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Foto do escritorGabriel Pochapski

Fora do ar, dentro do mundo: saber histórico, ciberataques e ofensas virtuais

Atualizado: 9 de jun. de 2021

No decorrer de abril deste ano, o receio e a inquietação foram algumas das sensações experimentadas por aqueles que desenvolvem pesquisas nos acervos digitais da Biblioteca Nacional (BN). A imprensa e as notas divulgadas pela instituição noticiaram que, no dia 11 daquele mês, a equipe técnica identificou ataques de hackers, tomando a medida preventiva de retirar os servidores do ar.


Durante o período em que o site se manteve inacessível – situação contrastante com as milhões de visitas mensais –, pude acompanhar o temor de muitos colegas de diferentes lugares e etapas de formação em História. Dentre as postagens que vi e nas conversas que tive, sobressaíram palavras como “medo”, “espera”, “demora” e perguntas como “o que farei com as minhas pesquisas se o site não retornar?”. Um amigo de outra região do país desabafou: “Estou sem bolsa. Ir até o Rio não é uma opção”. Embora a Hemeroteca Brasileira seja o principal destino dos estudantes e pesquisadores, o desaparecimento abrupto do acesso aos livros, coleções e outros tipos de documentos digitalizados se tornou uma curva imprevista para muitos que frequentavam regularmente o endereço virtual.


Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Reprodução Facebook.

Assim como as mudanças tecnológicas instauraram um novo panorama na pesquisa, a emergência de diversos tipos de problemas como os ciberataques, as restrições de acesso, a fragilidade na segurança dos bancos de dados, entre outros, estabeleceram novos obstáculos para as nossas atividades. Neste sentido, eu poderia simplesmente descrever a interrupção do ritmo de trabalho ou uma mudança nos procedimentos que julgávamos tão habituais. Entretanto, como nos alerta assertivamente Pedro Telles da Silveira, a tendência de sempre tomarmos por base o cotidiano da pesquisa não esconderia problemas teóricos? Não poderíamos encontrar nos percalços costumeiros novas brechas para refletirmos sobre os sentidos do que fazemos?


Ao buscar novas formas de perceber as interferências digitais no saber histórico, Anita Lucchesi defende uma maior atenção para os aspectos implícitos que, na maioria das vezes, permanecem silenciados nas discussões teórico-metodológicas que realizamos. De forma bastante original, a autora considera que as dificuldades, as tentativas e as falhas que surgem no decorrer do trabalho historiográfico com as tecnologias digitais não deveriam ser ignoradas, mas sim inseridas em uma hermenêutica da prática, isto é, em uma postura autorreflexiva sobre as questões teóricas impostas por este novo horizonte e as soluções práticas que ele demanda.


Ora, se as ferramentas digitais necessitam de abordagens que permitam dar visibilidade aos desafios que surgem, o ataque ao site da BN me faz interrogar: o que poderíamos dizer sobre as atividades que são interrompidas ou que se transformam em tarefas inviáveis? Tomando a perspectiva de que todo trabalho historiográfico envolve uma análise sobre os arquivos que o tornaram possível, o que diríamos sobre um acervo que passou a ser inacessível? Como discutiríamos a suspenção de uma pesquisa por motivo de uma página que não abre mais? E o que falaríamos quando um banco de dados tão útil fosse atacado? De que modo o sequestro de uma chave criptográfica seria inserido no interior das nossas explicações?


As rupturas não são somente produzidas no tempo dos nossos afazeres. Pelo contrário, elas são inegavelmente problemas pertencentes ao nosso tempo. Muitas vezes, situações como essas envolvem a espera pelo retorno do sistema, o redirecionamento do estudo para aquilo que está disponível, a procura de formas alternativas de contato com a instituição responsável ou, em alguns casos, o abandono do estudo. Todavia, em um momento de importância fundamental das redes e dos dispositivos de informação, sobretudo quando os debates voltados para a história digital se mostram indispensáveis no Brasil, como essas pedras que surgem no nosso caminho – ou melhor, na superfície das nossas telas – serão inscritas em nossas reflexões?


