Getúlio Vargas e o “tribunal da História”
Atualizado: 29 de abr. de 2021
“Professor, Getúlio Vargas fez mais coisas boas ou mais coisas ruins?”. É muito comum nossos alunos fazerem esse tipo de pergunta, seja no Ensino Médio ou no Fundamental. Isso também é bom, porque demonstra interesse e envolvimento com a disciplina de História. O que eles não sabem é que ainda na faculdade, e até depois dela, tal julgamento volta e meia cruza, mesmo que de modo mais sutil, a escrita da História.
Muito já se falou sobre o papel dos intelectuais na sociedade e, no caso específico dos historiadores, da necessidade de tentar ao máximo se manter à parte de suas paixões: é a chamada objetividade histórica acompanhada de um método, que confere à História (com "H" maiúsculo) o rigor de análise e o valor científico. Mas, ao mesmo tempo, pessoalmente, cada historiador tem suas posições políticas e ideológicas.
O governo Vargas, chamado pela expressão sacralizadora (e, por isso, equivocada) de “Era Vargas”, é um desses momentos da história que suscita paixões, não só entre as pessoas sem formação em História, mas também entre os historiadores. É impossível estudar um período de tanta pulsão e de muitas mudanças cruciais para a História do Brasil, sem deixar de se posicionar sobre as importantes ações de Getúlio Vargas e de seus contemporâneos. Apenas de 1930 a 1945, num curto período de 15 anos, tivemos uma guerra civil, uma insurreição da extrema-esquerda, outra da extrema-direita, duas constituições, três rompimentos do curso institucional (1930, 1937, 1945), a participação em uma guerra mundial, a descoberta do petróleo no país, viscerais transformações urbanas, uma nova legislação trabalhista, entre outros fatos marcantes para a vida brasileira. Aplica-se àquela época a mesma questão que se faz hoje sobre tudo o que vivemos nos últimos anos na política nacional: “como os historiadores do amanhã explicarão tudo isso?”
A apaixonante história de Getúlio Vargas, que chegou ao poder em 1930, teoricamente rompendo com o que ficou conhecido como “República Velha” (outra expressão parcial, criada pelo governo Vargas para desqualificar os governos anteriores, e que não deveria ser referendada pelos historiadores) e inaugurando o que muitos chamam de “Brasil moderno”, termina de uma forma que nem os mais brilhantes escritores de novelas ou roteiristas de cinema poderiam imaginar: um suicídio espetacular. O Cristo brasileiro dando seu corpo e seu sangue para a salvação, na teoria, de seu povo.
Não à toa Vargas foi mitificado. Talvez seja o governante mais marcante da História do Brasil ou, pelo menos, certamente está entre os dois ou três mais lembrados. O problema é que mitificar afasta o objeto em questão das condições primordiais condicionantes para a escrita da História. Do século XIX pra cá, a História alcançou o status científico graças à busca pela imparcialidade, crítica às fontes e aplicação de um método objetivo de análise.
O historiador francês Georges Duby, no livro A História Continua, toca em um ponto essencial para explicar o que estamos aqui a defender neste artigo: o pesquisador deve buscar a imparcialidade, mesmo ciente da impossibilidade em atingi-la em sua completude. Deve caminhar em direção a ela como quem caminha em direção à linha do horizonte. Sabendo que não vai chegar, mas a tendo como direção. Assim deve ser estudado Getúlio Vargas e qualquer outro personagem. A História deve buscar explicar, compreender, analisar, e não sacralizar, endeusar ou mitificar. Por isso o termo “Era Vargas” parece mais apontar para a antiga “História dos Grandes Homens” – que resumia grandes períodos históricos à simples atuação de reis e rainhas – do que, de fato, a explicar o que ocorreu de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954 em toda a sua complexidade e dando voz a todos os personagens envolvidos.
A ideia de “pai dos pobres” ficou pregada visceralmente na imagem e na memória construída pelo Estado Novo sobre Getúlio Vargas, consolidada após o suicídio. Abro aqui um curto parêntese para lembrar, para o espanto de muita gente, que este período de 1937 a 1945 foi uma ditadura, com repressão, manipulação da informação e censura. Porque, às vezes, parece que isso é esquecido, como se nossa única ditadura tivesse sido a de 1964-85. Soa quase como uma blasfêmia, muitas vezes até mesmo entre os historiadores, quando alguém faz críticas ao homem que criou a CLT e que “deu a vida” para se defender de um golpe em marcha.
Tudo isso é perfeitamente compreensível, ainda mais para um país carente de políticos comprometidos com os valores públicos e os interesses comuns. É fácil perceber a conotação ruim que a palavra “política” tem para a grande maioria dos brasileiros e como faz sucesso os que fingem ou parecem não fazer parte do grupo dos “políticos profissionais”.
Mas, como historiadores e professores, não podemos cair nessa armadilha. Ao ler trabalhos acadêmicos que pesquisaram especificamente a repressão e a censura no governo Vargas, vemos um ponto comum que perpassa todos eles: nenhum compreende como a violência nas ruas, o fechamento de sindicatos e outras associações de trabalhadores, as prisões arbitrárias e até mesmo os bárbaros casos de tortura não macularam a imagem de Vargas para a posteridade, sendo fatos desprezados até mesmo por alguns historiadores. Um exemplo: Filinto Muller, um dos mais violentos chefes de polícia da História do Brasil (1933-42), mantido por 9 anos nesse cargo no Distrito Federal (na época, a cidade do Rio era a capital do Brasil) e respondendo diretamente ao presidente, muitas vezes aparece em análises históricas quase que desvinculado de seu chefe, que praticamente não teria responsabilidade pelos atos de seu subordinado.
Abre-se uma exceção, talvez, para o caso da deportação de Olga Benário, grávida, para a Alemanha nazista, onde acabou morrendo num campo de concentração. Nessa hora, alguns “torcem o nariz” para Vargas. Mas essa talvez seja uma das poucas “manchas” que o gaúcho bonachão parece carregar em seu portfólio para a posteridade. De resto, silêncio. A marca “pai dos pobres” certamente saiu vitoriosa contra a de “ditador autoritário e violento”.
O primeiro passo para sermos pesquisadores e professores de História é nos livrarmos dos mitos, sejam eles de direita ou de esquerda. A História não deve aceitar demonizações e santificações. Voltando ao nosso personagem de hoje, não se trata de apagar as realizações de Getúlio Vargas – como disse, pra mim é o presidente mais marcante e um dos mais significativos personagens de nossa história –, mas sim de analisar os fatos históricos com uso do método, buscando a objetividade, não colaborando para a perpetuação de uma imagem criada numa ditadura e aceita pelo senso comum. Vargas não é o “herói dos trabalhadores”, assim como também não é o “ditador sanguinário fascista”. Cabe ao historiador se livrar dessas paixões e desse reducionismo tolo quando estiver no exercício de sua profissão.
Como já se falou: a história não é um tribunal. Não devemos julgar, mas cuidar para apresentar à sociedade uma múltipla visão dos fatos, com apoio em nossas fontes e em nosso método. Por favor, não devemos alimentar mitos! Nem os de ontem, nem os de hoje. Vamos escrever, aprender e ensinar História e não contos de ficção – que são apaixonantes, mas que não cabem ao historiador.
Crédito da imagem destacada: Getúlio Vargas. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18089_346.