GetĂșlio Vargas visto pelo vizinho uruguaio
Atualizado: 19 de mar. de 2024
No Brasil, GetĂșlio Vargas é visto como um dos maiores personagens da polĂtica do sĂ©culo XX e, por isso, recebeu inĂșmeros adjetivos. Mas como os vizinhos sul-americanos enxergavam Vargas? Oportunista? Ditador? RevolucionĂĄrio? Populista? Veremos neste texto como os hermanos uruguaios descreviam o estadista brasileiro durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). AtravĂ©s de documentos diplomĂĄticos trocados entre as chancelarias, embaixadas e consulados, Ă© possĂvel verificar a perspectiva do vizinho uruguaio acerca de Vargas. Com isso, analisaremos os impactos, efeitos e contradiçÔes de um regime ditatorial visto por um paĂs vizinho que passava por um processo de redemocratização num perĂodo marcado pelo conflito mundial.
O perĂodo do Estado Novo (1937-1945) foi marcado pelo autoritarismo de GetĂșlio Vargas, que utilizou de violĂȘncia, perseguição repressĂŁo contra opositores. No Uruguai, apĂłs a ditadura de Gabriel Terra (1933-1938), ocorreu um amplo processo de redemocratização conduzido pelo terrista Alfredo Baldomir (1938-1943) que transmitiu o poder constitucional a Juan JosĂ© de AmĂ©zaga (1943-1947), tambĂ©m do Partido Colorado, com uma campanha vitoriosa intitulada âAmĂ©zaga, candidato de la democraciaâ.
Tendo em vista aquele contexto, marcado pela deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), buscamos investigar a perspectiva de um paĂs vizinho acerca do regime ditatorial de Vargas. A partir de sua projeção regional, exploraremos os efeitos â e as contradiçÔes â da polĂtica externa estado-novista a partir da Ăłtica de diplomatas e polĂticos uruguaios. Isto Ă©, o olhar de um paĂs vizinho tem muito a contribuir para a compreensĂŁo da histĂłria nacional e, em especial, de um perĂodo ditatorial em que as liberdades eram cerceadas.
Cabe destacar que a regiĂŁo do Rio da Prata foi uma preocupação constante na polĂtica externa brasileira desde o sĂ©culo XIX, sobretudo, em seu projeto em nĂvel regional. Desde o processo de formação dos Estados nacionais, a Banda Oriental enfrentou um intenso conflito, ora externo, ora interno, atĂ© consolidar-se como Estado Oriental do Uruguai. O Brasil, por sua vez, projetou-se no Prata como prioridade de sua polĂtica externa imperial frente Ă rivalidade portenha. Como explica Moniz Bandeira (1998), eram os tempos do expansionismo brasileiro, pois a regiĂŁo representava a chave de acesso ao estuĂĄrio superior do ParanĂĄ, Uruguai e Paraguai, que banhavam terras consideradas das mais ricas e fĂ©rteis do Brasil. Portanto, tratava-se de um elemento estratĂ©gico geopolĂtico e militar decisivo. Essa preocupação geopolĂtica permaneceu na formulação da polĂtica externa brasileira ao longo do sĂ©culo XX.
As relaçÔes bilaterais entre Brasil e Uruguai: breves apontamentos
Em relação Ă regiĂŁo do Rio da Prata, a diplomacia brasileira dos tempos de Vargas manteve as diretrizes implantadas pelo BarĂŁo do Rio Branco (1902-1912): a defesa da estabilidade polĂtica regional; a nĂŁo intervenção nos assuntos internos dos paĂses vizinhos e a permanente preocupação de manter o entendimento e o diĂĄlogo fluido com Buenos Aires. A polĂtica varguista dava continuidade Ă adesĂŁo, Ă solução pacĂfica de controvĂ©rsias e Ă preocupação em aumentar o comĂ©rcio regional, mas nĂŁo estava totalmente descartada a hipĂłtese de guerra com o vizinho argentino (DORATIOTO, 2014).
