Entrevista com o historiador Frederico Freitas
Entrevista com Frederico Freitas sobre o livro Nationalizing Nature: Iguazu Falls and National Parks at the Brazil-Argentina Border (2021)
A coluna Brasil por Brazil, editada por Lucas Koutsoukos-Chalhoub e Luiz Paulo Ferraz, busca aumentar as oportunidades para o público brasileiro conhecer pesquisas e obras sobre o Brasil produzidas fora do país entrevistando pesquisadores brasileiros e estrangeiros atuantes no exterior.
Frederico Freitas é professor associado de história na North Carolina State University. Nesta entrevista, conversamos sobre seu livro Nationalizing Nature: Iguazu Falls and National Parks at the Brazil-Argentina Border (Nacionalizando a Natureza: Cataratas do Iguaçu e Parques Nacionais na Fronteira Brasil-Argentina, em tradução livre) publicado pela Cambridge University Press em 2021.
Qual o tema do livro e como surgiu a ideia de escrevê-lo?
O livro é uma história dos parques nacionais criados pelo Brasil e pela Argentina na década de 1930, focando, respectivamente, no Parque Nacional do Iguaçu e no Parque Nacional Iguazú. O parque brasileiro é o segundo criado durante o Estado Novo e o parque argentino, dependendo de como você conta, é o primeiro ou segundo criado pela Argentina (1934). Eu uso a criação dos parques como uma janela para falar um pouco da história da política de criação de parques nacionais nos dois países, da década de 1930 até a década de 1980. Portanto, no que se refere ao Brasil, o livro passa por vários períodos, como o Estado Novo, as redemocratizações e a ditadura militar. Eu também uso os parques para falar um pouco da história ambiental daquela região da Tríplice Fronteira, principalmente da fronteira Brasil-Argentina.
Quando comecei o doutorado em Stanford, eu sabia que queria fazer história ambiental e queria que tivesse alguma relação com a Mata Atlântica. E, anos atrás, no Brasil, eu era envolvido com música hardcore e punk. Eu fiz uma turnê com uma banda americana e lembro que, quando a gente estava voltando de ônibus de Buenos Aires para São Paulo, a parte da fronteira que era argentina era toda de floresta, Mata Atlântica. Em um momento, a gente atravessou o rio pela ponte – que é a fronteira – e tudo mudou: virou tudo fazenda, plantação. Aquilo ficou na minha cabeça. Assim, quando eu estava procurando um tópico para o doutorado, eu lembrei daquilo e pensei que talvez fosse legal fazer uma história ambiental da Tríplice Fronteira.
Eu não sou da Tríplice Fronteira – sou de São Paulo –, então a primeira coisa que eu fiz foi dar uma olhada no Google. Eu olhei fotos de satélite da região e dá para você ver onde é a Argentina, onde é o Brasil e onde é o Paraguai por causa dos diferentes padrões de ocupação, de uso da terra e da paisagem. No final das contas, acabei focando nos parques, pois era mais fácil de gerenciar do que a Tríplice Fronteira inteira. Os parques abriram outros temas e outros tópicos que eu não tinha em mente quando comecei a fazer a pesquisa, como a questão da política pública de conservação e as conexões transnacionais e internacionais entre Brasil, Argentina e outros países.
Como você enxerga a contribuição do seu livro para a historiografia?
Acho que foi uma contribuição bem interessante em vários níveis. Hoje em dia, o Brasil possui entre 20% e 30% do território ocupado nominalmente por unidades de conservação. Há vários níveis destas unidades; em alguns deles, como área de proteção ambiental, é quase como se não existisse, mas está ali, está na lei. Geralmente, quando se pensa a história da terra, a história agrária, a história do interior brasileiro, não se pensa muito nisso, não se coloca essas duas coisas juntas. Uma das coisas que tentei colocar no livro é isso, porque falo da política de reforma agrária com relação à política de conservação da natureza. Trato de várias problemáticas na obra e acho que isso é uma contribuição importante.
Além disso, não tem muita gente que escreve sobre a história de parques nacionais das unidades de conservação. No Brasil, tem gente que já escreveu, mas histórias de peso sobre unidades específicas, não. E o Parque Nacional do Iguaçu é muito emblemático porque é o parque não urbano mais visitado do Brasil: é um dos pontos turísticos mais famosos por causa das Cataratas, mas muita gente nem sabe que ali existe um parque. A pessoa vai lá entre as Cataratas, vai embora e nem se dá conta de que está entrando no Parque Nacional, que tem uma área enorme que é a maior área remanescente de Mata Atlântica hoje em dia.
