História do Tempo Presente e Decolonialidade
Atualizado: 9 de mar. de 2022
Ou como as noções de memória e trauma modificam o pensamento histórico
Nas últimas duas décadas, diferentes perspectivas vêm marcando as relações entre história e memória na América Latina. Entre outras vertentes importantes, a História do Tempo Presente e a Decolonialidade são campos de pesquisas que sugerem possibilidades distintas de perceber a passagem do tempo a partir de passados traumáticos expressos nas lutas políticas do presente. As ditaduras e os autoritarismos latino-americanos, a colonialidade, a diáspora, o escravismo e o genocídio de populações indígenas são algumas das experiências de violência e injustiça cuja rememoração crescente tem gerado outros entendimentos acerca das relações entre história, memória e política. Desde um olhar panorâmico, mas atento, quero destacar a potência da memória e a centralidade dos traumas no interior dessas diferentes formas de pensar e produzir História.
Começando pelo que me é mais familiar, posso dizer que aquilo que os estudos acadêmicos convencionaram chamar de tempo presente em meio à diversidade latino-americana nasceu perto dos anos de 1970, inserido em um contexto de irrupção de golpes militares e de regimes autoritários pelo subcontinente. Em alguns casos, houve a implantação de ditaduras, incluindo inédita experimentação neoliberal estadunidense no Chile pinochetista. Naquele momento, bastante distinto do que vivemos hoje, a Guerra Fria e as bombas atômicas davam o tom do debate político: imperialismo, revolução, liberdade, desenvolvimento, independência e tortura tornaram-se signos históricos.
Influenciados pela historiografia europeia, especialmente a francesa, constituída como Histoire du Temps Présent; pela alemã, chamada Zeitgeschichte; e, em menor grau, pela bibliografia dos países anglo-saxões, que a denominam como Current History; a perspectiva do tempo presente se consolida na América Latina como Historia Reciente e, de maneira geral, busca compreender o passado recente, próximo ou imediato a partir de determinada postura intelectual, ética e política assumida como ponto de partida. Em certos casos, busca-se alterar hierarquias consolidadas entre história e memória e entre testemunho e historiografia, de modo a ressaltar suas singularidades como formas de denunciar que o tempo não gira igual em todos os quadrantes de um relógio.
Entre outras características, destaco o caráter político dos temas em estreita vinculação com a esfera pública e principalmente com os movimentos sociais, e o uso das categorias trauma e/ ou frustração na análise histórica. Ou seja: a História do Tempo Presente latino-americana está sendo tecida pelos chamados temas sensíveis, que afetam subjetividades, constituem identidades políticas, formas de convivência, de politização, de reconhecimento social e também de acolhimento de ressentimentos.

Em outra vertente, estão as trajetórias intelectuais profundamente diferentes de autores e autoras inseridos em movimentos que questionaram a hegemonia do pensamento ocidental desde ao menos os anos de 1950: Albert Memmi, escritor francês nascido na Tunísia e o Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador, de 1947; Aimé Césaire, poeta e um dos fundadores do conceito de negritude, com seus Discursos sobre o colonialismo, de 1950; Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo nascido na colônia francesa da Martinica, com Os condenados da terra, de 1968. Também se destacam obras como Orientalismo, lançada pelo palestino Edward Said em 1978, e Pode o subalterno falar?, bastante discutida no Brasil e de autoria da pensadora indiana Gayatri Spivak.
Simultaneamente à chamada invasão do passado no presente, a crítica pós-colonial – que traz consigo a ideia de descolonização como processo também epistêmico e subjetivo – e, mais recentemente, os estudos decoloniais, plurinacionais e transdisciplinares, emergiram como pluriversos teóricos de atravessamento nas Ciências Sociais e nas humanidades. Entre muitas outras questões, propõem, cada um ao seu modo, reformulações estruturais na concepção universalizante de tempo histórico, constituída como campo disciplinar da História ao longo do século XIX. (CASTRO-GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007). Cada qual com sua sofisticação, postulam: uma crítica à percepção binária colonizado/ colonizador; o surgimento da interseccionalidade como elemento indispensável para pensar a condição de colonialidade dos saberes instituídos na base da modernidade; a colonialidade do ser como sujeito formado psicoemocional e politicamente pela diferença, afirmada no corpus do pensamento ocidental e ocidentalizado como desqualificadora ou desumanizadora.