Para Eduardo Svartman (1999), a construção da hegemonia brasileira na regiĂŁo nĂŁo se restringia apenas Ă presença econĂŽmica e Ă superioridade militar, mas envolvia tambĂ©m o campo polĂtico-diplomĂĄtico propriamente dito. No decorrer do Estado Novo, o Itamaraty imprimiu uma orientação no sentido de intensificar a presença polĂtica brasileira nos demais paĂses latino-americanos, especialmente naqueles que faziam fronteira tanto com o Brasil quanto com a Argentina. No plano bilateral, o governo brasileiro tambĂ©m executaria uma polĂtica ativa, cuja orientação era ampliar sua presença polĂtica e econĂŽmica sobre seus principais vizinhos, em especial Uruguai e Paraguai.
Para isso, o Brasil explorava disputas histĂłricas entre os paĂses. Exemplo dessa tradicional rivalidade no Prata entre Argentina e Uruguai foi a ruptura das relaçÔes diplomĂĄticas de julho a setembro de 1932 (NAHUM, 1996). Mais uma vez os paĂses platinos rompiam relaçÔes diplomĂĄticas por motivos de asilo polĂtico para opositores do paĂs vizinho, as chamadas âatividades de elementos subversivosâ no territĂłrio de um ou outro. Depois de dois meses do rompimento, Juan JosĂ© de AmĂ©zaga foi enviado por Gabriel Terra, como agente confidencial, a Buenos Aires para retomar as relaçÔes, e obteve sucesso. Enquanto isso, as relaçÔes com o Brasil se intensificaram.
Nesse contexto, como contrapeso Ă Argentina, as relaçÔes do Brasil com o Uruguai mereceram certa atenção da diplomacia brasileira e da diplomacia uruguaia (GOMES, 2017). Com maior estabilidade polĂtica, apesar das radicalizaçÔes ideolĂłgicas entre integralistas e comunistas, Vargas passou a valorizar uma presença mais ativa na regiĂŁo platina, orientada para a ampliação da atuação polĂtica e econĂŽmica sobre seus principais vizinhos. Segundo o presidente brasileiro, com os paĂses americanos, particularmente:
continuamos a praticar uma polĂtica de franca e crescente aproximação. Desejamos ampliar, cada vez mais, as relaçÔes de boa vizinhança, dando-lhes um carĂĄter de verdadeira solidariedade continental, e transportando-as mesmo para o terreno da cooperação econĂŽmica. (VARGAS, 1938, p. 88)
A constatação de que as delegaçÔes do Brasil no exterior e as missĂ”es diplomĂĄticas brasileiras constituĂam verdadeiros âpostos de observaçãoâ da conjuntura internacional, para orientar as açÔes do governo em sua polĂtica externa, facilitou a criação e organização de uma agĂȘncia anticomunista no governo Vargas, junto ao MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores. Criada oficialmente em 1937, junto ao MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores, a agĂȘncia de Serviços de Estudos e InvestigaçÔes (SEI) teve como objetivo central dar suporte Ă polĂtica de combate Ă oposição, particularmente aos militantes partidĂĄrios e sindicais, sendo um grande facilitador para que os ĂłrgĂŁos do governo monitorassem as conexĂ”es dos comunistas brasileiros alĂ©m das fronteiras do paĂs (NEPOMUCENO, 2018).
Nessa temĂĄtica, houve cooperação e aproximação dos governos brasileiro e uruguaio, com trocas de informaçÔes das polĂcias polĂticas e das chancelarias para tomadas de medidas de repressĂŁo aos seus respectivos opositores. A historiadora uruguaia Ana MarĂa RodrĂguez Ayçaguer (2008) enfatiza que o combate aos chamados âsubversivosâ foi um dos cinco pontos que resumiu a agenda bilateral entre Brasil e Uruguai no perĂodo. Essa aproximação implicou nĂŁo mais em meras recomendaçÔes ou prisĂ”es de opositores de ambos os lados, mas no rompimento das relaçÔes do Uruguai com a UniĂŁo SoviĂ©tica, por pressĂŁo do governo brasileiro, em dezembro de 1935. A alegação do Brasil era de que a UniĂŁo SoviĂ©tica, que tinha amplos acordos comerciais com o Uruguai, ajudou o Partido Comunista Brasileiro na organização dos levantes de 1935. Mesmo sem comprovação convincente, a pressĂŁo brasileira levou o governo uruguaio, contra sua vontade, mas em nome dos pactos entre paĂses americanos, a romper, durante muitos meses, suas relaçÔes comerciais com a UniĂŁo SoviĂ©tica. Inaugurava-se naquele momento, dentro do governo Vargas, a atuação ativista de uma diplomacia voltada para consecução de polĂticas anticomunistas (NEPOMUCENO, 2018).