Mais do que um espaço físico e institucional, Thiago Nicodemo e Oldimar Cardoso apontam que o arquivo é marcado por regras que definem a relevância ou o descarte das documentações, aspecto este que ganha nuances específicas diante da enorme quantidade de dados que podem ser gerados com as novas tecnologias. Em contrapartida, da mesma forma que o conteúdo dos arquivos que tradicionalmente conhecemos está sujeito a riscos de desaparecimentos – tal como a Biblioteca Jagger, da África do Sul, consumida pelo fogo no dia 18 de abril deste ano –, os novos aparatos de informação produzem arquivos digitais os quais também apresentam riscos que podem se modificar.

Ainda que o temor apresente especificidades ligadas ao universo técnico de hoje, principalmente na busca por uma maior segurança dos dados, o receio pela perda de acesso a um conteúdo não está restrito às últimas duas décadas. Roy Rosenzweig, por exemplo, enfatizou o silêncio dos historiadores norte-americanos ao descrever o temor que arquivistas e bibliotecários manifestavam com a migração de livros e de materiais impressos para os registros em fitas eletrônicas, na transição entre os anos 1970 e 1980. Palavras como “desastre” e “crise” figuravam nos relatórios e eventos acadêmicos, expressando a preocupação com o bit danificado que colocaria tudo a perder.


Físicos ou digitalmente transformados, os arquivos e as informações disponibilizadas sofrem as mudanças da sociedade, mas também são interpretados pelos historiadores e historiadoras à luz do tempo em que estão, o que demanda um olhar crítico para o presente em suas mais diversas questões e imprevisibilidades (algumas nem tão imprevisíveis assim). Para os que necessitavam de acesso ao site da Biblioteca Nacional, os dias em que a página esteve fora do ar foram marcados por uma projeção futura repleta de incertezas, pois as interrogações perante o endereço inacessível eram igualmente acompanhadas pela preocupação daquilo que retornaria. No dia 26 de abril, 15 dias depois do ataque hacker, o comunicado que anunciou a retomada do funcionamento da instituição ressaltou que 5% dos dados continuaram comprometidos, apesar de diversas pessoas afirmarem que a consulta permaneceu inviável nos dias seguintes. Já a nota divulgada no site oficial da BN destaca que o restabelecimento dos serviços ainda levará algum tempo e contará com episódios de “indisponibilidade, instabilidade, lentidão ou imprecisão”.


Mesmo não desenvolvendo pesquisas no âmbito da história digital, um dos pontos que me suscita a fazer este breve texto se dá pela urgência de pensarmos em como esses termos são e serão cada vez mais recorrentes em nosso campo. Também precisamos observar como a indisponibilidade dos arquivos eletrônicos nem sempre encontra uma solução rápida. Lembremos que o acervo da BN permaneceu parado por 15 dias, enquanto um ataque cibernético semelhante, do tipo ransomware, foi resolvido em 48 horas ao atingir o sistema do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2020. Situações como essas devem ser colocadas como questionamentos sobre as formas de se fazer história hoje, o que significa igualmente perceber que as políticas de desmonte dos órgãos públicos e das grandes fundações nacionais se articulam com a precarização da defesa dos bancos de dados. A título de amostra, somente no ano passado a Fundação Biblioteca Nacional sofreu um corte de mais de R$ 11,7 milhões de seu orçamento, um importante indicador de como as mecânicas econômicas e políticas envolvem os materiais que consultamos, desde o famoso Projeto Resgate até uma simples nota de um jornal pouco conhecido.