É também uma história transnacional, tanto conectada quanto comparada: metade do livro é sobre o Brasil, metade sobre a Argentina. É uma história conectada porque você tem uma dinâmica que conecta os dois lados da fronteira. Toda vez que um lado faz uma coisa, o outro lado faz algo similar em resposta. E é uma história comparada porque não só estou contrastando os dois lados da fronteira, mas também os próprios agentes históricos estão fazendo essa comparação. Então eu me dou essa liberdade de comparar, porque eles estão fazendo essas comparações, ainda que eu entenda a problemática da história comparada.
O livro é também, creio, a primeira história sobre a política de conservação da natureza da Argentina realizada a fundo. É uma coisa muito interessante, porque eles começaram com uma abordagem muito peculiar quando se compara com outros países: os argentinos usaram a política de conservação e os parques nacionais como ferramentas de colonização de fronteira. Isso é uma coisa que só eles fizeram nessa escala, então acho que é interessante por causa disso.
Como seu livro dialoga com a historiografia brasileira, e que obras e autores do Brasil te ajudaram a pensar o tema?
Eu dialogo com alguns grupos da historiografia brasileira. Primeiramente, o grupo que faz História Ambiental no Brasil. Tem vários autores que, desde o final dos anos 1990, quando saiu A Ferro e Fogo no Brasil, vêm fazendo História Ambiental. Gente na UnB, na UFRJ, na UFSC: eu dialogo com esse pessoal. Eles escrevem um monte de coisas sobre vários assuntos e eu tenho esse diálogo com eles. Eu também diálogo com o pessoal do Paraná, que fez a História Agrária Social do oeste paranaense nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Essa escola está menos ativa, mas eu dialogo com eles e trago essa coisa nova que é a questão do papel da política de conservação da natureza nesse contexto de colonização do oeste do Paraná. Eu acho que essas são as duas principais correntes historiográficas brasileiras com as quais eu dialogo, além de linhas historiográficas da Argentina e dos Estados Unidos.
Quais foram as principais fontes utilizadas em sua pesquisa e como você chegou até elas?
Demandou muita criatividade. E é engraçado porque, fazendo pesquisa nos dois países, dá para comparar o tipo de desenvolvimento institucional em ambos. Na Argentina, quando eles criaram os parques nacionais na década de 1930, vieram com uma estrutura pronta: eles criaram um sistema de parques nacionais, uma agência de parques, um órgão de parques nacionais. E esse é o órgão que existe até hoje em dia. O órgão mudou de nome várias vezes, mas existe hoje em dia e tem a memória institucional deles. Esse órgão está lá em Buenos Aires e possui todos os documentos desde que foi criado. Na verdade, eles nunca tiveram um historiador fazendo pesquisa lá, mas eles tinham os documentos, apesar de não estarem organizados.
No caso do Brasil, o governo não estabeleceu um órgão específico para criar e gerenciar os parques nacionais. Na verdade, isso só aparece quando o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é criado, nos anos 2000. Até então, os parques nacionais eram de responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), que é um órgão que cuidava de parques nacionais e de várias outras coisas. Antes do Ibama, era o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), uma agência que cuidava de várias áreas: de parques nacionais e conservação até recursos florestais, como plantação de pinho para a madeira. A seção de parques nacionais era só um escritoriozinho no meio de várias outras atribuições que não tinham nada a ver com conservação. E antes do IBDF era o Serviço Florestal que cuidava de parques, entre outras atribuições. O Serviço Florestal, por sua vez, era só um escritório dentro do Ministério da Agricultura que, no começo, atuava basicamente no Rio de Janeiro.
Por isso, essa fragmentação e essa falta de investimento em uma estrutura governamental para cuidar dos parques antes dos anos 2000 fizeram com que a memória institucional no Brasil meio que não existisse. Existe essa lenda de que, quando eles mudaram a capital do Rio de Janeiro para Brasília, eles levaram todos os documentos relativos a parques nacionais e aí teve um incêndio. Diz a lenda que eles estavam guardados junto com outros documentos que os militares queriam destruir e o incêndio destruiu tudo, então não tem os documentos. Eu tive que ir lá no Parque Nacional para ver se eles tinham documentos e eles tinham alguma coisa. Existiam alguns documentos no ICMBio e algumas coisas no Arquivo Nacional, mas tive que juntar esses pedacinhos.
