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Entrevista com a historiadora Cassia Roth

Atualizado: 1 de mar. de 2023


A coluna Brasil por Brazil, editada por Lucas Koutsoukos-Chalhoub e Luiz Paulo Ferraz, busca aumentar as oportunidades para o público brasileiro conhecer pesquisas e obras sobre o Brasil produzidas fora do país ao entrevistar pesquisadores brasileiros e estrangeiros que atuam no exterior.


Cassia Roth é professora de história na University of Georgia. Nesta entrevista, conversamos sobre seu primeiro livro A Miscarriage of Justice: Women’s Reproductive Lives and the Law in Early Twentieth-Century Brazil (Um aborto da justiça: direitos reprodutivos das mulheres e o direito no início do século XX, em tradução livre), publicado pela Stanford University Press em 2020.


Capa do livro A Miscarriage of Justice: Women’s Reproductive Lives and the Law in Early Twentieth-Century Brazil

Qual o tema do livro e como surgiu a ideia de escrevê-lo?

A Miscarriage of Justice: Women’s Reproductive Lives and the Law in Early Twentieth-Century Brazil – será publicado em português com o título Justiça abortada: a vida reprodutiva das mulheres no Brasil, início do século XX pela Editora Hucitec – examina a saúde reprodutiva das mulheres em relação à legislação e política médica no Rio de Janeiro. Após a abolição da escravidão em 1888 e o início do republicanismo em 1889, a reprodução das mulheres – ou seja, sua capacidade de conceber e criar futuros cidadãos e trabalhadores – tornou-se crítica para a expansão do novo Estado brasileiro. Analisando processos judiciais, leis, escritos médicos e dados de saúde, argumento que o Estado – cada vez mais intervencionista – fomentou uma cultura de condenação em torno das práticas reprodutivas das mulheres pobres. Rastreando como o pensamento jurídico e o conhecimento médico se tornaram cimentados na lei e na prática clínica; como obstetras, funcionários da saúde pública e profissionais jurídicos abordaram o controle da natalidade; e como as mulheres experimentaram e negociaram suas vidas reprodutivas, A Miscarriage of Justice fornece uma nova maneira de interpretar as histórias entrelaçadas de gênero, raça, reprodução e Estado – e mostra como essas questões continuam a reverberar em debates sobre justiça reprodutiva e saúde feminina no Brasil hoje.


Em sua essência, o livro é sobre como as mulheres navegaram e viveram suas vidas reprodutivas dentro de estruturas estatais e sociais restritivas. Este conceito – como nós, como seres humanos, vivemos vidas dentro das restrições da sociedade moderna – sempre me interessou. Mas como eu me concentrei no controle reprodutivo no início do século XX no Brasil? Essa é uma pergunta longa, mas, depois de pesquisar a política estatal de planejamento familiar na Argentina para minha carreira de graduação, percebi que queria saber mais sobre como as pessoas vivenciavam a política estatal do que sobre a política em si. O treinamento em idiomas me trouxe ao Brasil, onde encontrei um tesouro de documentos relacionados ao aborto, infanticídio e à saúde reprodutiva durante a Primeira República.

Como você enxerga a contribuição do seu livro para a historiografia?


Apesar da centralidade das práticas reprodutivas das mulheres para a trajetória de expansão do Estado em todo o mundo, os historiadores costumam separar suas análises de controle da natalidade das discussões sobre gravidez e parto e tendências de saúde reprodutiva, como taxas de mortalidade materna e de natimortalidade. No Brasil, por exemplo, uma rica historiografia explora as políticas de saúde materno-infantil e as concepções da elite sobre a maternidade durante o início do século XX.Os historiadores também começaram a explorar as práticas das mulheres e as políticas estaduais em relação ao aborto, infanticídio e à contracepção. No entanto, a natureza interconectada e talvez inseparável da saúde reprodutiva feminina com o controle da natalidade permanece pouco explorada. Esta divisão resultou em métodos que entendem o processo de pontos de vista isolados – legal, médico, cultural – ao invés de uma metodologia integrada que destaca como várias esferas se cruzaram para moldar a política reprodutiva. Eu me afasto dessas abordagens ao analisar as tendências médicas, legais, sociais e políticas no Rio de Janeiro do início do século XX em relação às experiências reprodutivas das mulheres, como aborto e aborto espontâneo, natimortalidade e infanticídio, gravidez e nascimento de uma criança saudável. No final, uma exploração detalhada da política legal e médica em relação à saúde reprodutiva ainda deve privilegiar as próprias experiências das mulheres. Nesse livro, demonstro os mecanismos jurídicos e médicos específicos e as negociações individuais que influenciaram a formação do Estado no Rio de Janeiro e, em última instância, a trajetória política do Brasil do início do século XX. O livro intervém na interseção da História social e política a partir da perspectiva da reprodução feminina, abrindo novas maneiras de pensar sobre a interseção entre a estrutura do Estado e a experiência individual em relação ao gênero em todo o mundo. Como seu livro dialoga com a historiografia brasileira, e que obras e autores do Brasil te ajudaram a pensar o tema?

