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GetĂșlio Vargas visto pelo vizinho uruguaio

Foto do escritor: Rafael Nascimento GomesRafael Nascimento Gomes

Atualizado: 19 de mar. de 2024

No Brasil, GetĂșlio Vargas é visto como um dos maiores personagens da polĂ­tica do sĂ©culo XX e, por isso, recebeu inĂșmeros adjetivos. Mas como os vizinhos sul-americanos enxergavam Vargas? Oportunista? Ditador? RevolucionĂĄrio? Populista? Veremos neste texto como os hermanos uruguaios descreviam o estadista brasileiro durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). AtravĂ©s de documentos diplomĂĄticos trocados entre as chancelarias, embaixadas e consulados, Ă© possĂ­vel verificar a perspectiva do vizinho uruguaio acerca de Vargas. Com isso, analisaremos os impactos, efeitos e contradiçÔes de um regime ditatorial visto por um paĂ­s vizinho que passava por um processo de redemocratização num perĂ­odo marcado pelo conflito mundial.


O perĂ­odo do Estado Novo (1937-1945) foi marcado pelo autoritarismo de GetĂșlio Vargas, que utilizou de violĂȘncia, perseguição repressĂŁo contra opositores. No Uruguai, apĂłs a ditadura de Gabriel Terra (1933-1938), ocorreu um amplo processo de redemocratização conduzido pelo terrista Alfredo Baldomir (1938-1943) que transmitiu o poder constitucional a Juan JosĂ© de AmĂ©zaga (1943-1947), tambĂ©m do Partido Colorado, com uma campanha vitoriosa intitulada “AmĂ©zaga, candidato de la democracia”.


Tendo em vista aquele contexto, marcado pela deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), buscamos investigar a perspectiva de um paĂ­s vizinho acerca do regime ditatorial de Vargas. A partir de sua projeção regional, exploraremos os efeitos – e as contradiçÔes – da polĂ­tica externa estado-novista a partir da Ăłtica de diplomatas e polĂ­ticos uruguaios. Isto Ă©, o olhar de um paĂ­s vizinho tem muito a contribuir para a compreensĂŁo da histĂłria nacional e, em especial, de um perĂ­odo ditatorial em que as liberdades eram cerceadas.


Cabe destacar que a região do Rio da Prata foi uma preocupação constante na política externa brasileira desde o século XIX, sobretudo, em seu projeto em nível regional. Desde o processo de formação dos Estados nacionais, a Banda Oriental enfrentou um intenso conflito, ora externo, ora interno, até consolidar-se como Estado Oriental do Uruguai. O Brasil, por sua vez, projetou-se no Prata como prioridade de sua política externa imperial frente à rivalidade portenha. Como explica Moniz Bandeira (1998), eram os tempos do expansionismo brasileiro, pois a região representava a chave de acesso ao estuårio superior do Paranå, Uruguai e Paraguai, que banhavam terras consideradas das mais ricas e férteis do Brasil. Portanto, tratava-se de um elemento estratégico geopolítico e militar decisivo. Essa preocupação geopolítica permaneceu na formulação da política externa brasileira ao longo do século XX.


As relaçÔes bilaterais entre Brasil e Uruguai: breves apontamentos


Em relação à região do Rio da Prata, a diplomacia brasileira dos tempos de Vargas manteve as diretrizes implantadas pelo Barão do Rio Branco (1902-1912): a defesa da estabilidade política regional; a não intervenção nos assuntos internos dos países vizinhos e a permanente preocupação de manter o entendimento e o diålogo fluido com Buenos Aires. A política varguista dava continuidade à adesão, à solução pacífica de controvérsias e à preocupação em aumentar o comércio regional, mas não estava totalmente descartada a hipótese de guerra com o vizinho argentino (DORATIOTO, 2014).


Para Eduardo Svartman (1999), a construção da hegemonia brasileira na região não se restringia apenas à presença econÎmica e à superioridade militar, mas envolvia também o campo político-diplomåtico propriamente dito. No decorrer do Estado Novo, o Itamaraty imprimiu uma orientação no sentido de intensificar a presença política brasileira nos demais países latino-americanos, especialmente naqueles que faziam fronteira tanto com o Brasil quanto com a Argentina. No plano bilateral, o governo brasileiro também executaria uma política ativa, cuja orientação era ampliar sua presença política e econÎmica sobre seus principais vizinhos, em especial Uruguai e Paraguai.


