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Foto do escritorHistória da Ditadura

Entrevista com o professor Rodrigo Bueno

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Rodrigo Bueno de Abreu possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (2002), com especialização em História da África e do Negro no Brasil. Foi coordenador e professor do sistema pH de ensino. Depois de passar um período viajando e divulgando suas experiências nas redes sociais, atualmente, vive em São Luís-MA, onde trabalha na Escola Crescimento. Possui um canal no YouTube chamado Os Zudos.

Parafraseando Peter Burke: A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer. Visto que a sociedade brasileira continua esquecendo seu passado, pedindo, por exemplo, intervenção militar, a responsabilidade seria dos historiadores?

RB: Não concordo de todo com Burke. A função do historiador enquanto parte da sociedade de seu tempo e sempre a serviço de forças sociais é a de selecionar, consciente ou inconscientemente, as perguntas que interessam ao presente, que se vai buscar no passado. Estou nesse sentido mais para Erick Carr, pois o que move a história são as perguntas, mas o que move a seleção das perguntas é o presente e o grupo social/contexto a que se está vinculado. Quanto à ditadura militar, o quadro atual é bem interessante, pois vivemos um questionamento da memória consolidada desde os anos 1980. De certa forma, a esquerda havia vencido essa batalha pela memória, pois o colapso do regime abriu a possibilidade de que certas ideias fossem tomadas como verdades históricas. Exemplos mais sintomáticos: “os estudantes eram contrários à ditadura”, “os militares impuseram o golpe à sociedade em 1964”. Sabemos hoje que não foi bem assim, pois existiam estudantes ligados à extrema direita, como o Comando de Caça aos Comunistas da Mackenzie em São Paulo; e que os civis apoiaram o golpe vigorosamente, entre eles jornalistas, políticos, a imprensa em geral, organizações femininas etc. O que não significa que tenham depois apoiado a ditadura, mas muitos apoiaram. Na época, essa memória interessava muito, porque era preciso, pela conjuntura, enfraquecer as posições militares para fazer a democracia vingar. Hoje é diferente, pois a democracia está desmoralizada pela corrupção e falhas estruturais imensas que impedem seu funcionamento. Além disso, os últimos governos, ditos de esquerda, estão sendo fortemente questionados por parte dos intelectuais e da imprensa, em suas premissas econômicas e sociais, pois o país está em recessão e sem saídas para evitar altos gastos a curto prazo. Então, o jogo social virou e o que se busca no passado agora, por parte de algumas forças, são os erros da chamada esquerda. A visão de Burke sobre o historiador é muito mais uma crença de como deveria ser a profissão em um modelo de escrita ideal. Na realidade, operamos dentro das forças de nosso tempo e contexto.

Na escola, ensina-se sobre a violência e a tortura como política de Estado durante a ditadura militar no Brasil, assim como censura e episódios de corrupção. Mesmo com essa memória “oficial”, convivem ainda memórias positivas da ditadura, como um momento de paz e segurança, onde apenas quem merecia era torturado e o “cidadão de bem” vivia tranquilamente. Como lidar, em aula e no cotidiano, com essas memórias enraizadas?

RB: É preciso entender que não existe uma memória oficial em ambientes democráticos. Mesmo em regimes totalitários existem memórias dominantes. É diferente, pois a memória é uma operação complexa de lembranças e esquecimentos. E essa operação é cumprida de formas bem diversas pelas forças presentes na dinâmica social. A memória é também um processo de constante readequação à realidade. Todos os dias as operações são refeitas para que ela continue sendo coerente e aceitável. Mas sempre existem as memórias subterrâneas, como diria Pollak, e se a memória dominante enfrenta um contexto desorganizador de sua lógica, ela se fraciona e se enfraquece, ocorre uma ruptura e abre-se uma brecha para que outras memórias disputem seu lugar na sociedade. Em sala de aula, o professor deve saber que essa dinâmica existe, deve mostrar como questionar é importante e falar abertamente sobre os limites de seu campo de estudos. Isso não enfraquece sua posição. Pelo contrário, aproxima seus alunos das ideias e do debate. O que deve ficar bem clara é a posição do profissional que está trabalhando com a turma. Por que ele defende a democracia, os direitos humanos, ou não, com embasamento em análises históricas. Feito isso, temos que parar de ter medo do debate. Pois é aí que nos perdemos de nossos alunos. Por que a ditadura ou certas ideologias são ruins de antemão? Assumimos muitas vezes posições arrogantes e queremos que nossos alunos, que não têm a mesma formação, que não têm a mesma origem, que vêm de outro contexto, diversos do nosso, tenham premissas iguais as nossas. Outra coisa que me incomoda muito é o professor achar que deve ganhar os debates. Debates não precisam de vencedores ou perdedores. A riqueza é justamente a troca de ideias e a possibilidade de se entender o contexto do outro. Por isso, escola sem partido não existe e se existisse era melhor fechar. A escola não é o espaço das certezas e sim da busca e do conhecimento no sentido global. Os professores devem ser os mediadores e não os controladores do processo. Desgastariam-se menos assim e seriam mais próximos dos seus alunos. Só para fechar, dou um exemplo: todos viram na internet o professor que explodiu em sala contra os alunos que apoiavam o Bolsonaro. Não teria sido melhor organizar um debate sobre as ideias dos candidatos em uma hora oportuna? Tirar ponto de quem menciona alguma coisa que o professor não concorda é autoritário. A sala de aula deve ser mais livre e o respeito deve ser mais ao ambiente de troca do que ao professor.

