Historiadores, jornalistas e o mercado
Atualizado: 14 de dez. de 2023
O anúncio dos convidados para entrevistar o jornalista Laurentino Gomes no programa Roda Viva do dia 19 de julho de 2021 provocou reações dos historiadores nas redes sociais. Gomes, um jornalista que escreve livros sobre História do Brasil, foi ao programa falar sobre seu último lançamento, o segundo volume de sua série sobre a escravidão. Na bancada, nenhum historiador especialista no tema foi chamado: apenas jornalistas.
A rivalidade — e a desconfiança — entre historiadores e jornalistas não é nova. Contudo, a reação ao anúncio dos convidados do Roda Viva revela mais do que apenas uma disputa de protagonismo sobre quem está autorizado a narrar o passado. Uma combinação de crises sobrepostas com a ascensão de novos campos da historiografia está empurrando historiadores a lidarem com o tal "mercado".
Os textos de Laitano e Portal, publicados no História da Ditadura, trazem contribuições para este debate, mas pretendo aqui apresentar algumas questões problemáticas. Antes de prosseguir, contudo, é necessário um aviso aos leitores: sou jornalista há doze anos e historiador há seis anos. É deste ponto de observação – muitas vezes visto com criticismo de lado a lado – e a partir da minha experiência nos dois campos que trago essas reflexões.
De volta às crises que afligem os historiadores: ao lado do estrangulamento do financiamento da pesquisa no Brasil, a precarização generalizada da educação básica, pública e privada – a principal área de atuação dos formados em História –, produz um horizonte de expectativas mais que rebaixadas, quase inexistentes. Ao mesmo tempo, o passado se tornou cada vez mais um objeto de consumo da nossa sociedade; a História foi para o centro das disputas políticas. Esse movimento, que não é exclusivo do Brasil, impulsionou a História Pública em seu esforço para pensar e elaborar novas formas de atuação do historiador na esfera pública.
Nunca se falou tanto em História, mas os historiadores lamentam que seus espaços de atuação nunca pareceram tão reduzidos. Neste contexto, a conquista da regulamentação da profissão de historiador, após anos de mobilização, aparece como esperança da garantia de inserção no "mercado". Receio, entretanto, que esta visão seja otimista demais. É preciso compreender que a crise que vivemos é muito mais profunda do que uma conjuntura desfavorável de recessão econômica e de cortes profundos e sistemáticos em educação e ciência — que, não coincidentemente, se arrastam desde 2015.
A crise que vivemos atravessa todas as esferas da vida. A crise permanente é o modo de ser e estar da “era da emergência” em que vivemos, para citar uma expressão de Paulo Arantes (2015). As instituições que emergiram na modernidade como as reguladoras da nossa vida social entraram em xeque — quando não em colapso. Neste cenário de desconstrução generalizada, a racionalidade neoliberal é causa e consequência: para Dardot e Laval (2017), ela explode as últimas barreiras que resistiam ao avanço da lógica do mercado enquanto oferece uma forma de vida num mundo agora sem referências. Se o princípio de organização da sociedade neoliberal é a competição permanente entre indivíduos, está lá a meritocracia e toda sua parafernália para convencer que você pode, você consegue.
Tal diagnóstico poderia levar a um pessimismo exacerbado, quase niilista: “vamos todos para casa ler os clássicos enquanto o fim dos tempos não chega”. Não é o caso. O diagnóstico é necessário para entendermos o que se passa no tal "mercado" e, a partir daí, compreendermos as possibilidades e os limites de ação dentro dele. O avanço do revisionismo e do negacionismo não pode ser compreendido sem seu nexo com a racionalidade neoliberal, como aponta a antropóloga Leticia Cesarino.
Além disso, cada vez mais o mundo offline emula e reproduz práticas, lógicas e comportamentos virtuais. Dessa forma, essa digitalização do mundo trouxe consigo a utopia de abolir os mediadores – papel que se encontra em uma crise profunda após a desestruturação promovida pelo novo paradigma da comunicação multidirecional, de muitos para muitos. Contudo, hoje é difícil manter o otimismo do passado frente a essas mudanças. As promessas democratizantes desta derrocada das mediações tal como as conhecíamos foram em grande parte descumpridas.
Os mediadores sempre tiveram a função primordial de fazer circular saberes e experiências, e não à toa recebem atenção da própria historiografia (ver GOMES e HANSEN, 2016). O que o novo paradigma da comunicação realizou, na sua versão plataformizada, foi a substituição dos tradicionais mediadores (jornais, editoras e instituições de ensino) por algoritmos que desconhecemos e, pior, nos dão a falsa impressão de que nossa experiência não é atravessada por mediação alguma.
Estas reflexões são de suma importância quando se trata de pensar iniciativas de História Pública nas plataformas digitais, que não param de se multiplicar. Sem reconhecer as possibilidades e os limites que as mediações algorítmicas impõem à circulação de informação, vamos nadar, nadar e morrer na praia. A ingenuidade e o desconhecimento do ecossistema digital serão fatais. Este alerta vale também para as iniciativas jornalísticas que, com bastante frequência, ignoram o campo onde o jogo está sendo disputado.
Por isso, mais do que enxergar os jornalistas – ou os profissionais da comunicação, em geral – como adversários que ocupam espaços no mercado que poderiam ser preenchidos pelos historiadores, eu defendo a necessidade de romper com a lógica neoliberal da competição e estabelecer novas formas de colaboração entre os dois campos. Ao historiador sempre faltará o domínio teórico-prático da comunicação. Aos jornalistas sempre faltará o repertório e os métodos dos historiadores. Essas parcerias seriam o encontro de conhecimentos e habilidades complementares, seja em vídeos, podcasts, séries de TV ou conteúdos digitais em geral.
É claro que já houve e ainda haverá resistências de parte a parte. Mas trabalhar em colaboração significa não só ocupar os espaços já existentes seguindo a lógica do mercado e das mediações algorítmicas — o que é indispensável no cenário atual —, mas também criar novos espaços de mediação para que os avanços tão importantes da historiografia brasileira circulem pela sociedade e sejam capazes de influenciar o debate público do país. O desafio é imenso, mas não podemos deixar de enfrentá-lo.
Leonardo Faria Cazes é jornalista, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense
Referências
ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2015.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2017.
GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Org.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.