Para isso, o Brasil explorava disputas histĂłricas entre os paĂ­ses. Exemplo dessa tradicional rivalidade no Prata entre Argentina e Uruguai foi a ruptura das relaçÔes diplomĂĄticas de julho a setembro de 1932 (NAHUM, 1996). Mais uma vez os paĂ­ses platinos rompiam relaçÔes diplomĂĄticas por motivos de asilo polĂ­tico para opositores do paĂ­s vizinho, as chamadas “atividades de elementos subversivos” no territĂłrio de um ou outro. Depois de dois meses do rompimento, Juan JosĂ© de AmĂ©zaga foi enviado por Gabriel Terra, como agente confidencial, a Buenos Aires para retomar as relaçÔes, e obteve sucesso. Enquanto isso, as relaçÔes com o Brasil se intensificaram.


Nesse contexto, como contrapeso à Argentina, as relaçÔes do Brasil com o Uruguai mereceram certa atenção da diplomacia brasileira e da diplomacia uruguaia (GOMES, 2017). Com maior estabilidade política, apesar das radicalizaçÔes ideológicas entre integralistas e comunistas, Vargas passou a valorizar uma presença mais ativa na região platina, orientada para a ampliação da atuação política e econÎmica sobre seus principais vizinhos. Segundo o presidente brasileiro, com os países americanos, particularmente:


continuamos a praticar uma política de franca e crescente aproximação. Desejamos ampliar, cada vez mais, as relaçÔes de boa vizinhança, dando-lhes um caråter de verdadeira solidariedade continental, e transportando-as mesmo para o terreno da cooperação econÎmica. (VARGAS, 1938, p. 88)

A constatação de que as delegaçÔes do Brasil no exterior e as missĂ”es diplomĂĄticas brasileiras constituĂ­am verdadeiros “postos de observação” da conjuntura internacional, para orientar as açÔes do governo em sua polĂ­tica externa, facilitou a criação e organização de uma agĂȘncia anticomunista no governo Vargas, junto ao MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores. Criada oficialmente em 1937, junto ao MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores, a agĂȘncia de Serviços de Estudos e InvestigaçÔes (SEI) teve como objetivo central dar suporte Ă  polĂ­tica de combate Ă  oposição, particularmente aos militantes partidĂĄrios e sindicais, sendo um grande facilitador para que os ĂłrgĂŁos do governo monitorassem as conexĂ”es dos comunistas brasileiros alĂ©m das fronteiras do paĂ­s (NEPOMUCENO, 2018).


Nessa temĂĄtica, houve cooperação e aproximação dos governos brasileiro e uruguaio, com trocas de informaçÔes das polĂ­cias polĂ­ticas e das chancelarias para tomadas de medidas de repressĂŁo aos seus respectivos opositores. A historiadora uruguaia Ana MarĂ­a RodrĂ­guez Ayçaguer (2008) enfatiza que o combate aos chamados “subversivos” foi um dos cinco pontos que resumiu a agenda bilateral entre Brasil e Uruguai no perĂ­odo. Essa aproximação implicou nĂŁo mais em meras recomendaçÔes ou prisĂ”es de opositores de ambos os lados, mas no rompimento das relaçÔes do Uruguai com a UniĂŁo SoviĂ©tica, por pressĂŁo do governo brasileiro, em dezembro de 1935. A alegação do Brasil era de que a UniĂŁo SoviĂ©tica, que tinha amplos acordos comerciais com o Uruguai, ajudou o Partido Comunista Brasileiro na organização dos levantes de 1935. Mesmo sem comprovação convincente, a pressĂŁo brasileira levou o governo uruguaio, contra sua vontade, mas em nome dos pactos entre paĂ­ses americanos, a romper, durante muitos meses, suas relaçÔes comerciais com a UniĂŁo SoviĂ©tica. Inaugurava-se naquele momento, dentro do governo Vargas, a atuação ativista de uma diplomacia voltada para consecução de polĂ­ticas anticomunistas (NEPOMUCENO, 2018).


