Como os povos indígenas eram vistos ao longo da ditadura militar
Atualizado: 1 de mai. de 2021
Tese: Um espelho em meio a um teatro de símbolos: o índio imaginado pelo poder e pela sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar (1964-1985)
Autor: Carlos Benítez Trinidad (email: carlos.bt.86@gmail.com | Lattes)
Orientadores: Gustavo Bittencourt Machado (UFBA), Juan Marchena Fernández (UPO), Luiz Geraldo da Silva (UFPR)
Instituição: Universidade Federal da Bahia – Universidad Pablo de Olavide (Cotutela), 2017
1. Qual a questão central da sua pesquisa?
A pesquisa está centrada no estudo do construto socio-cultural “índio”, no imaginário e na ideologia da sociedade e do poder brasileiros, durante a ditadura civil-militar iniciada pelo golpe de Estado de 1964. Em particular, os discursos, mentalidades e visões vertidas “de fora” sobre os povos indígenas e que encontraram seu campo de recriação no ativismo oficial e extraoficial na chamada questão indígena, ou seja, o indigenismo, as leis, e políticas que orbitam em torno, e a produção cultural que inspira sua observação e imaginação.
2. Resumo da pesquisa
Essa investigação é um estudo documental do construto sociocultural “índio” no imaginário e a na ideologia da sociedade e do poder brasileiro, durante a ditadura civil-militar que começou em 1964 e teve seu fim em 1985. O objetivo é individualizar os componentes epistemológicos e os grupos de significantes que compõem a rica polissemia do objeto de estudo: o índio imaginado. Levou-se em conta a diversidade de atores que compõem o objeto de estudo, desde os militares, o indigenismo oficial, a legislação, os habitantes da fronteira, a opinião pública, acadêmicos, sertanistas e religiosos.
O índio se mostra nessa investigação como um potente gerador de símbolos das mais diversas naturezas, mas sempre com a intencionalidade de supor um espelho invertido e oposto à própria sociedade/poder nacional. A categoria colonial que lhe deu vida segue presente na sua proposta como um exotismo enfrentando o projeto civilizador da modernidade que o Brasil anseia como estado-nação e também como sociedade ocidental. Ao mesmo tempo, apresenta-se como um poderoso teatro de símbolos onde se (des)encontram a ideologia militar e sua oposição. Tudo isso imerso no esforço que o Brasil experimenta para encontrar sua própria narrativa e dar a ela um encaixe diante dos desafios gerados pelo mundo contemporâneo, que no caso brasileiro, encontra sua conjuntura-chave durante a ditadura civil-militar.
Essa investigação é puramente documental, tendo como referência teórica o pensamento decolonial, a história sociocultural, a interdisciplinaridade, a multirreferencialidade e a complexidade. A documentação analisada está dividida em três categorias: a oficial produzida pelo Estado e seu aparato burocrático e legislativo; o material gerado por instituições não necessariamente ligadas ao Estado, como é a Igreja Católica, os movimentos sociais e as ONGs; e a produção cultural/intelectual que recorre à imprensa da época, material audiovisual, literatura erudita e popular, assim como o que é produzido por acadêmicos, missionários, políticos, ativistas, líderes/movimentos indígenas etc. Os resultados obtidos demonstram a fortíssima relação que o Brasil mantém com sua mais característica e passional alteridade, e como seu interpretar-se a si mesmo a partir de se olhar nesse espelho que era o índio. Dando como resultado final, o revesti-lo necessariamente do rol de oposição ontológica a partir de sua bestialização, naturalização e “folclorização”.
3. Quais foram suas conclusões?
Existia durante o Brasil ditatorial uma continuidade das lógicas coloniais que deram vida à categoria “índio”. Apesar de ter originalmente características muito diferentes daquelas que tinha na época estudada, parece que houve um padrão linear com a “herança colonial euro-ocidental” de interpretação e de uso do índio na consciência, no discurso e na produção cultural. Visível na sobrevivência do índio bestializado antropófago, o índio bom selvagem ou o índio oposto ao desenvolvimento da nação. Quer dizer, o índio foi se nutrindo das atualizações e criações novas sem se livrar completamente das antigas reminiscências, demonstrando, mais uma vez, que toda a sociedade é subsidiária de sua tradição histórica, ou seja, os velhos imaginários, aqueles que estruturam as fundações do pensamento social, tendem a perdurar, ainda que seja em mínimas expressões simbólicas. Estas, aparentemente esquecidas e enterradas, terminaram por conformar os minúsculos fios que afirmavam suas costuras mais essenciais.
O Brasil dependia enormemente do índio como um dos pontos cardeais fundamentais para a construção de sua própria identidade nacional ao apresentá-lo como sua oposição ontológica. O índio como espelho invertido de nós mesmos, em todas suas conotações positivas e negativas, se mantém excepcionalmente saudável com o passar do tempo. O contínuo uso do índio como símbolo e exemplo do que deveríamos deixar de ser ou voltar a ser, é quase onipresente para demonstrar a falta de civilização do Brasil e assim justificar a pobreza, a desigualdade ou o atraso, como vazio que deve ser preenchido (nós somos o conteúdo diante desse vazio), ou como selvagem que deve ser civilizado para sua integração em uma autoafirmação generosa do que oferece o projeto da modernidade no Brasil. Também é usado de forma contínua por seus defensores, para criticar os males do capitalismo como guardiães da selva, do sistema político e social brasileiro, como sobreviventes de um sistema mais justo e comunitário ou como símbolo de liberdade contra o governo autoritário.
O trabalho provou que, no teatro de símbolos entre ditadura e oposição como campo de batalha, o índio desfrutou de muito protagonismo. Submetido por ele a uma pressão (de)formadora imensa, que desenharam suas linhas, com mais ou menos nitidez, conforme seus anseios, interesses e aspirações (materiais ou passionais) pessoais ou corporativistas. Existiu, portanto, um uso abusivo do índio como símbolo em todo tipo de campo de batalha ou cenário possível, onde todos os atores buscaram aproveitar a força simbólica que o índio oferecia para reforçar seus posicionamentos ideológicos e usá-lo como ferramentas de pressão. Situação que terminou por levar à organização político-social indígena de resistência, e que acabou forjando a imagem definitiva que todos temos deles na atualidade.
4. Referências
Davis Shelton. Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
A. R. Ramos. A hall of mirrors: The rhetoric of indigenism in Brazil. Critique of Anthropology, Thousands Oaks, v. 11, n. 2, p. 155-169, 1991.
A. C. de S. Lima. Um grande cerco de paz: poder tutelar e indianidade no Brasil. 1992. 335 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992a.
R. C. de Oliveira. A crise do indigenismo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
P. Suess. A causa indígena na caminhada e a proposta do CIMI: 1972-1989. Petrópolis: Vozes, 1989.
Carlos Benítez Trinidad é doutor Cum Laude em História da América em cotutela acadêmica entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Pablo de Olavide (UPO). Mestre em Estudos Americanos pela Universidade de Sevilla (US) e licenciado em História pela Universidade de Cádiz (UCA), seus interesses de pesquisa envolvem o desenho e a gestão da alteridade no imaginário nacional popular e do poder na história da América Latina Contemporânea. É fundador e membro do conselho editorial da revista-red Iberoamerica Social.
Caso queira divulgar sua pesquisa sobre temas relacionados às ditaduras latino-americanas do século XX ou sobre questões do Brasil contemporâneo, não necessariamente na área de História, escreva para o email: hd@historiadaditadura.com.br