Quase todos os cidadãos frequentaram a sala de aula, um ambiente onde muitas vezes se aprende mecanicamente e, em geral, sem debates aprofundados. Além disso, é comum que sejam utilizados livros didáticos com historiografias ultrapassadas. A estrutura escolar precária é o maior vilão do ensino de História? Como transmitir conhecimento dentro desse sistema de forma que incentive o pensamento crítico do aluno?

RB: A tão propalada falta de estrutura se resume a um problema maior que os outros: em nosso país não existe cultura de formação do professor. Existe uma cultura de estágios, que na maioria dos casos não servem de nada. Os professores precisam de formação até para assumir a postura mencionada nas perguntas anteriores. Só a universidade não é suficiente. Governos e instituições, públicas e privadas, devem desenvolver programas obrigatórios, remunerados e metrificados. Sem isso não adianta pois não vai melhorar. Um professor formado no sentido pleno é mais eficiente que um ambiente tecnológico. Mas o pensamento não é bem esse por aqui. Além disso, a formação deve ser uma ponte entre a academia e a escola. Estamos equivocados em nosso sistema de organização do saber. Vivemos nas universidades do século XIX, onde se produz para um grupo mínimo de doutores. O conhecimento é um bem de status nesse sistema e o professor universitário tem prazer em criticar o professor da escola pela falta de conhecimento. Tem prazer em apontar os erros no livro didático. Todos saem perdendo assim. O conhecimento é um bem social, pois é produzido através da sociedade e deve retornar a ela. Essa seria uma dinâmica interessante. Por incrível que pareça eu considero que os livros didáticos melhoraram muito se levarmos em conta esse contexto desfavorável. Por que não sentimos isso? Porque, paralelamente, a qualidade da formação profissional piorou. Sem o professor não há livro que faça milagres. Aí cria-se um ciclo bem ruim: professores malformados, aproveitam mal os livros, não fazem pontes com a academia porque não se atualizam, pois não têm tempo, ou porque são boicotados. Os estudantes que saem desse ciclo são cada vez mais despreparados. Alguns poucos professores em carreiras heroicas, e através de um esforço sobre-humano, conseguem superar isso e colaborar para uma relação saudável com o saber. Infelizmente, são exceções. A solução está na formação. Sem começar por isso não existe caminho possível.

Historiadores sofrem críticas por escreverem livros para seus pares, perdendo espaço para jornalistas que alcançam sucesso de vendas com livros sem embasamento teórico ou com interpretações simplórias, que corroboram o senso comum. Como fugir dessa bolha acadêmica? Ferramentas digitais como vídeos, podcasts etc, podem ter papel essencial no contato com o público fora das escolas e universidades?

RB: Sim, podem. Acredito nisso. Aliás esse é sintoma de nossos tempos. Dentro de um curto prazo, não teremos mais a grande imprensa, os grandes canais de TV, as grandes corporações que possuem o monopólio dos bens públicos, como a informação. O grande benefício das mídias sociais é a democratização da informação. A democratização dos meios de divulgação. É óbvio que existem problemas, como as fake news. Mas os ganhos são muito maiores. A academia está com os dias contados. Já pode começar a se preocupar em demonstrar claramente seu valor social, senão perderá verbas e respaldo. O caminho para isso é democratizar o saber. De forma direta e para o grande público. Não se trata combater o exemplo dos jornalistas, até porque eles já são historiadores, como o Eduardo Bueno. Trata-se de humildemente seguir o exemplo. Mas é difícil para nossos grandes doutores, porque certos ritos fazem parte da microfísica do poder. Esse é o dilema. Na minha defesa de mestrado, convidei todos os meus alunos do colégio onde trabalhava e foi um momento bacana. Os professores da banca amaram e se impressionaram. É possível alunos de escola acompanharem e participarem de debates acadêmicos. Assim como é possível utilizar o Youtube, o Facebook e até o Instagram para divulgar saberes, democratizar. Optei há pouco tempo por trocar a sala de aula pelo Youtube. Tenho um projeto de troca de experiências sobre viagens, culinária, culturas e a coisa está muito bacana. O ambiente mais democrático faz as coisas acontecerem de forma mais orgânica. É óbvio que existem problemas, pois a exposição é muito maior e tenho que lidar com algumas pessoas que só querem atrapalhar e que se incomodam com a proposta. Mas está sendo interessante explorar novas possibilidades. Temos que rever posturas e preconceitos. A escola hoje é anacrônica. O Youtube é uma plataforma de diversão e de conhecimento também.

