça barrou sua condenação com a justificativa de prescrição dos fatos ocorridos.
A partir da última década, foi nítida a escalada de discursos saudosistas em relação à ditadura, inclusive com pedidos de volta do Ato Institucional n. 5, permeados por negacionismo e apologia das violações aos direitos humanos ocorridas nos 21 anos de ditadura. Em 2015, no início das manifestações contra o governo Dilma, em São Paulo, discursou em um dos carros de som o ex-delegado de polícia Carlos Alberto Augusto, também conhecido como “Carlinhos Metralha”, que é acusado de estar envolvido em torturas e desaparecimentos forçados quando atuava pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), sendo recebido por grande parte dos manifestantes como “celebridade”.
Quando, em 2019, o atual presidente incitou as Forças Armadas a voltarem a relembrar festivamente a data do golpe civil-militar de 1964, o que se viu foram manifestações, principalmente em capitais, contrárias e favoráveis ao regime ditatorial. Apesar da observação da imprensa de que os manifestantes contrários à ditadura estavam em maior número, a simples existência dessa dicotomia revela que não há no país um consenso sobre o que foi a ditadura e quais suas consequências para o país.
No âmbito jurídico, há também um confuso entendimento sobre as violações aos direitos humanos que ocorreram no período. Diversas acusações contra agentes do Estado empreendidas pelo Ministério Público Federal foram recorrentemente rechaçadas pelas cortes superiores. O argumento utilizado é o da prescrição das violações ou do entendimento de que a Lei da Anistia beneficia também os agentes mandantes e executores de graves violações de direitos humanos durante a ditadura. Contudo, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que reconhecem a impossibilidade de anistia e a imprescritibilidade no que se refere a crimes de lesa humanidade.
O período da Transição e a Lei da Anistia
Inúmeras explicações, a partir de diversos pontos de vista, podem sugerir respostas para o imbróglio apontado anteriormente. Em se tratando desta coluna, investigarei as raízes desse dissenso no processo de transição política do regime ditatorial para a democracia liberal, entre 1974 e 1988. Utilizarei ferramentas historiográficas que auxiliem a elucidação das contradições existentes nesse processo histórico. Esse espaço de tempo compreende o início do governo do general Ernesto Geisel e culmina na promulgação da Constituição de 1988, que restabeleceu o Estado democrático no país. Nos textos que serão publicados bimestralmente aqui, tratarei dessa transição política, repleta de momentos importantes que são, ao mesmo tempo, singulares e contraditórios, e podem apontar indícios das origens do dissenso atual.
Esta primeira coluna é baseada em uma reflexão a respeito do que significou a assinatura da Lei n. 6.683 de 28 de agosto de 1979, também conhecida como Lei da Anistia. Dentre outras determinações, a lei isentou os agentes do Estado de punição pelos seus atos, a partir de uma interpretação do conceito de crimes conexos[1]. Assim, se instituiu o que ficou genericamente conhecido como uma anistia recíproca, configurando a inimputabilidade criminal daqueles que, em nome do Estado, praticaram ou foram mandantes de graves violações de direitos humanos.
Para analisar a ideia de anistia recíproca, apresentamos um depoimento da ex-presa política, Áurea Moretti Pires[2], para o documentário Memórias da Resistência (2014), dirigido por Marco Escrivão. De acordo com Áurea:
Uma coisa assim que me interessa saber muito é sobre o que foi mesmo que a Lei da Anistia me perdoou?! Eles falam, “mas perdoou os dois lados, tanto os subversivos como os torturadores.” A Lei da Anistia perdoou foi a eles. Porque eu fui presa na minha casa, fui torturada dentro da minha casa, fui levada para a delegacia, fui espancada, passei pau de arara, choque elétrico noites inteiras, tentativa de estupro! […]. Fui torturada de tudo quanto era modo, assédio sexual, emocional […]. Peguei seis anos de cadeia […]. Enquanto isso e eles? Subiram na vida, ganharam cargo, ficaram numa boa, não é?!
Apesar de o instituto da anistia não configurar necessariamente o perdão, as palavras de Áurea permitem ponderar sobre a forma como se deu a transição política no Brasil, a partir da Lei da Anistia. O dispositivo legal, mesmo não assegurando anistia a todos os perseguidos políticos[3], garantiu o benefício para muitos presos e presas políticos, permitiu o retorno ao país de um grande número de exilados e, também, a volta à vida pública daqueles que viviam na clandestinidade. A extensão da anistia aos agentes do Estado, no entanto, configurou um ato sem “precedentes históricos”, visto que estes foram beneficiados pela lei sem nunca terem sido formalmente acusados ou julgados por seus crimes.
Ainda em 1978, Roberto Ribeiro Martins, na obra Liberdade para os Brasileiros, escrita em meio à campanha pela anistia apontava que:
Os crimes porventura praticados no exercício de função policial não foram ainda plenamente desvendados, e muito menos punidos. Este é um problema diverso do da anistia e, como tal, deve ser tratado e resolvido separadamente dela, ressalvados os direitos de justiça de quem quer que seja. Não há, pois, como confundir.[4]
Quando Martins escreveu sua obra, a campanha pela anistia se espalhava pelo país, a partir, principalmente, do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs). Naquele contexto, ainda não havia um projeto de lei de anistia em tramitação. Se a campanha por uma “Anistia ampla, geral e irrestrita” ganhava apoio de parcelas da população, no ano seguinte, em agosto de 1979, o que se viu foi a aprovação de uma legislação redigida pelo próprio regime. Esta lei, além de não beneficiar a todos os atingidos pela perseguição política, isentava de qualquer punição os agentes do Estado, configurando-se, desse modo, em uma autoanistia.