Na verdade, GetĂșlio Vargas jĂĄ vinha mantendo entendimento com o governo uruguaio desde o golpe de Estado desferido, em março de 1933, por Gabriel Terra e seus aliados. Documentos diplomĂĄticos atestam que Terra contou com Vargas para deter os opositores de seu governo que adentraram o territĂłrio brasileiro pela fronteira, logo apĂłs o golpe. Em contrapartida, o Uruguai ajudou o governo do Brasil a impedir o trĂąnsito entre comunistas brasileiros e uruguaios. Em 1937, a polĂ­cia polĂ­tica uruguaia conseguiu desbaratar um nĂșcleo de opositores a GetĂșlio, liderados por Flores da Cunha, ex-governador do Rio Grande do Sul, que desde a Argentina e o Paraguai se articulavam em MontevidĂ©u para marchar contra o governo de Vargas.


Visita de GetĂșlio Vargas Ă  MontevidĂ©u, capital Uruguai, em 1935, durante a ditadura do colorado Gabriel Terra (1933-1938).
Visita de GetĂșlio Vargas Ă  MontevidĂ©u, capital Uruguai, em 1935, durante a ditadura do colorado Gabriel Terra (1933-1938). Reprodução.

Durante os anos mais tenebrosos da ditadura terrista, muitos uruguaios conseguiram asilo no Brasil, retornando somente alguns anos depois. Esses foram os casos de Tomås Berreta, que voltou para o Uruguai somente em 1942 e foi eleito presidente em 1947, e Luís Batlle Berres, que regressou para ser vice de Berreta, e o substituiu como presidente entre 1947 e 1951. Outros tantos brasileiros também se exilaram no Uruguai, como Jorge Amado, Cùndido Portinari, Lídia Besouchet, Newton Freitas, entre outros (NEPOMUCENO, 2015).


O Estado Novo e Vargas sob a Ăłtica dos uruguaios


Em novembro de 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo, mais uma vez as relaçÔes brasileiro-uruguaias foram testadas. Nessas circunstĂąncias, a cooperação fronteiriça como polĂ­tica de vigilĂąncia dos opositores a GetĂșlio Vargas marcou esse momento de consolidação de seu poder. O Uruguai, por sua vez, vivia a transição de governos terristas. Durante o governo de Alfredo Baldomir, marcado pela eclosĂŁo da Segunda Guerra Mundial, ocorreram mudanças significativas nos cenĂĄrios internacional e regional que afetaram as relaçÔes bilaterais com o Brasil. Isso porque, apesar de ser um dos seguidores de Terra, Baldomir prometeu mudanças significativas na condução de sua polĂ­tica, sobretudo na polĂ­tica domĂ©stica com a redemocratização do paĂ­s.


Documentação da diplomacia uruguaia sobre o Brasil. In: Política del Brasil. Informaciones-1937. Legación en el Brasil. Serie Brasil (1930-1940). Caja 4 (1935-1945). Carpeta No. 231; AMREU.
Documentação da diplomacia uruguaia sobre o Brasil. In: Política del Brasil. Informaciones-1937. Legación en el Brasil. Serie Brasil (1930-1940). Caja 4 (1935-1945). Carpeta No. 231; AMREU.

No Brasil, desde maio de 1937 pelo menos, os planos para isolar o Rio Grande do Sul com tropas federais avançaram, pois, segundo o presidente, “havia indĂ­cios de que Flores da Cunha preparava um movimento armado” (MCCANN, 2009). Para Vargas, o governador gaĂșcho representava a pedra angular da potencial oposição polĂ­tica dos estados Ă  centralização: os polĂ­ticos de outros estados provavelmente nĂŁo se mexeriam sem sua liderança. Os movimentos polĂ­ticos varguistas, culminados com a instauração do Estado Novo, nĂŁo eram novidade para os cĂ­rculos polĂ­ticos e diplomĂĄticos uruguaios. El PaĂ­s, jornal nacionalista, de 8 de outubro de 1937, por exemplo, divulgava em um de seus artigos “Se esta gestando em Brasil-friamente- la implantaciĂłn de una dictadura militar. Un ataque a las instituciones”. [I] JĂĄ o periĂłdico El DiĂĄrio, em 19 de outubro, estampava em sua capa: “En el tren internacional llegĂł esta mañana a Montevideo el General JosĂ© A. Flores Da Cunha.” [II] Um dos principais opositores do presidente brasileiro, Flores da Cunha, instalara-se em MontevidĂ©u, exilado. Desde sua passagem por Rivera, era observado atentamente pela diplomacia uruguaia. [III]


