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Foto do escritorHygor Mesquita Faria

Genocídio legislado: a tentativa de desmonte da pauta indígena

Analisar a votação do projeto de lei 490 (PL 490) logo após a aprovação de seu mérito na Câmara dos Deputados torna possível o entendimento das tensões, disputas e complexidades da questão indígena no Brasil, principalmente no que diz respeito ao processo de violações dos Direitos Humanos. É interessante perceber que a existência do PL490 e as articulações que são feitas para sua defesa no Congresso Nacional evidencia como se acionam determinados mecanismos e lógicas que legitimam processos de violências contra os povos indígenas. A tese do Marco Temporal surgiu no ano de 2009 no caso do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Durante o processo, foi estabelecida uma série de “salvaguardas institucionais”, entre elas a tese do Marco Temporal, segundo a qual só são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas na data da promulgação da Constituição em 1988. De acordo com a cartilha da Articulação dos Povos Indígenas (APIB):


É uma tese jurídica que defende que os povos indígenas só têm direito à demarcação de suas terras tradicionais se estivessem ocupando essas terras em 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição Federal do Brasil. [...] Porém, é amplamente criticada por juristas, organizações indígenas, movimentos sociais e ambientalistas, que apontam que a tese é um retrocesso aos direitos dos povos indígenas e uma afronta à sua dignidade e sobrevivência. Além disso, muitas comunidades indígenas foram expulsas de suas terras durante a ditadura militar e só conseguiram retornar após a data estabelecida pela tese, o que pode resultar em graves violações dos direitos humanos desses povos.

Em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou os recursos sobre as condicionantes do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e determinou que a decisão passava a ser válida apenas para o caso em questão, não se aplicando a outros processos. Apesar dessa decisão, o argumento não parou de ser instrumentalizado por juristas e parlamentares. Nesse sentido, o PL490 deve ser entendido como uma nítida ação para a implementação do Marco Temporal pela via legislativa e, com isso, contribuir para impulsionar sua aprovação.


O PL 490 e a tese do Marco Temporal não devem ser vistos de maneira isolada na história do Brasil. Ambos evidenciam as tentativas de construção de um projeto de nação que entra em conflito direto com a existência dos povos indígenas. Neste processo, muitas balizas e modos de operação são evocados. Ao observarmos os pontos que legitimam esses elementos no tempo presente, é possível perceber que existe uma insistência em retomar o modus operandi do Estado brasileiro no período da ditadura militar (1964-1985). Principalmente quando observamos que o regime ditatorial buscou a construção de um discurso de desumanização dos povos indígenas, entendendo suas existências como empecilhos para o “progresso” da nação. O Estado brasileiro permitiu que instituições que deveriam atuar em defesa dos povos indígenas se subordinassem aos interesses econômicos, o que ficou bastante evidente no governo Bolsonaro.


Duas observações podem ser feitas. A primeira é que essa articulação evocada pelo governo Bolsonaro não se desmaterializou com a posse de Lula, em 2023. A segunda diz respeito ao fato de que esse processo ocorre em um momento histórico para o Movimento Indígena, materializado na eleição da bancada do cocar, na criação do Ministério dos Povos Indígenas e no fato de que a Funai passou a ser presidida, pela primeira vez, por uma mulher indígena. Percebe-se, então, que a existência do PL 490 e a retomada da discussão da tese do Marco Temporal expressam um momento de grande ataque material e simbólico à pauta indígena. Como é o exemplo do recente processo que buscou o esvaziamento do Ministério dos Povos Indígenas, a partir da retirada dos processos de demarcação do escopo da pasta.


Acampamento Terra Livre em 2023. Foto: Hygor Mesquita.

Ao mesmo tempo em que essa realidade vai se concretizando, a resistência e a voz dos povos indígenas passaram a reverberar em espaços que antes não eram alcançados, justamente pela ocupação inédita de lugares oficiais por lideranças indígenas e pela organização do movimento indígena em torno de questões jurídicas. Percebe-se então que as discussões acontecem em instituições que historicamente atuaram para deslegitimar e recusar formas de saber não ocidentalizadas. Nesse sentido, fica ainda mais explícita a utilização de lógicas que justificam práticas violentas contra os povos indígenas, como pudemos observar nos discursos proferidos no dia da votação do projeto de lei.


Colocando em primeiro plano uma análise geral dos discursos dos parlamentares que votaram a favor do PL490, é possível afirmar que foram mobilizados três eixos centrais:


  • A ideia de que existe “muita terra pra pouco índio” e que tal fato atrapalharia o desenvolvimento nacional;

  • A ideia de que os povos indígenas só podem existir se incorporados ao projeto hegemônico de nação. Os partidários desse posicionamento defendem a passagem de um estado de civilidade considerado inferior para a posição de cidadão brasileiro, uma espécie de estágio final que deve ser a condição de existência dos povos indígenas tutelados pelo Estado;

  • Argumentos que constituem a defesa da Tese do Marco Temporal.


Votação do PL 490 na Câmara dos Deputados. Foto: Pablo Valadares/ Agência Câmara. Wikimedia Commons.

Analisando esses eixos, é possível apontar que, durante a votação do PL 490, houve a mobilização de balizas que legitimam violências em torno da disputa pela demarcação de terras indígenas. Esses marcadores são ancorados nas estruturas da hierarquização racial e são direcionados para uma deslegitimação da presença dos povos indígenas nos espaços institucionais e pelo desprezo pela existência das nações indígenas, que passa fundamentalmente pela questão fundiária.


Tanto o PL 490 quanto a tese do Marco Temporal podem ser entendidos como práticas inconstitucionais. O artigo 231 da Constituição Federal diz que:


São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Este artigo é uma cláusula pétrea, o que significa que se trata de um dispositivo constitucional imutável, visto que fundamental. Nesse sentido, o PL490 e a tese do Marco Temporal buscam a legitimação do genocídio através da inconstitucionalidade, uma vez que tornam legais diversas ações que ferem profundamente a existência dos povos indígenas no Brasil.


A votação do PL 490 e a retomada da tese do Marco Temporal demonstram a intenção de desmonte da pauta indígena e apontam como essa questão tem se localizado no Congresso Nacional. A análise pode contribuir para o entendimento de como as disputas em torno da questão indígena podem se apresentar durante o terceiro governo Lula.


Precisamos hoje resistir à aprovação do PL 490, que agora segue para a votação no Senado. É fundamental que os diversos setores da sociedade brasileira estejam alinhados e contribuam com as mobilizações construídas pelo Movimento Indígena em todo país. Esse é um passo decisivo para que possamos avançar na construção de um projeto de nação que tenha como ponto central a garantia da existência de todos os mundos.


Créditos da imagem destacada: Articulação das Pastorais do Campo. Foto: Andressa Zumpano.


 

Como citar este artigo: FARIA, Hygor Mesquita. Genocídio legislado: a tentativa de desmonte da pauta indígena. História da Ditadura, 6 jun. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/genocidio-legislado-a-tentativa-de-desmonte-da-pauta-indigena. Acesso em: [inserir data].

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