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Carlos Malaguti

Entre o golpismo do passado e o golpismo do presente: a vitória da democracia sobre a barbárie

Passadas duas semanas das eleições mais importantes da história da democracia brasileira, pode-se pensar que poucos historiadores estejam se preocupando em realizar uma análise dos fatos. O motivo é um senso comum que perpassa nossa historiografia ocidental, ainda muito marcada pela presença de certas premissas que salientam a necessidade de um certo distanciamento e do encerramento dos processos históricos para que seja possível realizar análises “mais precisas”, com um “distanciamento histórico”. Eu, historiador de ofício, não acredito que distanciamento histórico tenha a ver com tempo, uma vez que as temporalidades históricas são múltiplas. E, sobretudo, concordo com as reflexões da História do Tempo Presente, que indicam que a melhor forma de superar essa questão relacionada ao tempo é encontrar mecanismos de inserir o historiador no tempo histórico em que está estudando. Não é aleatória, portanto, a escolha de escrever este texto em primeiro pessoa. Além de que não tenho a pretensão de realizar uma análise precisa. Apenas tenho o objetivo de refletir como eu, enquanto um agente social, vivenciei essas eleições que, repito, foram as mais importantes da nossa democracia.

Cultura política brasileira e o descaso com a democracia: um problema histórico.

Em primeiro lugar, a importância dessas eleições está diretamente atrelada à consolidação do processo democrático brasileiro, cuja história é marcada pela descontinuidade, pela falta de compromisso com a vontade popular e pela falta de confiança da população no que diz respeito à sua importância. Este último ponto não deve ser confundido com uma ideia recorrente que descreve o brasileiro como um sujeito alienado. Essa explicação parte de um ponto de vista elitista, que entende a participação política como algo idealizado e não realizado no cotidiano. Um dado concreto da nossa cultura política é a abnegação de parte da população brasileira em relação à política –talvez porque esta sempre tenha sido exclusividade de certas camadas da população que a utilizaram em benefício próprio.


Reprodução

Um olhar macro sobre a construção histórica da política brasileira revela que a maior parcela da população só teve garantida sua participação política com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, o que ocorreu há menos de cem anos. Ainda é preciso ressaltar que, após essa transformação, o Brasil passou por duas ditaduras – a do Estado Novo e a militar –, que romperam o estabelecimento da cultura democrática no país. Como cobrar politização e participação política para além das eleições, se o Brasil impediu historicamente que a maioria de sua população fizesse esse rito por tanto tempo? Portanto, chamar a população brasileira de alienada politicamente é, no mínimo, uma falta de compreensão histórica de nossa formação como povo.

E talvez seja justamente aí que resida a importância das eleições do dia 30 de outubro de 2022, data que será lembrada em diferentes vetores de memória daqui por diante. Um povo acusado de ser alienado, um povo acusado de não ter memória, um povo acusado de tantas coisas por setores progressistas marcados por certo elitismo respondeu, via participação democrática, que quer um futuro construído com diálogo, com discordâncias respeitosas e com empatia e respeito às diversidades.

Golpismos no passado, golpismos no presente: diferenças e aproximações.

Eu sei que o campo progressista alerta para a quantidade de votos que o fascismo conseguiu cooptar. Não me parece ser necessário retomar tudo o que ocorreu nesse processo “democrático”. O presidente utilizou a máquina pública como nunca havia ocorrido na história do país – e perdeu. Realizou uma campanha marcada pela disseminação de mentiras e pelo estímulo ao ódio – e perdeu. Realizou práticas de coerção para obter votos que remetem ao coronelismo e ao clientelismo – e perdeu. Utilizou instituições do Estado, como a Polícia Rodoviária Federal, para impedir que eleitores chegassem aos seus locais de votação – e perdeu.