Uma das coisas que usei bastante no caso do Brasil foram processos legais de uma comunidade de colonos que viviam no Parque Nacional Brasileiro e que foram retiradas de lá na década de 1970. Vários colonos tentaram resistir legalmente a esse processo de remoção e eu uso esses processos legais. Eu fui à Justiça Federal e usei todos esses processos, que é uma coisa que ninguém tinha usado até então. Há uma documentação enorme, porque são processos de vários colonos que se arrastam durante décadas.
Outra coisa que usei também foram imagens históricas de satélite. Eu faço bastante trabalho com humanidades digitais, principalmente com Sistema de Informação Geográfica (SIG) histórico. Então, usei essas imagens de satélites produzidas desde a década de 1950 para fazer uma reconstrução da paisagem desses parques nacionais e da área no entorno deles antes, durante e depois desses colonos terem entrado e sido removidos.
Qual a história mais interessante que você se deparou ao longo da pesquisa para o livro ou a que mais te surpreendeu?
Tem uma história bem interessante, mas foi difícil para mim incluí-la no livro. Eu entrevistei várias pessoas, gente que era ex-funcionária do parque, gente que já faleceu. É possível encontrar várias coisas interessantes nas entrevistas e a pessoa mais fascinante que encontrei foi esse cara: ele era um colono que morava no parque argentino e que, quando eles tiraram os colonos do parque, resistiu durante uns dez anos. Ele foi tirado na época da última ditadura militar: ele foi capturado, levado para um lugar e torturado. Ele tinha uma vida muito única: ele nasceu na Polônia e lutou nos três lados da Segunda Guerra. Ele lutou como parte do Exército polonês contra a invasão e, assim que começou a Segunda Guerra, ele foi capturado. Ele tinha um treinamento de Engenharia, então os alemães o usaram no seu Exército na construção de pontes. Ele era polonês, mas ele era alemão etnicamente. Depois, quando o Exército Vermelho entrou na Polônia, ele foi alistado no Exército Vermelho e começou a lutar contra os alemães. Quando acabou a guerra, ele conseguiu, finalmente, passar para o lado inglês.
Ele foi viver na Inglaterra, mas não gostou. Acho que ele foi primeiro para o Brasil, depois para Argentina. Ele foi para Buenos Aires e acabou lá em Missiones. Ele terminou fazendo um acordo com o cara do Parque Nacional e, na década de 1950, começou a morar dentro do Parque Nacional, fazendo serviços ali. Depois tem toda a história dele sendo removido, preso, torturado e tudo mais. Ele é um sujeito muito, muito interessante. Talvez essa seja a mais interessante e inusitada, mas eu nem consegui usar muito ele no livro porque não encaixava. Ele está no livro, mas não encaixava muito com os temas maiores.
Acho que outra coisa interessante é a maneira como a Argentina usou a política de parques nacionais para colonizar suas fronteiras. Eles criaram um sistema em que, dentro dos parques nacionais, separava-se uma parte do território para criar um polo de colonização: uma cidade com fazendas, cujos terrenos eram vendidos para colonos e tudo mais. É uma coisa muito única: é uma contradição usar colonização como política de conservação da natureza, mas eles usaram. Isso cria uma série de impasses que depois se resolvem na década de 1960.
Que perguntas o seu livro deixa em aberto, ou que novos caminhos você espera que sejam explorados em pesquisas futuras sobre o tema?
Quando comecei, o livro fazia parte de uma ideia de se fazer uma “borderland history” do Brasil. Eu acho que um dos caminhos que ele aponta para educadores brasileiros é essa ideia de se pensar a história das fronteiras do Brasil como “borderland history”. Eu acho que a historiografia brasileira produzida no Brasil ainda é muito centrada ou limitada pelo Estado Nação brasileiro. Eu acho que é interessante pensar um pouco além disso, pensar nessas dinâmicas de fronteira, pensar no que existe nessas regiões que vão além do Estado Nação, perpassando os meandros entre diferentes regimes territoriais. Eu acho que meu livro aponta um pouco para isso. Sobre a história das unidades de conservação só falta um pouco, porque uma boa parte do Brasil é ocupado nominalmente por unidades de conservação. Então eu acho que tem muita coisa aí que pode ser estudada. Pode ser pensada a história da relação entre a União, os Estados e os indivíduos em relação ao uso da terra. Acho que as pessoas geralmente não pensam muito nessa política de conservação na história agrária e territorial do Brasil. Qual é o papel dessa política de conservação nessa história? Acho que meu livro aponta no sentido de se pensar um pouco mais sobre isso.
Esta entrevista ocorreu por videochamada e foi transcrita e editada antes da publicação.
Contate a coluna em brasilporbrazil@gmail.com
Lucas Koutsoukos-Chalhoub
Luiz Paulo Ferraz
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