“Falando aos moços pela voz do coração”:a ditadura militar e o discurso para a juventude no singular
Em discurso proferido em 18 de dezembro de 1967 no salão de conferências do Hotel Glória, na cidade do Rio de Janeiro, o general ditador Arthur da Costa e Silva, escolhido como patrono pela turma de novos engenheiros de operações da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), desenvolveu sua retórica em consonância ao ideal de juventude defendido pelo regime ditatorial: moral e cívico. Em meio às congratulações aos jovens que ali acabavam de se comprometer com sua profissão e com o desenvolvimento do país, Costa e Silva apresentou um discurso que nos impulsiona ao debate sugerido pela chamada deste texto: a juventude no singular.
Pensar o fenômeno das juventudes no Brasil – e no mundo – é estar atenta às multiplicidades que estão presentes dentro desta categoria. Como afirmou Pierre Bourdieu (1983), em entrevista para o livro Questões de Sociologia, intitulada “Juventude é apenas uma palavra”, não se pode fazer uma reflexão sobre esse grupo social restringindo-o a unicidade. Nas palavras do autor,
[...] o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente. Seria preciso pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes, [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 113)
Especificamente, ao tratarmos da sociedade brasileira do século XX, conforme apontam dados do IBGE, em nosso país tínhamos uma sociedade com ampla predominância dos jovens. Na década de 1970, o contingente de jovens (15 a 24 anos de idade) já somava 38,2% da sociedade brasileira. Assim, demarco que esta reflexão terá como foco analisar os discursos proferidos em nome da ditadura militar sobre essa juventude no singular: o jovem predestinado a comandar o futuro do país. Como podemos observar no trecho abaixo, ainda referente ao discurso de Costa e Silva (1967), esse sujeito ao qual se congratula é o jovem “em estado de graça”: “Ser moço é desfrutar de um privilégio maravilhoso. É ser puro. Generoso. Idealista. Ardoroso. Entusiasmado. É ter um incontido anseio de renovação e é ser atuante, no sentido do progresso e do futuro. Ser moço é estar, permanentemente, em estado de graça.”
Em sua exposição, o presidente deixou explícita a sua alegria pela escolha de sua pessoa como figura de estima pelos jovens, ao declarar que deixaria de lado a “linguagem fria, seca e formal” esperada de um “homem-de-Estado” para falar em um estilo mais “familiar”, como o próprio define: “pela voz entusiasmada do coração”. É com esse entusiasmo que Costa e Silva busca mostrar o respeito com a mocidade estudiosa – afinal, é nela que estaria depositada a esperança da grandeza futura do país.
Como na maioria dos estudos e textos produzidos no período, a juventude é colocada dentro da caixinha do maniqueísmo: ou são “puros, idealistas, ardorosos e entusiasmados”, ou serão tomados por transviados, subversivos, delinquentes, imaturos etc. Aos primeiros, cabia manter o espírito sempre jovem e incontaminado – segundo o general presidente –, preservando a pureza que lhes era proporcionada pela formação cívica e moral. Aos demais, só lhes restavam a repreensão (ou seria repressão?) ou o enclausuramento de sua existência no diagnóstico superficial de juventude transviada. A própria estrutura da narrativa exposta por Costa e Silva é permeada de maniqueísmos, pois ele desenvolveu um discurso quase religioso sob a forma de uma tentativa de corrupção dos ideais e valores da juventude:
Contra vós se avolumará uma quantidade enorme de dificuldades e de antagonismos. Contra a couraça de vosso caráter, virão chocar-se as ambições desenfreadas, os interesses ilegítimos e as seduções perigosas. Na medida em que vos fordes tornando importantes, pelo acesso aos altos postos e às posições destacadas, tentarão corromper-vos; tentarão subornar-vos, de qualquer maneira. Vereis a inveja, o ódio e a covardia, tanto quanto a bajulação, a falácia e o ardil. Um mundo pragmatista vos acenará com as conquistas fáceis e os lucros imediatos. Vereis uma inquietação, em precedentes na história, desencadeando uma degenerescência generalizada de costumes e, senão justificando, pelo menos explicando o renascimento violento de hedonismo, do epicurismo e do sensualismo.
Diante desse jovem que enfrentará todo tipo de obstáculo que buscará corromper sua moral e seus ideais patrióticos, Costa e Silva desenvolveu sua argumentação sobre a importância de uma formação baseada nos valores positivos. Dito de outro modo, ao enaltecer a questão educacional entrelaçada aos chamados valores positivos que nos remetem aos valores defendidos pela Igreja Católica (a moral e os bons costumes), o presidente entrelaça a educação – que seria de competência do Estado – com a religião ao defender que uma formação integral, completa e global não pode existir sem “[...] a presença constante de Deus”. Dessa forma, consegue fazer de seu discurso um elogio e reitera o elo entre o governo e a esfera conservadora da Igreja Católica: “Só prevalecem, na vida, os padrões espirituais e morais – jamais os materiais e imediatos. Essa é uma lição, da ‘mestra da vida’, que deve merecer a vossa meditação. A resposta para todas as falhas humanas está na educação. Educai-vos.”