Também tenho visto o mesmo campo progressista ponderar, com toda a razão, os riscos em que nossa democracia se encontra. O presidente se recusa a realizar os ritos da transição do poder e segue estimulando manifestações golpistas que pedem aquilo que qualquer um de nós temeu ao longo dos últimos quatro anos: um golpe de Estado que reviva os tempos de barbárie da ditadura militar que destruiu o Brasil entre 1964 e 1985. Longe de querer parecer otimista demais, é justamente aqui que reside a maior vitória desse pleito.


Há consenso na historiografia brasileira de que o golpe de 1964 foi o resultado de uma articulação de amplos setores da sociedade brasileira – como o campo conservador da Igreja Católica, as elites econômicas nacionais e a grande mídia – com a interferência direta do governo dos Estados Unidos, em um período marcado pela Guerra Fria. Um dado importante dessa articulação foi o apoio popular destacado, sobretudo, pela famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.


Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Reprodução.

Em 2022, não há Guerra Fria. Os Estados Unidos – que permanecem com sua política externa imperialista no Oriente Médio – foram um dos primeiros países a se posicionarem de modo a reconhecer a vitória de Lula, seguido por dezenas de países que se comunicaram com o presidente eleito a fim de cumprimentá-lo pela eleição. As elites econômicas brasileira, por sua vez, em que pese alguns setores mais radicais e inclinados ao fascismo, reconhecem na política econômica do primeiro governo Lula (2003-2006) diversos avanços para o seu capital. A reação do mercado financeiro com as bolsas de valores operando em alta e o dólar caindo revelam sua adesão ao novo governo que começa a ser montado.


Os setores hegemônicos da mídia brasileira parecem, ao menos nesse momento, terem entendido a importância do momento histórico e realizaram uma cobertura midiática do processo eleitoral na medida do aceitável. Ainda que certos movimentos tenham deixado clara sua indisposição de chamar o fascismo pelo seu nome e mesmo a falta de comprometimento em chamar as mentiras ditas pela campanha da extrema-direita pelo nome que têm – MENTIRAS –, é preciso reconhecer que a imprensa tem cumprido o papel de legitimar a vitória democrática alcançada por Lula. Acredito que também caiba destacar que, ao menos no pós-pleito, parte expressiva da mídia passou a utilizar nomes mais condizentes com a realidade e chamou os golpistas que param as rodovias em desrespeito ao resultado legítimo das urnas pelo nome que tem: GOLPISTAS.


Desse ponto de vista, parece que estamos realmente distantes daqueles terríveis anos 1960, em que tais setores se aliaram aos militares golpistas para desencadear um processo de destruição da economia e da sociedade brasileira. Militares estes que, ao menos até os primeiros dias pós pleito, parecem também controlados e estão respeitando a soberania do povo. Mas sobre eles, reservo-me ao direito de sempre desconfiar e seguir desconfiando de uma corporação que golpeou a democracia, torturou, matou e desapareceu com corpos, que nunca foi responsabilizada criminalmente e sequer reconheceu sua participação em crimes contra a humanidade. Estarmos atentos e fortes perante esse grupo parece ser uma tarefa constante de construção da nossa democracia.


A vitória da democracia contra a barbárie.

Mas o que chama a atenção é que talvez exista outra similaridade nos dois casos: o apoio popular ao projeto golpista, seja via urnas ou via ação violenta. Em ambos os casos, acredito que – e, mais uma vez, não quero parecer otimista além do aceitável – o olhar deva ser de vitória onde se aparenta uma derrota. No caso das ações arbitrárias de fechamento de rodovias, fica nítido que a maior parcela da população não reconhece a legitimidade de tais atos, muitas vezes porque ela vai contra o cotidiano do povo, que quer seguir sua vida da melhor maneira possível. Os vídeos que mostram pessoas dentro de um ônibus no Rio de Janeiro criticando as ações é emblemático e mostra a luta de classes em sua dimensão cotidiana: um povo “em um espaço curto, quase um curral” levando “na mochila amassada uma quentinha abafada” olha pela janela o privilégio desses golpistas de não trabalharem em uma segunda-feira. Outro vídeo, que mostra a torcida organizada Galoucura rompendo as barreiras que impediam a torcida de ver o Atlético Mineiro jogar, também deve ser lido de modo mais amplo, pois onde alguns podem enxergar alienação política existe um dos maiores combustíveis para a população pobre brasileira seguir caminhando: a alegria de ver seu time jogar no estádio. Em tempo: o Galo empatou com o São Paulo em 2 a 2. A torcida atleticana cantou e festejou o resultado, porque, afinal de contas, não se ganha sempre e é isso que a arquibancada ensina sobre a democracia.