Do mesmo modo que os ciberataques estão enredados por dinâmicas pertencentes a nossa época, as condições de possibilidade dessas práticas, os critérios que facilitam ou impedem os sequestros de dados, não podem ser percebidos de forma a-histórica. Se, por um lado, Roy Rosenzweig afirmava, em 1998, que a ascensão da internet estava enraizada tanto na Guerra Fria como na contracultura e que isso instigava a necessidade de compreender se a internet seria “aberta” ou “fechada”, se promoveria o diálogo ou a hierarquia, a comunidade ou o capitalismo; Gilles Deleuze, por outro lado, oito anos antes, já defendia que as chamadas sociedades de controle seriam pautadas pelo domínio da senha, onde a linguagem que hoje denominamos como digital seria o parâmetro de produção dos acessos, rejeições e saques. Vivenciamos esses riscos diariamente e não precisamos sair do campo historiográfico para percebermos tais impactos. Recordemos que a própria conta que a Associação Nacional de História (ANPUH) possui no Twitter, com mais de 150 mil seguidores, foi invadida no início de fevereiro deste ano e recuperada no final do mês de março.


Quando trago essas informações, não procuro fazer uma mera junção de relatos do cotidiano, mas pretendo reiterar que um site invadido ou uma página fora do ar implicam, de forma direta ou indireta, na ansiedade em atualizar o endereço virtual e na percepção nebulosa do possível retorno, o que permite dizer algo a respeito das nossas relações com o tempo. Neste horizonte, quero destacar brevemente as experiências temporais ligadas ao fenômeno da atualização, ao aprisionamento no presente e ao bloqueio do futuro como alguns dos traços daquilo que Mateus Pereira e Valdei Araujo compreenderam como o “atualismo”. Este conceito assinala uma percepção da temporalidade pautada na exigência da atualização contínua, sobretudo automatizada, que passou a configurar as nossas vivências.


Em contrapartida, algumas dessas invasões e quedas de sites mobilizam camadas temporais que não se encontram restritas às redes sociais que acompanhamos ou aos acervos em que realizamos consultas. Diante das modificações significativas pelas quais a nossa disciplina passa, uma história da historiografia futura certamente não ignorará os ataques orquestrados às lives, aulas, bancas e eventos, onde professores e alunos foram vítimas de injúrias, constrangimentos e ofensas. Será preciso fazer uma espécie de genealogia desses gestos mesquinhos e dessas formas virtuais de reinscrever o racismo, as figuras nazistas, os trechos de vídeos pornográficos, a homofobia, as risadas de deboche ou os gritos que evocam o líder do “rebanho”.


É obvio que tal empenho não ocorrerá sem que façamos um debate aprofundado sobre temas-chave como o negacionismo e as fake news, o que também exige uma atenção especial para a questão algorítmica e seus impactos nas diferentes esferas da vida. Só assim poderemos compreender não apenas os ataques que são direcionados ao conhecimento histórico, mas também os mecanismos de eclosão de figuras como o adolescente “revolts” que, atrás de sua tela, julga ser o detentor de todo o saber universal, as “tias do zap-zap” e suas propagações de inverdades, e, para também compor este triste comboio, não poderemos esquecer do “machão agressivo”, aquele típico “cidadão de bem” que ataca postagens críticas à ditadura militar.


Tudo isso parece ser assustador a ponto de surgir o desejo de fecharmos a tela e sairmos do ar, mas ainda assim continuaremos nesse mundo. Afinal, quantos de nós já recebemos notícias falsas massivamente disparadas para alertar sobre a volta do comunismo? Quem nunca se deparou com canais que deturpam completamente os conteúdos históricos desdenhando do nosso trabalho? Quem nunca visualizou ou foi alvo de comentários ofensivos em uma postagem nas redes sociais? Mesmo que o olhar para as novas ferramentas de comunicação demande perspectivas de escala ampla, para além dos limites nacionais, sabemos que, em nosso caso, o uso das redes foi central para que muitos pudessem encontrar formas distintas de expressar a violência e a intolerância que sempre estiveram ali, que foram e são constituintes da nossa história.