Na verdade, GetĂșlio Vargas jĂĄ vinha mantendo entendimento com o governo uruguaio desde o golpe de Estado desferido, em março de 1933, por Gabriel Terra e seus aliados. Documentos diplomĂĄticos atestam que Terra contou com Vargas para deter os opositores de seu governo que adentraram o territĂłrio brasileiro pela fronteira, logo apĂłs o golpe. Em contrapartida, o Uruguai ajudou o governo do Brasil a impedir o trĂąnsito entre comunistas brasileiros e uruguaios. Em 1937, a polĂcia polĂtica uruguaia conseguiu desbaratar um nĂșcleo de opositores a GetĂșlio, liderados por Flores da Cunha, ex-governador do Rio Grande do Sul, que desde a Argentina e o Paraguai se articulavam em MontevidĂ©u para marchar contra o governo de Vargas.

Durante os anos mais tenebrosos da ditadura terrista, muitos uruguaios conseguiram asilo no Brasil, retornando somente alguns anos depois. Esses foram os casos de TomĂĄs Berreta, que voltou para o Uruguai somente em 1942 e foi eleito presidente em 1947, e LuĂs Batlle Berres, que regressou para ser vice de Berreta, e o substituiu como presidente entre 1947 e 1951. Outros tantos brasileiros tambĂ©m se exilaram no Uruguai, como Jorge Amado, CĂąndido Portinari, LĂdia Besouchet, Newton Freitas, entre outros (NEPOMUCENO, 2015).
O Estado Novo e Vargas sob a Ăłtica dos uruguaios
Em novembro de 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo, mais uma vez as relaçÔes brasileiro-uruguaias foram testadas. Nessas circunstĂąncias, a cooperação fronteiriça como polĂtica de vigilĂąncia dos opositores a GetĂșlio Vargas marcou esse momento de consolidação de seu poder. O Uruguai, por sua vez, vivia a transição de governos terristas. Durante o governo de Alfredo Baldomir, marcado pela eclosĂŁo da Segunda Guerra Mundial, ocorreram mudanças significativas nos cenĂĄrios internacional e regional que afetaram as relaçÔes bilaterais com o Brasil. Isso porque, apesar de ser um dos seguidores de Terra, Baldomir prometeu mudanças significativas na condução de sua polĂtica, sobretudo na polĂtica domĂ©stica com a redemocratização do paĂs.

No Brasil, desde maio de 1937 pelo menos, os planos para isolar o Rio Grande do Sul com tropas federais avançaram, pois, segundo o presidente, âhavia indĂcios de que Flores da Cunha preparava um movimento armadoâ (MCCANN, 2009). Para Vargas, o governador gaĂșcho representava a pedra angular da potencial oposição polĂtica dos estados Ă centralização: os polĂticos de outros estados provavelmente nĂŁo se mexeriam sem sua liderança. Os movimentos polĂticos varguistas, culminados com a instauração do Estado Novo, nĂŁo eram novidade para os cĂrculos polĂticos e diplomĂĄticos uruguaios. El PaĂs, jornal nacionalista, de 8 de outubro de 1937, por exemplo, divulgava em um de seus artigos âSe esta gestando em Brasil-friamente- la implantaciĂłn de una dictadura militar. Un ataque a las institucionesâ. [I] JĂĄ o periĂłdico El DiĂĄrio, em 19 de outubro, estampava em sua capa: âEn el tren internacional llegĂł esta mañana a Montevideo el General JosĂ© A. Flores Da Cunha.â [II] Um dos principais opositores do presidente brasileiro, Flores da Cunha, instalara-se em MontevidĂ©u, exilado. Desde sua passagem por Rivera, era observado atentamente pela diplomacia uruguaia. [III]