Corintianos dispersam bolsonaristas em São Paulo. Reprodução.

Já em relação ao resultado das urnas, em que uma diferença de mais de dois milhões de votos garantiu a derrota do fascismo, a questão é complexa demais e não me sinto capaz de analisar nem suas consequências, nem suas causas. Porém, me reservo ao direito de dar um pitaco que talvez soe, mais uma vez, otimista demais.


A despeito da quantidade de irregularidades no processo eleitoral, realmente me parece uma quantidade gigantesca de votos dados a um projeto de ódio. Ainda assim, a maioria da população brasileira votou contra esse projeto. Além de todas as características da política que procurei ressaltar no começo desse “texto-desabafo”, é preciso sempre ter em mente que a redemocratização brasileira – que foi falha em muitos aspectos – foi marcada pelo silêncio, pelo ressentimento e pelo ódio daqueles que estiveram no poder ou que se identificavam com a ditadura militar. Também é preciso ter em mente que políticas de memória sempre foram muito escassas no Brasil: a Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, mesmo tendo realizado um trabalho primoroso de apuração dos crimes cometidos pela ditadura, ainda que realizado tardiamente e com diversos percalços, foi vítima de inúmeras campanhas de desinformação e deslegitimação. É preciso lembrar também que aqueles que cometeram crimes nesse período jamais foram presos, o que promove uma sensação de impunidade que dá sinal verde para outros setores seguirem propagando essa dimensão do ódio. É preciso ressaltar que, nos últimos anos de crescimento do fascismo brasileiro, toda professora e todo professor de História sentiu medo em abordar o tema da ditadura militar em sala de aula, por saber que ali estaria o tema que mais acarretaria em ódio, violência e perseguição.


Foi tudo isso que vencemos. Ter dois milhões de votos a mais não mostra que o fascismo brasileiro é forte. Mostra que o campo democrático conseguiu vencer esse fascismo utilizando as armas que possuía: a democracia.

Temos memória, temos história, temos futuro! Se, por quatro anos, cada um de nós, professoras e professores de História, nos perguntamos como pudemos deixar o Brasil chegar onde chegou, eu queria falar diretamente com vocês, companheiras e companheiros. Nesse 30 de outubro histórico, eu olhava para a multidão de pessoas na Avenida Paulista e só conseguia pensar em cada aula em que cada um de nós procurou demonstrar a importância de olhar para o passado com a perspectiva de construir um novo futuro.

Professoras e professores de História: temos memória, temos História, temos futuro. Povo brasileiro: temos respeito, temos empatia, temos democracia. Temos Luís Inácio Lula da Silva, eleito democraticamente o novo presidente da República do Brasil, para exercer seu terceiro mandato. Um ex-metalúrgico que já comeu muita quentinha abafada carregada na mochila amassada, sonhando com a alegria de ver o seu time – não à toa, o time do povo – jogar.


Créditos da imagem destacada: Ricardo Stuckert. Reprodução.


Como citar este artigo:

MALAGUTI, Carlos. Entre o golpismo do passado e o golpismo do presente: a vitória da democracia sobre a barbárie. História da Ditadura, 14 nov. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/entre-o-golpismo-do-passado-e-o-golpismo-do-presente-a-vitoria-da-democracia-sobre-a-barbarie. Acesso em: [inserir data].

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