O livro se baseia em vários autores pioneiros brasileiros e brasilianistas. Isto inclui alguns dos trabalhos fundacionais sobre gênero e criminalidade no Brasil (Rachel Soihet, Martha Abreu, Magali Engel e Margareth Rago), assim como os primeiros trabalhos de Sidney Chalhoub sobre as classes trabalhadoras. Além disso, os estudos no campo da História da Saúde influenciaram muito o meu trabalho. Fabíola Rohden, Ana Paula Vosne Martins, Mariza Correa, Tânia Pimenta, Renilda Barreto, Martha Freire e Jurandir Costa têm sido fundamentais em minha trajetória intelectual. Tenho certeza de que há muitos mais que me esqueci de mencionar. Tenho confiado nesses autores para ideias sobre fontes e metodologias (como ler fontes de elite para experiências “subalternas”, por exemplo). Também tenho que dar grande menção ao meu mentor e amigo Luiz Antônio Teixeira, da Casa de Oswaldo Cruz, que me tomou sob suas asas quando eu era estudante de pós-graduação no Brasil e me expôs ao mundo da História da Medicina e da Ciência no Brasil. Suas provocações atenciosas e suas colaborações frutíferas moldaram meu caminho acadêmico.

Quais foram as principais fontes utilizadas em sua pesquisa e como você chegou até elas?


Para estudar todos os aspectos da saúde reprodutiva das mulheres, utilizei principalmente fontes médicas e legais. O livro baseia-se em uma variedade de fontes, incluindo documentos judiciais, publicações médicas, dados de saúde pública, relatórios clínicos, Direito Penal e Civil, romances, jornais e fotografias. Sua espinha dorsal é um conjunto central de 193 inquéritos policiais e processos-crime envolvendo práticas reprodutivas de mulheres na cidade do Rio de Janeiro, além de 39 processos judiciais do estado do Rio de Janeiro e do Supremo Tribunal Federal de acordo com o Código Penal de 1890. Acredito que esses são a maioria – senão todos – os processos e inquéritos de práticas reprodutivas que existem sobre esse período. Claro, o método pelo qual um evento reprodutivo se tornava um inquérito policial ou processo crime no tribunal não era uniforme, e as mulheres pobres eram mais propensas a chamar a atenção das autoridades. Com isso em mente, minha população total de casos não é representativa das mulheres em geral. Ainda assim, a maioria das mulheres no Rio de Janeiro do início do século XX não era da elite e, embora os casos possam sub-representar as mulheres da classe alta, em geral estes casos são bastante representativos da maioria das mulheres cariocas.


Fiz pesquisa em vários arquivos, localizados principalmente no Rio de Janeiro, entre eles o Arquivo Nacional, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Museu da Justiça, a Casa de Oswaldo Cruz da Fiocruz, a Maternidade Escola da UFRJ e o Centro das Ciências da Saúde da UFRJ. Comecei minha busca por fontes voltadas para investigações policiais sobre aborto e infanticídio, e dissertações médicas sobre a saúde reprodutiva das mulheres. A pesquisa se desenvolveu organicamente, pois percebi que outros termos de busca poderiam revelar documentos legais relevantes e que outros arquivos possuíam estatísticas de saúde, por exemplo.


Qual a história mais interessante que você se deparou ao longo da pesquisa para o livro ou a que mais te surpreendeu?


A história de Isalina Vieira, com a qual eu começo o livro, continua a assombrar meus pensamentos até hoje. Lembro-me quando li o caso pela primeira vez: estava em meu apartamento em Copacabana, analisando o trabalho de arquivo daquela semana, quando percebi o que havia acontecido com Isalina. Liguei para minha colega de quarto e apressadamente expliquei como eu não podia acreditar no caso. Vou compartilhar a abertura do livro aqui.