No mĂȘs seguinte, apĂłs a implantação da ditadura do Estado Novo, um novo embaixador foi designado para ocupar a embaixada em MontevidĂ©u para seguir os passos de Flores da Cunha. Em nota emitida ao chanceler uruguaio, em 4 de janeiro de 1938, JoĂŁo Batista Lusardo oficializou o pedido de vigilĂąncia policial ao polĂ­tico gaĂșcho. Essa assistĂȘncia polĂ­tica e policial num momento em que o Brasil se encontrava sob “estado de emergĂȘncia”, conforme enfatizava o embaixador brasileiro, era necessĂĄrio para prevenir açÔes futuras e conspiratĂłrias dos opositores de Vargas residentes na capital uruguaia. O governo brasileiro jurava tratamento de reciprocidade, caso fosse necessĂĄrio. Dias depois, em encontro com Vargas em Uruguaiana, Lusardo confirmava o apoio do governo terrista. [IV]


Em MontevidĂ©u, ao substituir LucĂ­lio da Cunha Bueno, acusado de manter contato com Flores da Cunha, o novo embaixador brasileiro tinha um objetivo muito claro: vigiar e combater as açÔes polĂ­ticas do ex-governador do Rio Grande do Sul e demais opositores (SVARTMAN, 1999). Assim, ao se aproximar de Gabriel Terra, Lusardo conseguiu que o governo uruguaio determinasse um regime de liberdade vigiada para o polĂ­tico gaĂșcho. Organizou-se um dispositivo legal para monitorĂĄ-lo, tal como a embaixada brasileira em Buenos Aires tinha solicitado ao governo argentino.


Entretanto, mesmo exilado em MontevidĂ©u, Flores da Cunha empreendia campanhas contra o governo Vargas. Em janeiro de 1939, ele foi responsĂĄvel por um artigo publicado em portuguĂȘs intitulado “Panorama financeiro e econĂŽmico do Brazil”, no jornal El PaĂ­s, com diversas crĂ­ticas ao Estado Novo. Apesar de Flores da Cunha nĂŁo ter assinado o artigo, Lusardo descobriu que a autoria era do polĂ­tico gaĂșcho, que mantinha relaçÔes prĂłximas com ex-senador Rodriguez Larreta e seu cunhado e ex-embaixador em Buenos Aires, Leonel Aguirre, ambos dirigentes do jornal nacionalista. No entanto, sua ligação com o blanco LuĂ­s Alberto de Herrera era ainda mais forte, segundo o embaixador brasileiro. NĂŁo teria publicado a matĂ©ria crĂ­tica ao governo brasileiro no jornal de Herrera, El Debate, pois ficaria evidente a sua autoria. [V]


Inicialmente prevista para durar apenas o perĂ­odo necessĂĄrio para obstruir as atividades polĂ­ticas de Flores da Cunha, a estadia de Lusardo na capital uruguaia se prolongou atĂ© outubro de 1945, com a deposição de GetĂșlio Vargas. Sendo o diplomata brasileiro que permaneceu mais tempo em MontevidĂ©u, Lusardo conquistou certa notoriedade nos ambientes polĂ­ticos e sociais uruguaios. Nesse sentido, foi figura fundamental da polĂ­tica varguista para o Uruguai, uma vez que sua longa permanĂȘncia na cidade implementou uma aproximação entre os paĂ­ses, tanto em termos polĂ­ticos quanto econĂŽmicos e culturais.