O Facebook, como outras redes sociais, é uma importante ferramenta de divulgação e conta com enorme alcance, sendo capaz de disseminar absurdos como teoria da terra plana e nazismo de esquerda. Como devemos utilizá-la? O papel do historiador seria de filtrar criticamente as notícias e informações?

RB: Existiu um encontro de educação há pouco tempo onde um jogo, criado por um historiador, para lidar com as fake news foi premiado. Não tenho dúvidas de que esse é o papel. Se o método da ciência histórica serve para alguma coisa hoje é para isso. É preciso saber interrogar as fontes. Mas a mensagem que os professores transmitem é contraditória em tudo. “Não utilize as redes porque só tem besteira”. Como não utilizar? É impossível. Eles próprios utilizam sempre. Como utilizar de forma saudável é a questão. E os professores perdem oportunidades, pois usam a ferramenta para desfilar arrogância e dar lição de moral. O que ganham com isso? Nada. Tenho dito em palestras e na rede que uma das coisas mais danosas do Facebook é alguém postar uma cobrança sobre o que a “sociedade” não faz. Isso é péssimo, pois quem está do outro lado, se sente cobrado por uma postura que deveria ser coletiva e sabe que qualquer ação para mudanças deve ser coletiva. Aí o sentimento de impotência domina. Sou cobrado na minha timeline por uma coisa que todos deveriam fazer, mas ninguém faz. Por que, ao invés de cobrar como todos fazem, os professores não iniciam campanhas, movimentos de desobediência civil, de pressão? Enquanto só cobram caem no lugar comum. Devem começar a propor. Inclusive propor formas saudáveis de lidar com a informação, ensinando o questionamento de fontes.

É comum ouvir estereótipos sobre historiadores, caracterizando-os como “comunistas”. Ao mesmo tempo, vemos o avanço de projetos como “Escola Sem Partido”, que promete combater uma suposta “doutrinação” nas escolas. Por que buscam, a todo momento, cercear o trabalho e as liberdades dos professores e como impedir que esse cenário piore?

RB: O historiador sofre com os preconceitos, até porque existe uma crença de todo historiador é de esquerda a priori. Em parte, isso é verdade. A universidade pública é em sua maior parte de esquerda. Existe um preconceito enorme com quem não é. Ou com quem questiona. Temos que enxergar isso. Em ambientes como o nosso atualmente, com essa polarização toda, é potencialmente perigoso ser professor e historiador, pois não existe mais cortesia. Vão pegar pesado mesmo. E proferir essas besteiras como escola sem partido. Eu tenho um amigo professor de história em Brasília, que só tem alunos filhos de políticos. Ele faz debate em aula todos os dias. Dando voz a todos sem exceção. E dá certo. Ele admite a posição política dele mas dá voz a todos e respeita as opiniões contrárias. Acho que esse é o caminho. Informar é abrir o espaço para que as pessoas façam o seu próprio caminho. Não vejo como ser diferente. Aí começamos a mostrar uma faceta da profissão que é a da ética. Quando nos deixamos levar pela suposta autoridade que temos, e queremos “ensinar” no sentido antigo do termo, seremos sempre criticados. Até porque toda a estrutura da escola está sendo questionada. A besteira da escola sem partido ganha força pela postura de alguns. Escola tem sempre partido. Assim como a imprensa. Não há problema em um jornal ser assumidamente de esquerda ou de direita desde que os seus leitores saibam. O problema é a Rede Globo, por exemplo, vender a ideia de isenção, quando todos sabemos que não é verdade. Esse exemplo é ótimo para nós. Se abrirmos o jogo, mas também abrirmos os espaços saudáveis de diálogo, ficaremos protegidos das críticas e patrulhamentos. É claro que para ser saudável precisa haver respeito e regras que todos devem respeitar e que devem ser iguais para todos. Tenho feito isso em todas as apresentações e o resultado é muito bacana. Fica aí a sugestão de uma nova postura mais aberta e menos raivosa. Não se combate o Bolsonaro sendo igual a ele. Se combate sendo diferente pelo exemplo e pela abertura ao diálogo. Quando alguém se recusa ao diálogo saudável todos saem perdendo.

 

Esta entrevista foi realizada pelo estudante de História Allan Silva do Nascimento durante a disciplina “História Pública: como tratar de regimes ditatoriais com o grande público”, oferecida pelo Prof. Dr. Paulo César Gomes no curso de graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

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