Ao conclamar a educação como resposta a todos os males humanos, o general presidente destacou sua empreitada para assegurar a todos os brasileiros a possibilidade de uma formação que seria a “[...] grande igualadora das condições entre as criaturas [...]”. No discurso tudo é lindo e brilhante. Como expressa Costa e Silva, “a educação permite ao ser humano a sua plena realização física, moral, intelectual e social, entendido também, no último vocábulo o seu pleno desabrochamento político, dentro dos ideais democráticos”.
Mas para quem estava disponível essa formação cheia de “louros da vitória”? Lembremos que apenas 12,9% da população entre 19 e 20 anos, que completava o colegial nos anos 1960, entrava na universidade. Na faixa etária dos 21 aos 25 anos, a porcentagem sobe para 21,5%, atingindo seu ápice nos anos 1980 com aproximadamente 40% realizando essa transição. (CENEVIVA; BRITO, 2014, p. 94)
A expansão da educação elementar no Brasil se deu muito tardiamente no século XX. Foi apenas a partir dos anos 1980 que se acelerou mais fortemente o acesso ao ensino fundamental, embora o processo de expansão educacional já estivesse em curso há muitas décadas. O problema é que uma enorme proporção da população brasileira se encontrava até a década de 1970 nas regiões rurais onde não havia escolas suficientes para todas as crianças e jovens. Com a urbanização, aumentou a demanda por escolas nas regiões urbanas e, consequentemente, houve um maior incentivo para investimentos em educação elementar. Mas foi só em meados da década de 1990 que se alcançou percentuais de acesso à escola que podem ser definidos como de “universalização”.
Ainda sobre as estatísticas desses jovens privilegiados, conforme nos afirmam os autores, a situação de renda familiar tem forte peso no que tange às oportunidades educacionais dos jovens. Ou seja, os filhos de famílias de renda mais alta estavam bem à frente na corrida por uma educação completa e integral pela qual Costa e Silva se vangloriava de estar disponibilizando para a juventude brasileira.
Os resultados para as transições básicas indicam que o nível de renda familiar esteve desde 1960 associado às chances de entrada e de conclusão de 4 anos de estudos entre os jovens brasileiros, sendo que jovens de famílias mais ricas tem significativamente mais chances de prosseguir por estes dois níveis de suas trajetórias educacionais.
A partir dessas informações já podemos tirar algumas conclusões sobre o porquê de minha teimosia em tratar como singular o discurso para a juventude apresentado pelo governo ditatorial.
Retomando a análise dos discursos presidenciais, encontramos outra fala de Costa e Silva, agora proferida em 22 de outubro de 1968 no Colégio Técnico Universitário, em Juiz de Fora (MG). Desta vez, escolhido como paraninfo da turma de formandos nos cursos de eletrotécnica, máquinas e motores, o general presidente discursou sobre a responsabilidade da juventude universitária. Nesse momento, não apenas identificou as características dessa juventude ideal, mas estabeleceu suas responsabilidades frente ao desafio que é o desenvolvimento e engrandecimento do país. Mas, neste caso específico, a proposta da fala é a distinção desses jovens. Lembremos que o ano de 1968 foi marcado pelos movimentos de contestação dos estudantes no Brasil e em outros lugares do mundo.
Primeiramente, Costa e Silva ratificou sua preocupação com as questões educacionais e afirmou que uma das “falhas” em nosso sistema de ensino é a manutenção dos moldes europeus. Dito de outro modo, para o presidente, esse molde europeu estava explícito no prestígio dos cursos de letras, “formadores de bacharéis”. Podemos estender tal crítica aos outros cursos pertencentes às Ciências Humanas, que foram constantemente atacados pelos governos militares. Esse entendimento tido como falha em nosso sistema de ensino é justificado por conta do modelo desenvolvimentista defendido pelo governo. Nas palavras de Costa e Silva,
tal desajustamento, entre a pressão crescente das necessidades reais do País e um sistema formador de elites alienadas, não é fenômeno puramente brasileiro. Mas no Brasil, por circunstâncias peculiares, a defasagem foi mais larga e violenta. Os franceses cuidam de ajustar as suas instituições culturais e universitárias às novas aspirações da juventude e às novas exigências da França. Nos Estados Unidos, o Professor Clark Kerr, que presidiu durante alguns anos a Universidade da Califórnia — tida como a maior do Mundo, com seus 95 mil estudantes matriculados — publicou há pouco um pequeno e notável trabalho, em que reconhece, também lá, a necessidade de uma “mudança de ênfase no ensino”, para levar a juventude a uma participação ativa e sadia na vida da sociedade industrial.
Neste caso, a questão da distinção é feita diferenciando entre os estudantes que possuem, na visão do presidente, reivindicações legítimas e as “pequenas vanguardas agressivas”:
A fermentação entre nós se processa em uma minoria inquieta, constituída de moços mais sujeitos, por ingenuidade ou excesso de boa-fé, aos apelos de ativistas ideologicamente preparados para transformar reivindicações muitas vezes justas em movimentos frequentemente destituídos de justiça e muitas vezes animados de propósitos anarquistas, que não são os propósitos da juventude.