No mĂȘs seguinte, apĂłs a implantação da ditadura do Estado Novo, um novo embaixador foi designado para ocupar a embaixada em MontevidĂ©u para seguir os passos de Flores da Cunha. Em nota emitida ao chanceler uruguaio, em 4 de janeiro de 1938, JoĂŁo Batista Lusardo oficializou o pedido de vigilĂąncia policial ao polĂtico gaĂșcho. Essa assistĂȘncia polĂtica e policial num momento em que o Brasil se encontrava sob âestado de emergĂȘnciaâ, conforme enfatizava o embaixador brasileiro, era necessĂĄrio para prevenir açÔes futuras e conspiratĂłrias dos opositores de Vargas residentes na capital uruguaia. O governo brasileiro jurava tratamento de reciprocidade, caso fosse necessĂĄrio. Dias depois, em encontro com Vargas em Uruguaiana, Lusardo confirmava o apoio do governo terrista. [IV]
Em MontevidĂ©u, ao substituir LucĂlio da Cunha Bueno, acusado de manter contato com Flores da Cunha, o novo embaixador brasileiro tinha um objetivo muito claro: vigiar e combater as açÔes polĂticas do ex-governador do Rio Grande do Sul e demais opositores (SVARTMAN, 1999). Assim, ao se aproximar de Gabriel Terra, Lusardo conseguiu que o governo uruguaio determinasse um regime de liberdade vigiada para o polĂtico gaĂșcho. Organizou-se um dispositivo legal para monitorĂĄ-lo, tal como a embaixada brasileira em Buenos Aires tinha solicitado ao governo argentino.
Entretanto, mesmo exilado em MontevidĂ©u, Flores da Cunha empreendia campanhas contra o governo Vargas. Em janeiro de 1939, ele foi responsĂĄvel por um artigo publicado em portuguĂȘs intitulado âPanorama financeiro e econĂŽmico do Brazilâ, no jornal El PaĂs, com diversas crĂticas ao Estado Novo. Apesar de Flores da Cunha nĂŁo ter assinado o artigo, Lusardo descobriu que a autoria era do polĂtico gaĂșcho, que mantinha relaçÔes prĂłximas com ex-senador Rodriguez Larreta e seu cunhado e ex-embaixador em Buenos Aires, Leonel Aguirre, ambos dirigentes do jornal nacionalista. No entanto, sua ligação com o blanco LuĂs Alberto de Herrera era ainda mais forte, segundo o embaixador brasileiro. NĂŁo teria publicado a matĂ©ria crĂtica ao governo brasileiro no jornal de Herrera, El Debate, pois ficaria evidente a sua autoria. [V]
Inicialmente prevista para durar apenas o perĂodo necessĂĄrio para obstruir as atividades polĂticas de Flores da Cunha, a estadia de Lusardo na capital uruguaia se prolongou atĂ© outubro de 1945, com a deposição de GetĂșlio Vargas. Sendo o diplomata brasileiro que permaneceu mais tempo em MontevidĂ©u, Lusardo conquistou certa notoriedade nos ambientes polĂticos e sociais uruguaios. Nesse sentido, foi figura fundamental da polĂtica varguista para o Uruguai, uma vez que sua longa permanĂȘncia na cidade implementou uma aproximação entre os paĂses, tanto em termos polĂticos quanto econĂŽmicos e culturais.
AlĂ©m da assinatura de acordos e do incremento do comĂ©rcio bilateral, Lusardo encabeçou os esforços do Itamaraty para tornar o Brasil mais presente no vizinho meridional, pela inauguração de linhas regulares de trem e de aviĂŁo entre os paĂses. Do ponto de vista polĂtico, a embaixada brasileira teve ĂȘxito junto aos governos uruguaios do perĂodo, conseguindo desde a colaboração da polĂcia local na vigilĂąncia de Flores da Cunha atĂ© a obtenção de informaçÔes sigilosas a respeito da Argentina, cuja influĂȘncia polĂtica na regiĂŁo preocupava tanto o governo brasileiro quanto o de MontevidĂ©u. Antes mesmo da ConferĂȘncia do Rio de Janeiro, em 1942, por exemplo, o Brasil consolidara o apoio do Uruguai Ă sua polĂtica para o Prata, de forma que Lusardo indicou Alberto Guani, chanceler uruguaio, para assessorar Oswaldo Aranha nos trabalhos dessa conferĂȘncia (SVARTMAN, 1999, p. 65).