AlĂ©m da assinatura de acordos e do incremento do comĂ©rcio bilateral, Lusardo encabeçou os esforços do Itamaraty para tornar o Brasil mais presente no vizinho meridional, pela inauguração de linhas regulares de trem e de aviĂŁo entre os paĂ­ses. Do ponto de vista polĂ­tico, a embaixada brasileira teve ĂȘxito junto aos governos uruguaios do perĂ­odo, conseguindo desde a colaboração da polĂ­cia local na vigilĂąncia de Flores da Cunha atĂ© a obtenção de informaçÔes sigilosas a respeito da Argentina, cuja influĂȘncia polĂ­tica na regiĂŁo preocupava tanto o governo brasileiro quanto o de MontevidĂ©u. Antes mesmo da ConferĂȘncia do Rio de Janeiro, em 1942, por exemplo, o Brasil consolidara o apoio do Uruguai Ă  sua polĂ­tica para o Prata, de forma que Lusardo indicou Alberto Guani, chanceler uruguaio, para assessorar Oswaldo Aranha nos trabalhos dessa conferĂȘncia (SVARTMAN, 1999, p. 65).


João Batista Lusardo em reunião com o presidente do Uruguai, Alfredo Baldomir, o chanceler Alberto Guani e o ministro Juan José de Amézaga. Fonte: LUSARDO, João Batista. Discursos parlamentares. Seleção, Introdução e Notas de Glauco Carneiro. Brasília, Cùmara dos Deputados, 1983, p.658).
João Batista Lusardo em reunião com o presidente do Uruguai, Alfredo Baldomir, o chanceler Alberto Guani e o ministro Juan José de Amézaga. Fonte: LUSARDO, João Batista. Discursos parlamentares. Seleção, Introdução e Notas de Glauco Carneiro. Brasília, Cùmara dos Deputados, 1983, p.658).

O Uruguai, por sua vez, mantendo sua “neutralidade aliadĂłfila”, passava por mudanças de governos colorados. Em 1Âș de março de 1943, Alfredo Baldomir transmitiu seu mandato presidencial para Juan JosĂ© de AmĂ©zaga, declaradamente prĂł-aliado e prĂł-norte-americano. Seu governo foi marcado por intensos e ferrenhos debates polĂ­ticos acerca do envolvimento ou nĂŁo de seu paĂ­s no conflito mundial, sobretudo, apĂłs a participação efetiva do Brasil com envio de tropas. Alberto Guani, chanceler de 1938 a 1943 e vice-presidente de 1943 a 1947, passou de um governo transitĂłrio em termos de redemocratização para a consolidação aliadĂłfila do governo AmĂ©zaga com inalterĂĄvel adesĂŁo a Washington: da neutralidade ao compromisso bĂ©lico. Para Romeo PĂ©rez AntĂłn (2010), se dependesse pessoalmente de Guani, o Uruguai teria declarado guerra ao Eixo imediatamente apĂłs os ataques de Pearl Harbor. O presidente AmĂ©zaga, em seu primeiro discurso pĂșblico, destacou que nada mudaria em relação Ă  condução da polĂ­tica externa uruguaia. Segundo ele:


Uruguai permanecerå solidårio com os países do continente americano e manterå os laços fraternais que o unem aos seus dois grandes vizinhos: Argentina e Brasil. A nação reprova energicamente o regime das ditaduras que impuseram ao mundo a mais cruel das guerras, verdadeiro desafio à civilização. [VI]

De toda forma, o Uruguai rompeu relaçÔes diplomĂĄticas com os paĂ­ses do Eixo em 25 de janeiro de 1942. Anteriormente, o paĂ­s tinha assumido uma postura de neutralidade inclinada para os beligerantes antifascistas e compatĂ­vel com a solidariedade continental em sistema defensivo (ANTÓN, 2010). Apesar de ter assumido uma postura prĂł-aliada desde o inĂ­cio do conflito, o paĂ­s declarou guerra ao Eixo somente em fevereiro de 1945. Em contrapartida, no dia 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou guerra Ă  Alemanha e Ă  ItĂĄlia. A decisĂŁo nĂŁo foi fĂĄcil, sobretudo diante da penĂșria e despreparo bĂ©lico das Forças Armadas. A declaração de guerra era uma resposta ao afundamento de cinco navios de passageiros pelo submarino alemĂŁo U-507, entre os dias 15 e 17 de agosto, matando 605 brasileiros no litoral de Sergipe e da Bahia. Durante dois dias, na capital do paĂ­s, em diversas capitais de estados e em inĂșmeros municĂ­pios, ocorreram manifestaçÔes, passeatas e comĂ­cios condenando a atitude do governo alemĂŁo e exigindo que Vargas declarasse guerra Ă  Alemanha (FERREIRA, 2017).