Sabemos que essa minoria definida por Costa e Silva esteve engajada nas mais variadas formas de combate ao regime ditatorial. Para ficarmos em apenas um exemplo, lembremos da Passeata dos Cem Mil, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 26 de março de 1968. Organizada pelo movimento estudantil, a manifestação teve ampla participação da sociedade. O ano de 1968 foi o ápice do conflito e da extrema violência contra os jovens que ousaram resistir e lutar contra o autoritarismo culminando na implementação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro.
Costa e Silva, assim como os outros generais presidentes, foram escolhidos como patronos, paraninfos, receberam títulos e estiveram presentes em muitas cerimônias em escolas e universidades. Lembremos que esta prerrogativa não se restringiu aos generais presidentes: tanto em períodos de exceção como em tempos democráticos foi comum que turmas de formandos escolhessem como patronos e paraninfos os chefes do executivo como uma forma de homenagem. Em outros governos, como o do próprio João Goulart, essa prática esteve em voga. Porém, observamos que durante a ditadura militar, todos os presidentes foram, mais de uma vez, agraciados com estas honrarias e homenagens de formandos das mais diversas áreas. Dessa forma, para esta reflexão, selecionei apenas alguns discursos para que pudéssemos pensar acerca dessa singularização da juventude que o governo militar impôs no Brasil. Após uma pesquisa básica nas plataformas acadêmicas, encontramos inúmeros trabalhos que tratam da juventude resistente à ditadura, da repressão aos estudantes e das perseguições e expurgos nas universidades, antes ou depois do famoso decreto 477. Porém, entendo como necessário o estudo dessa outra juventude e dos discursos voltados a esses jovens que estavam dentro dessa singularidade esperada pela ditadura – uma juventude que estava de acordo com os preceitos e defendia os mesmos ideais autoritários. Por hoje, ficamos apenas com os discursos voltados para esta parcela dos jovens que, conforme Costa e Silva, mediante o estudo e trabalho se distinguiam dos subversivos.
Créditos da imagem destacada: Posse do presidente Costa e Silva em 15 de março de 1967. Agência Senado. Wikimedia Commons.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre (1983). A juventude é apenas uma palavra. In: BOURDIEU, Pierre. Questão de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações. Estatísticas do século XX. ISBN 85-240-3894-2 (DVD) © IBGE. 2006.
RIBEIRO, C. C.; CENEVIVA, R.; BRITO, M. M. A. Estratificação educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010. In RIBEIRO, Carlos Antonio Costa Juventudes e educação: escola e transições para a vida adulta no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2014.
Encontramos esse ideal bem expresso na legislação desde 1966, como podemos ver com o decreto de 21 de março de 1966, nº 58.023, que em seu artigo 2º descreve quais os objetivos essa educação cívica deve propagar. “A educação cívica visa formar nos educandos e no povo em geral o sentimento de apreço à Pátria, de respeito as instituições, de fortalecimento da família, de obediência à Lei, de fidelidade no trabalho e de integração na comunidade, de tal forma que todos se tornem, em clima de liberdade e responsabilidade, de cooperação e solidariedade humana, cidadãos sinceros, convictos e fiéis no cumprimento de seus deveres”. Disponível em: Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br)
Fontes: Censo demográfico 1940-1970. Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1950-1973, Censo demográfico 1980. Dados gerais, migração, instrução, fecundidade, mortalidade. Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, v.1, t.4, n.1, 1983; Censo demográfico 1991. Características gerais da população e instrução. Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, n.1, 1996; IBGE, Contagem da População 1996, micro dados.
BRASIL. Presidente (1967-1969): Arthur da Costa e Silva). Discurso proferido no salão de conferências do Hotel Glória, como patrono da turma dos novos engenheiros de operações da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 18 dez. 1967. 4 f. Disponível em: 18 de dezembro de 1967 - Discurso proferido no salão de conferências do Hotel Glória, como patrono da turma dos novos engenheiros de operações da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — Biblioteca (presidencia.gov.br) Acesso em 10 mai. 2021.
MACHADO, João Bina. “Considerações sobre a educação da Juventude”. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro, nº 620, p. 7 -12, jul/ago de 1968. Disponível para consulta local no acervo da Biblioteca Nacional.
BRASIL, op. cit., p. 283-284.
BRASIL, op. cit., p. 284
RIBEIRO, C. C.; CENEVIVA, R.; BRITO, M. M. A. Estratificação educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010. In RIBEIRO, Carlos Antonio Costa Juventudes e educação: escola e transições para a vida adulta no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2014, p. 81.
RIBEIRO, op.cit. p. 105
BRASIL. Presidente (1967-1969): Arthur da Costa e Silva). Discurso proferido no Colégio Técnico Universitário, em Juiz de Fora (MINAS GERAIS), a 22 de outubro de 1968, como paraninfo da turma de formandos nos cursos de eletrotécnica, máquinas e motores. Minas Gerais. 22 out. 1968. 5 f. Disponível em: biblioteca_interna_ex — Biblioteca (presidencia.gov.br) Acesso em: 10 mai. 2021
BRASIL. op. cit. p. 434
Sobre o assunto, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
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