O Uruguai, por sua vez, mantendo sua âneutralidade aliadĂłfilaâ, passava por mudanças de governos colorados. Em 1Âș de março de 1943, Alfredo Baldomir transmitiu seu mandato presidencial para Juan JosĂ© de AmĂ©zaga, declaradamente prĂł-aliado e prĂł-norte-americano. Seu governo foi marcado por intensos e ferrenhos debates polĂticos acerca do envolvimento ou nĂŁo de seu paĂs no conflito mundial, sobretudo, apĂłs a participação efetiva do Brasil com envio de tropas. Alberto Guani, chanceler de 1938 a 1943 e vice-presidente de 1943 a 1947, passou de um governo transitĂłrio em termos de redemocratização para a consolidação aliadĂłfila do governo AmĂ©zaga com inalterĂĄvel adesĂŁo a Washington: da neutralidade ao compromisso bĂ©lico. Para Romeo PĂ©rez AntĂłn (2010), se dependesse pessoalmente de Guani, o Uruguai teria declarado guerra ao Eixo imediatamente apĂłs os ataques de Pearl Harbor. O presidente AmĂ©zaga, em seu primeiro discurso pĂșblico, destacou que nada mudaria em relação Ă condução da polĂtica externa uruguaia. Segundo ele:
Uruguai permanecerĂĄ solidĂĄrio com os paĂses do continente americano e manterĂĄ os laços fraternais que o unem aos seus dois grandes vizinhos: Argentina e Brasil. A nação reprova energicamente o regime das ditaduras que impuseram ao mundo a mais cruel das guerras, verdadeiro desafio Ă civilização. [VI]
De toda forma, o Uruguai rompeu relaçÔes diplomĂĄticas com os paĂses do Eixo em 25 de janeiro de 1942. Anteriormente, o paĂs tinha assumido uma postura de neutralidade inclinada para os beligerantes antifascistas e compatĂvel com a solidariedade continental em sistema defensivo (ANTĂN, 2010). Apesar de ter assumido uma postura prĂł-aliada desde o inĂcio do conflito, o paĂs declarou guerra ao Eixo somente em fevereiro de 1945. Em contrapartida, no dia 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou guerra Ă Alemanha e Ă ItĂĄlia. A decisĂŁo nĂŁo foi fĂĄcil, sobretudo diante da penĂșria e despreparo bĂ©lico das Forças Armadas. A declaração de guerra era uma resposta ao afundamento de cinco navios de passageiros pelo submarino alemĂŁo U-507, entre os dias 15 e 17 de agosto, matando 605 brasileiros no litoral de Sergipe e da Bahia. Durante dois dias, na capital do paĂs, em diversas capitais de estados e em inĂșmeros municĂpios, ocorreram manifestaçÔes, passeatas e comĂcios condenando a atitude do governo alemĂŁo e exigindo que Vargas declarasse guerra Ă Alemanha (FERREIRA, 2017).
A Segunda Guerra Mundial redefiniu os contextos mundial e regional. Desde o momento em que o Brasil se definiu pela democracia contra o totalitarismo nazifascista, o governo de GetĂșlio viu-se condenado. O Estado Novo foi se deteriorando Ă medida que a guerra chegava ao fim. Muitas forças sociais, inclusive os militares, que haviam apoiado o regime, se adaptaram rapidamente Ă s novas tendĂȘncias internacionais e afirmavam seu apoio Ă causa democrĂĄtica, enquanto os ataques dos descontentes se concentravam sobre o presidente Vargas. Fossem neodemocratas por conveniĂȘncia ou convicção, o fato Ă© que a conversĂŁo desses lĂderes desempenhou um papel expressivo na erosĂŁo do apoio ao regime varguista (MOURA, 2012).

A partir da documentação consultada e analisada, pode-se concluir que as relaçÔes diplomĂĄticas entre Brasil e Uruguai durante o Estado Novo foram, predominantemente, amistosas. No entanto, estas nĂŁo estiveram livres de pressĂ”es, tensĂ”es e conflitos, sobretudo, a partir do inĂcio da II Guerra Mundial. Tradicionalmente, no Rio da Prata, as relaçÔes bilaterais entre Brasil e Uruguai serviram como um contrapeso Ă s relaçÔes conflitantes entre Brasil e Argentina, e Ă s relaçÔes hostis entre Uruguai e Argentina.