A Segunda Guerra Mundial redefiniu os contextos mundial e regional. Desde o momento em que o Brasil se definiu pela democracia contra o totalitarismo nazifascista, o governo de GetĂșlio viu-se condenado. O Estado Novo foi se deteriorando Ă  medida que a guerra chegava ao fim. Muitas forças sociais, inclusive os militares, que haviam apoiado o regime, se adaptaram rapidamente Ă s novas tendĂȘncias internacionais e afirmavam seu apoio Ă  causa democrĂĄtica, enquanto os ataques dos descontentes se concentravam sobre o presidente Vargas. Fossem neodemocratas por conveniĂȘncia ou convicção, o fato Ă© que a conversĂŁo desses lĂ­deres desempenhou um papel expressivo na erosĂŁo do apoio ao regime varguista (MOURA, 2012).


Banquete ao Presidente Baldomir na Embaixada do Brasil. Fonte: Embaixada do Brasil em Montevidéu
Banquete ao Presidente Baldomir na Embaixada do Brasil. Fonte: Embaixada do Brasil em MontevidĂ©u. LUSARDO para ARANHA, MontevidĂ©u, of. nÂș 357, 17.10.1941. Banquete ao Presidente Baldomir na Embaixada do Brasil. In: Set-Dez/1941; AHI, RJ; 33/4/11.

A partir da documentação consultada e analisada, pode-se concluir que as relaçÔes diplomåticas entre Brasil e Uruguai durante o Estado Novo foram, predominantemente, amistosas. No entanto, estas não estiveram livres de pressÔes, tensÔes e conflitos, sobretudo, a partir do início da II Guerra Mundial. Tradicionalmente, no Rio da Prata, as relaçÔes bilaterais entre Brasil e Uruguai serviram como um contrapeso às relaçÔes conflitantes entre Brasil e Argentina, e às relaçÔes hostis entre Uruguai e Argentina.


Com a instalação do Estado Novo, houve uma reafirmação das relaçÔes brasileiro-uruguaias. Isso, em grande medida, por conta da aproximação polĂ­tico-ideolĂłgica dos regimes polĂ­ticos daquele perĂ­odo, isto Ă©, os governos terristas de Gabriel Terra (1931-1938) e Alfredo Baldomir (1938-1942), no Uruguai, e o governo estado-novista no Brasil (1937-1945). Nem mesmo com as mudanças de regimes polĂ­ticos houve o esfriamento das relaçÔes brasileiro-uruguaias. É verdade que as preocupaçÔes e tensĂ”es com a Argentina contribuĂ­ram para essa proximidade entre os paĂ­ses. Por conseguinte, o Uruguai esteve mais prĂłximo do Brasil, bem como assumiu posturas convergentes Ă s posiçÔes brasileiras em fĂłruns pan-americanos.


Por fim, podemos dizer que GetĂșlio Vargas nĂŁo era uma unanimidade; nĂŁo era visto de forma homogĂȘnea pelos polĂ­ticos, diplomatas e militares uruguaios. De todo modo, ele era um aliado necessĂĄrio para se opor e contrabalancear ao vizinho agressivo do outro lado do Rio da Prata. Constata-se que o olhar de um paĂ­s vizinho como o Uruguai tem muito a contribuir para o estudo do funcionamento polĂ­tico e diplomĂĄtico do Brasil.


 

Notas:


[I] El País, 8 de octubre de 1937. In: Ofício No. 214, de 22 de outubro de 1937. Lucílio da Cunha Bueno ao Ministro Mårio de Pimentel Brandão. Situação política do Brasil. Ofícios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada brasileira em Montevidéu. In: AHI, Rio de Janeiro.

[II] El Diårio, 19 de octubre de 1937. In: Ofício No. 214, de 22 de outubro de 1937. Lucílio da Cunha Bueno ao Ministro Mårio de Pimentel Brandão. Situação política do Brasil. Ofícios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada brasileira em Montevidéu. In: AHI, Rio de Janeiro.