Organizações e indivíduos, que desempenhavam papéis importantes na campanha pela anistia, alimentavam a esperança de que em um momento futuro a lei fosse revista ou de que a punição aos violadores de direitos humanos ocorresse após a promulgação de uma nova Constituição, o que, de fato, nunca aconteceu. A Lei da Anistia recebeu poucas alterações nos anos seguintes. Os agentes anistiados, sem nunca terem sido punidos, continuaram a exercer seus cargos e funções dentro das corporações civis e militares às quais pertenciam, sendo inclusive promovidos. Este fator foi salientado na fala de Áurea, como são os casos dos supracitados “Carlinhos Metralha”, “Major Curió” e Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Os traumas que persistem e uma visão da Anistia hoje
Tanto a ditadura quanto o período transicional brasileiro se configuram como traumas ainda não superados ou solucionados por nossa sociedade. O fim da ditadura e o início do Estado democrático não foram acompanhados de uma resolução ou de um acerto de contas de nossa sociedade com seu passado recente. Pelo contrário, a memória da ditadura se apresenta na atualidade como uma disputa de narrativas sobre o que foram aqueles anos. Nesse embate, é sintomático o rechaço das Forças Armadas à institucionalização da Comissão Nacional da Verdade, que apontou, em seu relatório final, o montante de 377 agentes responsáveis por graves violações de direitos humanos, sendo baseada em farta documentação. Mesmo que tímida e sem o poder de judicialização, a CNV e as outras comissões formadas nos estados e municípios foram vistas pelos setores saudosistas do regime como uma afronta aos militares e à memória da instituição, sendo muitas vezes taxadas de revanchistas.
Se, no curto prazo, a Lei da Anistia significou a liberdade para um grande número de presos e presas políticos, a volta do exílio e o fim da clandestinidade; no longo prazo, ela representou uma vitória da ditadura, que viu seus agentes, não apenas “perdoados”, mas também legitimados em suas práticas de violência sistemática, devido a garantia da impunidade. Desse modo, os diversos crimes cometidos a mando e pelas mãos de agentes do Estado ditatorial permanecem insolúveis pela impossibilidade de serem julgados perante tribunais penais oficiais. Essa falha em nossa resolução dos conflitos do passado são alimento para o saudosismo (negacionismo e/ou apologia) que vivenciamos atualmente.
Fonte: Twitter (Reprodução)
O discurso de que a institucionalização da CNV seria parte de um revanchismo dos antigos oposicionistas da ditadura não é novidade em nossa história recente. Ele também foi largamente utilizado durante o processo de campanha pela anistia com o intuito de desmoralizar aqueles que eram contrários à ideia de anistia recíproca. De todo modo, vale relembrar, os crimes de graves violações aos direitos humanos, como torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados, não são, à luz de tratados internacionais firmados pelo Brasil, passíveis de anistia ou de prescritibilidade.
Portanto, apontar a Lei da Anistia como uma vitória da própria ditadura não consiste em se entregar ao conformismo. Ao contrário, assinala-se a necessidade de aguçarmos nossa visão crítica sobre o processo histórico da transição política e, mais especificamente, da promulgação da Lei da Anistia. Assim, talvez seja possível manter os mortos[5] (ou seja, todos aqueles assassinados e desaparecidos nas cidades, nos campos e nas florestas) e suas memórias a salvo, para que não sejam mais esquecidos e nem sofram mais uma vez a tentativa de apagamento ensejado por aqueles que ainda se veem livres para propagar os ideais de horrores da ditadura. Pois, como declara Walter Benjamin “os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Notas:
[1] Para melhor compreensão sobre os crimes conexos: BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. A Lei de Anistia brasileira: os crimes conexos, a dupla via e tratados de direitos humanos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 103. jan./dez. 2008.
[2] Áurea foi uma das lideranças da organização Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), em Ribeirão Preto, tendo sido presa em 1969.
[3] Ficaram excluídos da Anistia, num primeiro momento, opositores do regime que teriam cometido os considerados “crimes de sangue” (terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal), o que gerou comoção e intensos debates públicos. Com o passar do tempo, essas pessoas receberam indulto ou tiveram seus processos revisados nas instâncias jurídicas militares. Para o historiador Carlos Fico, a interdição da anistia para os “crimes de sangue” teria sido uma forma de encobrir o verdadeiro intento do regime, qual seja, a autoanistia. Este é um importante debate, que será alvo de reflexão em futuras publicações desta coluna.
[4] MARTINS, Roberto Ribeiro. Liberdade para os brasileiros: anistia ontem e hoje. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978. p. 177.
[5] Apesar de considerar apenas 434 mortos e desaparecidos, a CNV aponta na introdução de seu volume III que “o rol de vítimas aqui exposto não é definitivo […] notadamente no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas”. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Volume III: Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: CNV, 2014. p. 25.
Crédito da imagem destacada: Cartaz Anistia. Acervo CEDEM-UNESP, CP2_210. Arquivo Nacional.
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