Exército anuncia disponibilização do acervo do ditador Castelo Branco. Mas qual Castelo Branco?
Atualizado: 15 de out. de 2020
No dia 30 de junho, o Exército brasileiro anunciou que está iniciando um tratamento arquivístico no acervo pessoal do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, a fim de digitalizar a documentação e disponibilizá-la na internet. Castelo Branco foi quem assumiu a chefia do Poder Executivo no dia 15 de abril de 1964, tornando-se o primeiro general-presidente da ditadura civil-militar. Embora a notícia tenha sido apresentada com destaque nos canais de comunicação do órgão, não se informa com clareza se foram localizados novos documentos ou se o que está em questão é somente a digitalização do acervo.
Vivemos um contexto em que os sentidos e as memórias do golpe e da ditadura são amplamente disputados na sociedade. Hoje, há setores expressivos que buscam legitimar a deposição de Jango e o regime que se seguiu, bem como justificar as violências cometidas pelo Estado no período. Nesse quadro, a iniciativa do Exército ganha importância ainda maior, uma vez que pode influenciar os debates públicos em curso. Vale a pena, assim, acompanhar esse movimento com atenção, e desde já apontar possíveis desdobramentos do projeto levado a cabo pela Biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
A divulgação do Exército informa que o acervo é composto por “correspondência pessoal e oficial, correspondência política, conferências, cópias de documentos históricos, estudos de estado-maior, depoimentos, recortes de jornais”. Ainda que não saibamos exatamente qual o conteúdo do material, é possível afirmar que a documentação possui inegável interesse histórico e pode nos ajudar a compreender melhor distintos aspectos do período, especialmente no tocante à institucionalização do regime.
Para além de contribuições no campo historiográfico, os documentos podem vir a ajudar em investigações relativas a casos de graves violações de direitos humanos. Há um exemplo recente nesse sentido: foi a partir do acervo pessoal do general-presidente Emilio Garrastazu Médici, custodiado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro logrou localizar prontuários de presos políticos que passaram pelo Hospital Central do Exército.
Emílio Garrastazu Médici exibe a taça Jules Rimet, conquistada pela seleção brasileira de futebol em 1970. (Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT.18171.192)
O novo fundo documental provavelmente deve se configurar, ainda, como mais um caso de documentos públicos que estavam com figuras-chave do regime ditatorial. Ou seja, é possível que Castelo Branco tenha recolhido e mantido sob sua posse documentos produzidos por órgãos de informação e espionagem, os quais deveriam ser públicos e acessíveis. Isso ocorreu tanto com figuras com grande responsabilidade institucional da ditadura – como o próprio Médici ou o general Golbery do Couto e Silva -, quanto com aqueles mais diretamente responsáveis pelas violações de direitos humanos nos centros de prisão e tortura – como, por exemplo, no caso dos agentes da repressão Julio Molina ou Paulo Malhães.
Entretanto, para além do caráter e das potencialidades dos documentos, devemos ficar atentos ao próprio processo de organização do acervo que será levado a cabo pelo Exército brasileiro. Esse não será um momento neutro de reunião e sistematização dos documentos que estiveram em posse de Castelo Branco. Pelo contrário: a organização de um acervo é um complexo processo de seleção e exclusão de materiais, de modo a construir uma forma bastante específica de falar sobre o passado. Ou seja, trata-se de uma operação para conferir sentidos a uma biografia e aos eventos históricos em que o personagem esteve envolvido. E aqui não se trata de uma acusação de que o Exército irá manipular a documentação para um fim determinado, mas sim de uma reflexão que deve estar presente em quaisquer processos de organização de acervos, sejam eles feitos por arquivos, fundações, universidades, comissões da verdade, etc.
Com a disponibilização desse material, teremos novos elementos para refletir sobre os sentidos que a instituição pretende conferir ao acervo e à própria figura de Castelo Branco. Quais serão as condições de acesso e reprodução do material? Haverá documentos não disponíveis para o público? Quais materiais de divulgação o Exército pretende produzir a partir do acervo? Quais discursos os representantes da instituição promoverão sobre o fundo documental? Quais serão os usos dados ao acervo por historiadores, jornalistas, documentaristas, etc.? Como o Exército irá se posicionar, quando os documentos forem mobilizados em reflexões críticas à figura de Castelo Branco?
Essas perguntas, importantes de serem colocadas em relação a qualquer acervo, ganham contornos específicos no momento em que falamos do Exército brasileiro, que até hoje mantém uma postura muito pouco transparente e democrática no que diz respeito ao acesso às informações. Como se sabe, os acervos dos centros de informações das Forças Armadas jamais foram plenamente disponibilizados, e seu posicionamento oficial é afirmar que eles teriam sido destruídos no período, supostamente amparados na legislação então vigente. A resposta foi utilizada constantemente para os pedidos formulados pelas comissões da verdade, e é repetida à exaustão para qualquer pessoa que encaminhe um pedido via Lei de Acesso à Informação.
Mobilização de tanques no Rio de Janeiro em abril de 1964. (Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 05609.018.)
É nesse contexto que conseguimos ter algumas pistas sobre os possíveis significados da organização dos documentos de Castelo Branco. No comunicado oficial de divulgação da iniciativa, a instituição definiu o acervo como o conjunto de materiais reunidos pelo marechal “ao longo de uma vida de serviços prestados ao Exército e à Pátria, na paz e na guerra”. O general Eduardo da Costa Villas Boas, comandante do Exército, foi além. Ao compartilhar a notícia em seu twitter pessoal, afirmou que Castelo Branco era um “exemplo de líder militar a ser seguido”. E fechou com a hashtag “#ObrigadoSoldado”. Trata-se da velha visão sobre o ditador que o coloca como um moderado, ou mesmo um democrata – narrativa pouco convincente quando confrontada com as evidências empíricas, mas detidamente defendida por biógrafos de Castello Branco, jornalistas e historiadores. Uma memória cuja construção ganha agora novo impulso.
Portanto, estamos diante de mais um momento em que o Exército brasileiro opta por legitimar e homenagear indivíduos ou eventos vinculados à ditadura. Fica cada vez mais distante, assim, a possibilidade de que o Exército reconheça sua responsabilidade institucional pelas graves violações de direitos humanos cometidas no período e promova um pedido de desculpas público. No momento em que fantasmas autoritários ameaçam sair do armário, esse não é um bom sinal.
Lucas Pedretti é historiador.
Crédito da imagem de destaque: Castelo Branco assiste desfile em 07/09/1965. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 02033.076.
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