Com a instalação do Estado Novo, houve uma reafirmação das relaçÔes brasileiro-uruguaias. Isso, em grande medida, por conta da aproximação polĂtico-ideolĂłgica dos regimes polĂticos daquele perĂodo, isto Ă©, os governos terristas de Gabriel Terra (1931-1938) e Alfredo Baldomir (1938-1942), no Uruguai, e o governo estado-novista no Brasil (1937-1945). Nem mesmo com as mudanças de regimes polĂticos houve o esfriamento das relaçÔes brasileiro-uruguaias. Ă verdade que as preocupaçÔes e tensĂ”es com a Argentina contribuĂram para essa proximidade entre os paĂses. Por conseguinte, o Uruguai esteve mais prĂłximo do Brasil, bem como assumiu posturas convergentes Ă s posiçÔes brasileiras em fĂłruns pan-americanos.
Por fim, podemos dizer que GetĂșlio Vargas nĂŁo era uma unanimidade; nĂŁo era visto de forma homogĂȘnea pelos polĂticos, diplomatas e militares uruguaios. De todo modo, ele era um aliado necessĂĄrio para se opor e contrabalancear ao vizinho agressivo do outro lado do Rio da Prata. Constata-se que o olhar de um paĂs vizinho como o Uruguai tem muito a contribuir para o estudo do funcionamento polĂtico e diplomĂĄtico do Brasil.
Notas:
[I] El PaĂs, 8 de octubre de 1937. In: OfĂcio No. 214, de 22 de outubro de 1937. LucĂlio da Cunha Bueno ao Ministro MĂĄrio de Pimentel BrandĂŁo. Situação polĂtica do Brasil. OfĂcios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada brasileira em MontevidĂ©u. In: AHI, Rio de Janeiro.
[II] El DiĂĄrio, 19 de octubre de 1937. In: OfĂcio No. 214, de 22 de outubro de 1937. LucĂlio da Cunha Bueno ao Ministro MĂĄrio de Pimentel BrandĂŁo. Situação polĂtica do Brasil. OfĂcios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada brasileira em MontevidĂ©u. In: AHI, Rio de Janeiro.
[III] Telegrama de 18 de octubre de 1937. Garibaldi Batello, cĂłnsul uruguayo en Rivera, al Ministro de Relaciones Exteriores. Diplomacia. Montevideo. In: PolĂtica del Brasil. Informaciones-1937. LegaciĂłn en el Brasil. Serie Brasil (1930-1940). Caja 4 (1935-1945). Carpeta No. 231; AMREU.
[IV] Nota no. 2, de 4 de janeiro de 1938. JoĂŁo Batista Lusardo ao Ministro de Estado das RelaçÔes Exteriores JosĂ© Espalter. In: OfĂcios. Mar/Jul. 1938. Embaixada brasileira em MontevidĂ©u. AHI, Rio de Janeiro; 33/3/9.
[V] OfĂcio No. 6, de 17 de janeiro de 1939. JoĂŁo Batista Lusardo ao Ministro Oswaldo Aranha. Campanha contra o Brasil por brasileiros. In: OfĂcios. Nov/1938-Jan/1939. Embaixada brasileira em MontevidĂ©u. AHI, Rio de Janeiro; 33/3/11.
[VI] Tradução nossa. Telegrama No. 231, de 16 de marzo de 1943. Joseph de Neef, ministro de BĂ©lgica, comenta el discurso inaugural del nuevo Presidente de la RepĂșblica, Juan JosĂ© AmĂ©zaga, y el nombramiento de JosĂ© Serrato en el Ministerio de Relaciones Exteriores. In: NAHUM, 1998; p. 484.
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Como citar este artigo:Â Â
GOMES, Rafael Nascimento. GetĂșlio Vargas visto pelo vizinho uruguaio. HistĂłria da Ditadura, 29 jan. 2024. DisponĂvel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/getĂșlio-vargas-visto-pelo-vizinho-uruguaio. Acesso em: [inserir data].