Sim, estas figuras parecem ter perdido o medo. E nós, o que faremos? Muitos afirmam que estamos em uma situação de guerra nas redes e que tudo em nossa área está fadado ao caos. Todavia, eu me pergunto: apesar de todas as postagens fundamentalistas, dos vídeos contra a chamada “ideologia de gênero”, das conferências invadidas, não foram os últimos anos um momento de potência para a historiografia feminista e LGBTQIA+? Confesso nunca ter visto antes tantas lives, sites e eventos remotos protagonizados por mulheres e minorias. Não passamos a utilizar as redes sociais para discutir, ainda que de forma tardia, a dimensão racial presente em nossas bibliografias sempre tão brancas? Ver um story sobre Beatriz Nascimento em uma página de história para ensino médio foi um sopro na alma. Ao assistirmos Ailton Krenak, no YouTube, não estamos tendo a oportunidade de colocarmos a nossa disciplina em frente ao espelho? Alguns colegas podem afirmar que isto é muito pouco, mas eu arrisco dizer que já conseguimos minimamente despertar, tendo a problemática digital um papel indispensável neste processo.


As dificuldades não são simples e não se restringem às aberturas que mencionei, o que não me impede de afirmar que uma mudança nas relações que a nossa sociedade estabelece com a história também demande que nós nos transformemos. Independentemente dos hackers, dos bugs, das páginas fora do ar, é importante reconhecermos que alguns projetos que utilizam as tecnologias para a divulgação do conhecimento histórico possuem um percurso anterior. Iniciativas como a Olimpíada Nacional de História do Brasil (ONHB) e sites como o Café História – e o próprio História da Ditadura – são alguns exemplos dos vários caminhos traçados nas relações entre a história pública e as ferramentas digitais.


É visível que o contexto pandêmico impulsionou a criação de páginas, canais e outras formas de inserir a História no universo cibernético. Contudo, isso não pode excluir a atenção necessária para as condições sociais e políticas de circulação desses conteúdos. A internet e as redes sociais – como tudo o que compõe o trabalho historiográfico – não são neutras, especialmente quando levamos em conta a complexidade destrutiva do neoliberalismo, a precarização do mundo do trabalho, a formação de bolhas virtuais, as novas formas de vigilância e os colonialismos digitais. Todas essas dinâmicas estão imersas em um cenário perfeito para aqueles que querem colocar em jogo a relevância do que fazemos. Diante disso, torna-se indispensável recordarmos os motivos que nos mobilizam a estarmos aqui, apesar de tudo, mesmo depois de tudo.


Gabriel Pochapski é doutorando em História na UNICAMP e bolsista da FAPESP.

 
  1. SILVEIRA, Pedro Telles da. História, técnica e novas mídias: Crítica da razão histórica digital. 2018. 372 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós- Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/189249

  2. LUCCHESI, Anita. For a New Hermeneutics of Practice in Digital Public History: Thinkering with memorecord.uni.lu. 2020. 332 f. Tese (Doutorado em História), University of Luxembourg, 2020.

  3. NICODEMO, Thiago Lima; CARDOSO, Oldimar Pontes. Meta-história para robôs (bots): o conhecimento histórico na era da inteligência artificial. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 12, n. 29, p. 17-52, 2019. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1443

  4. ROSENZWEIG, Roy. Clio Wired: The Future of the Past in the Digital Age. New York: Columbia University Press, 2011.

  5. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.

  6. PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Atualismo 1.0 — Como a ideia de atualização mudou o século XXI. 1. ed. Ouro Preto: SBTHH, 2018.

  7. Dentre as diversas iniciativas recentes protagonizadas por mulheres e minorias, quero destacar páginas como a HuMANAS – Pesquisadoras em rede; o ALB – Arquivo Lésbico Brasileiro, o Aparecidas – Centro de referência em estudos sobre mulheres na ditadura civil-militar brasileira; os vídeos do canal Historiadorxs Negrxs; o podcast Segundas feministas, do GT de gênero da ANPUH; as lives Queerizando a história, promovida pelo LUPPA-UFRGS, Felipe Cruz Tuxá: Negacionismo e genocídio indígena no Brasil e Amara Moira: negacionismo e subjetividade trans, organizadas pela ANPUH-Brasil.



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1 comentario


anita.lucchesi
09 jun 2021

Que alegria ler sobre a leitura do meu trabalho num texto tão instigante e certeiro. Bom estar em boa companhia e seguir fazendo perguntas! Obrigada, Gabriel!

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