[III] Telegrama de 18 de octubre de 1937. Garibaldi Batello, cĂłnsul uruguayo en Rivera, al Ministro de Relaciones Exteriores. Diplomacia. Montevideo. In: PolĂ­tica del Brasil. Informaciones-1937. LegaciĂłn en el Brasil. Serie Brasil (1930-1940). Caja 4 (1935-1945). Carpeta No. 231; AMREU.

[IV] Nota no. 2, de 4 de janeiro de 1938. João Batista Lusardo ao Ministro de Estado das RelaçÔes Exteriores José Espalter. In: Ofícios. Mar/Jul. 1938. Embaixada brasileira em Montevidéu. AHI, Rio de Janeiro; 33/3/9.

[V] Ofício No. 6, de 17 de janeiro de 1939. João Batista Lusardo ao Ministro Oswaldo Aranha. Campanha contra o Brasil por brasileiros. In: Ofícios. Nov/1938-Jan/1939. Embaixada brasileira em Montevidéu. AHI, Rio de Janeiro; 33/3/11.

[VI] Tradução nossa. Telegrama No. 231, de 16 de marzo de 1943. Joseph de Neef, ministro de BĂ©lgica, comenta el discurso inaugural del nuevo Presidente de la RepĂșblica, Juan JosĂ© AmĂ©zaga, y el nombramiento de JosĂ© Serrato en el Ministerio de Relaciones Exteriores. In: NAHUM, 1998; p. 484.


ReferĂȘncias:


ANTÓN, Romeo PĂ©rez. PolĂ­tica exterior uruguaya del siglo XX. Montevideo, Ediciones de la Plaza, 2010.

BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. (Orgs.). A Era Vargas: desenvolvimento, economia e sociedade. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

DE LOS SANTOS, Clarel. El péndulo magnetizado: las relaciones de Uruguay con Brasil durante la II Guerra Mundial. Montevideo, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Avances de Investigación, 2011.

DORATIOTO, Francisco. O Brasil no Rio da Prata. Brasília: FUNAG; 2014.

FREGA, Ana et al. Historia del Uruguay en el siglo XX: 1890-2005. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2011.

GOMES, Rafael Nascimento. As relaçÔes diplomĂĄticas entre Brasil e Uruguai (1931-1938). O Brasil de GetĂșlio Vargas visto pelo Uruguai de Gabriel Terra. JundiaĂ­: Paco Editorial, 2017.

______. O comunismo e o anticomunismo entre o Brasil e o Uruguai ao longo da década de 1930. In: Revista Latino-Americana de História. UNISINOS; vol. 7, n. 19-jan/jul de 2018; p. 171-189.

NEPOMUCENO, Maria Margarida Cintra. A missĂŁo cultural brasileira no Uruguai: A construção de uma modelo de diplomacia cultural do Brasil na AmĂ©rica Latina. Tese de doutorado – Programa de PĂłs-Graduação em Integração da AmĂ©rica Latina (PROLAM/USP), SĂŁo Paulo, 2015.

ODDONE, Juan Antonio. El Uruguay entre la depresión y la guerra. 1929-1945. Montevideo, FCU/FHCE, 1990.

RODRÍGUEZ AYÇAGUER, Ana María. La diplomacia del anticomunismo: la influencia del gobierno de Getulio Vargas en la interrupción de las relaciones diplomáticas de Uruguay con la URSS en diciembre de 1935. In: Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXIV, n. 1, jun., PUC-RS; 2008; pp. 92-120.

SVARTMAN, Eduardo Munhoz. Diplomatas, políticos e militares. As visÔes do Brasil sobre a Argentina durante o Estado Novo. Passo Fundo: EDUPF, 1999.

VARGAS, GetĂșlio. DiĂĄrios. SĂŁo Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV; 1995.


Como citar este artigo:  

GOMES, Rafael Nascimento. GetĂșlio Vargas visto pelo vizinho uruguaio. HistĂłria da Ditadura, 29 jan. 2024. DisponĂ­vel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/getĂșlio-vargas-visto-pelo-vizinho-uruguaio. Acesso em: [inserir data].



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