Em uma manhã de outubro em 1912, Isalina Vieira, de 29 anos, entrou em trabalho de parto na capital do Brasil, Rio de Janeiro. Acompanhada de sua vizinha, Vieira foi à maternidade pública mais próxima, a Maternidade Laranjeiras, mas, na chegada, o porteiro noturno avisou às mulheres que o médico havia recusado a entrada de Vieira, pois todos os leitos estavam ocupados. Logo depois, Vieira deu à luz a seu filho na calçada do hospital, que morreu minutos depois. Um guarda municipal, que chegou após o parto, voltou ao hospital para pedir socorro, mas o médico novamente negou o acesso a Vieira. Posteriormente, uma ambulância transportou Vieira para o hospital da Santa Casa da Misericórdia para atendimento médico. Quando um comissário da Polícia Civil chegou ao local, falou com a amiga de Vieira e com o guarda que havia atendido as mulheres, encaminhando a vizinha e a criança ao necrotério municipal para obtenção do atestado de óbito, pois, em suas palavras, “não havia suspeita de crime”.


O policial então notificou seu superior, o delegado do distrito, que rejeitou a decisão de seu subordinado e abriu uma investigação de infanticídio. O delegado interrogou Vieira e sua amiga (ambas analfabetas), além do porteiro, vários policiais e alguns médicos do hospital. Vieira testemunhou que era casada, mas estava separada do marido havia doze anos, dando a entender que a criança não era dele. As duas mulheres declararam separadamente que, embora a criança tivesse nascido viva, caiu na calçada durante o parto, após o qual o cordão umbilical se rompeu. O estudante de Medicina que recusou a entrada de Vieira no hospital durante o trabalho de parto disse à polícia que não queria violar as regras de ocupação do hospital. Mas essa decisão rígida não cabia apenas ao estudante: o médico supervisor disse à polícia que a recusa de pacientes “poderia ser reproduzida porque o número de leitos que a Maternidade possui é muito pequeno em relação às mulheres [que procuram seus serviços]”. O médico também refutou a ideia de que arranjos improvisados eram possíveis em uma situação como a de Vieira, “coisa que absolutamente não deveria ser utilizada em seu Hospital, cuja limpeza [é] indispensável para o bem-estar das pacientes”.


A autópsia policial concluiu que a causa da morte foi devida a quatro fatores: parto prematuro com oito meses de gestação, rompimento do cordão umbilical, pequena fratura craniana e “omissão dos cuidados necessários”. A última cláusula, extraída diretamente da legislação penal, serviu de motivação para a investigação. Entretanto, o delegado acreditava que o fator crucial exigido para uma condenação estava ausente: a intenção de matar. Ele argumentou que os depoimentos testemunhais provaram que Vieira não teria ido ao hospital se tivesse planejado assassinar a criança. Embora o delegado pudesse ter acreditado que a vida sexual e reprodutiva de Vieira estava fora das normas estabelecidas de comportamento sexual feminino ‘adequado’ – virgindade ou castidade fora do casamento e fidelidade e maternidade dentro dele – ele acreditava que ela era inocente do infanticídio.


Que perguntas o seu livro deixa em aberto, ou que novos caminhos você espera que sejam explorados em pesquisas futuras sobre o tema?


Espero que os historiadores do futuro se baseiem em meu trabalho para pensar sobre a História da política e da prática do aborto de meados ao fim do século XX. Embora as leis penais tenham em sua maioria permanecido inalteradas desde 1940 – ano final do recorte do meu livro –, não foi o caso da política e da prática do aborto. Como a chegada de formas confiáveis de contracepção no Brasil mudou o acesso ou a necessidade das mulheres ao aborto? Como o regime da ditadura militar afetou a acusação de aborto, se é que tenha afetado? Como as mulheres experimentaram o aborto? Será essa uma pergunta a ser respondida através de histórias orais? Além disso, como os homens vivenciaram suas vidas reprodutivas?


Eu caminhei na direção oposta no século XIX, para olhar a interseção das definições legais e médicas de reprodução e a escravidão. Há muito mais a ser feito em relação à história da reprodução, e estou entusiasmada em ver o que os estudiosos acham que vai adiante.

Essa entrevista ocorreu por escrito e foi editada antes da publicação.

Contate a coluna em brasilporbrazil@gmail.com

Lucas Koutsoukos-Chalhoub

Luiz Paulo Ferraz

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