Presentificando o passado e decolonizando o tempo presente
Por mais paradoxal que pareça, tempo presente e memória se cruzam e confundem, se consideramos as ambiguidades do uso prático das noções de tempo, história e memória na chamada era dos Direitos Humanos. Em História, Memória e Violência de Estado: tempo e justiça (2018), Berber Bevernage oferece um mergulho na história da crítica à noção de tempo construída pela modernidade para revelar toda a sua potência e enraizamento enquanto engenhosa forma de “não ver” certos mundos que é largamente incorporada pela disciplina histórica. Por entre as brechas desse olhar pretensamente universal, o autor aponta para a América Latina e para a África como loci espaço-temporais de uma luta por outros tempos. Seu exemplo mais emblemático é a linha fundadora das Madres de Plaza de Mayo – grupo de mães e avós de desaparecidas e desaparecidos políticos da última ditadura argentina, entre 1976 e 1983 – que se opõe ao posicionamento dos órgãos nacionais e internacionais considerados humanistas, favoráveis às chamadas políticas públicas de memória e verdade. O autor se pergunta reiteradamente como entender as posições radicais sobre o legado do terror de Estado. Como lidar com a linguagem espectral manifestada pelas Madres em expressões como “aparición con vida” ou “desaparecidos para siempre”?
De acordo com Bevernage, o grupo alça o “desaparecimento” a uma condição subjetiva das sobreviventes e familiares e a um estatuto de luta política intergeracional em pleno vigor. Isso explica que as Madres falem de seus filhos desaparecidos no tempo presente, que rejeitem reparações econômicas, placas de identificação, monumentos ou exumações e que rechacem o Nunca Más, acusando-o de implicitamente igualar o terror de Estado com a violência das guerrilhas de esquerda. Assim, nos rastros de um tempo presente pluritemporal, o historiador abre um potente campo de estudos sobre os desdobramentos conservadores de se pensar o passado-presente a partir do tempo linear.

No campo dos estudos decoloniais, as questões da memória, do testemunho e do trauma também aparecem de maneira vertical nos textos de pensadores ligados a uma matriz latino-americana. Intelectuais como Walter Mignolo, Enrique Dussel e Aníbal Quijano valorizam intelectual e moralmente as memórias de diáspora e da colonialidade como signos de caminhos e alternativas para nova racionalidade ética e novas utopias. Têm peso nestas elaborações, por exemplo, a crítica das noções cientificistas e eurocêntricas de neutralidade e objetividade da pesquisa acadêmica e a valorização radical do conhecimento prático de trabalhadores e trabalhadoras, mulheres, sujeitos racializados-coloniais, gays e movimentos antissistêmicos; memórias indígenas, memórias e experiências da escravidão e da subserviência, historicamente excluídas da filosofia política e das teorias da história eurocentradas.
Em artigo sobre a fotografia como instrumento de representação e legitimação de um padrão de poder colonial sobre índios, africanos, mulheres e classes populares, Alex Schlenker (2019) explica que a sensibilidade decolonial ajuda a perceber melhor perspectivas historiográficas que qualificam o evento recuperado pela memória popular como uma espécie de “fato histórico modificado por subjetividades não qualificadas”. A obra de Schlenker contribui para a desconfiança historiográfica em relação à busca pelo universal dos acontecimentos e sugere a inscrição da memória a partir da relação singular produzida entre sujeito e fenômeno histórico, destacando-se as diferentes formas de construir sentidos para a vivência e para os traumas individuais e coletivos.

Onde as diferenças se cruzam: memória e trauma no centro da História
Cada uma ao seu modo, História do Tempo Presente e Decolonialidade são vertentes que vem tomando a memória e o trauma como questões insurgentes e fundamentais, como tentei mostrar. Entre os resultados gerais que observo nesse momento, estão a corrosão da noção de tempo linear e a difusão de narrativas e fazeres históricos mais conscientes de sua natureza pública, assim como do papel social atribuído aos profissionais em campo.
No Brasil, como um fenômeno próprio à interseccionalidade de temas-trauma como escravidão, pós-abolição, ditaduras, violência política, racismo e opressão cultural, multiplicaram-se os trabalhos que demarcam a proximidade e o atravessamento entre historiografia, Ensino de História e espaço público. Publicações que podem ser consideradas como decoloniais ou interseccionais como Crítica da razão negra (2018) e Necropolítica (2018), de Achille Mbembe, Mulheres, raça e classe (2016), de Angela Davis, e O que é lugar de fala? (2017), de Djamila Ribeiro, adquiriram êxito editorial importante. De certa forma, essas obras ajudaram a retirar as temáticas ligadas às “minorias” de seu não-lugar na academia.
Eis aqui uma apresentação superficial de movimentos teóricos e historiográficos que crescem de forma muito variada na América Latina. Acredito que a divulgação de tal pluralidade de perspectivas possa ampliar sensibilidades historiográficas inquietas, inventivas de gramáticas não oficiais, tecidas por memórias radicais em diálogo com os sujeitos nas extremidades sociais e com suas experiências de violência e de libertação.
Bibliografia:
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade. Letramento: Belo Horizonte, 2018.
BAUER, Caroline Silveira. “Breves considerações sobre ‘Os lugares dos historiadores e da história na sociedade brasileira’”. História e Historiografia. Ouro Preto, n. 23, abril de 2017, p. 167-175.
BEVERNAGE, Berber. História, memória e violência de Estado: tempo e justiça. Tradução de André Ramos, Guilherme Bianchi. Serra: Editora Milfontes – Mariana: SBTHH, 2018. 364p.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.) El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.
DELACROIX, Christian. “A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras?” Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39 ‐ 79, jan./mar. 2018. MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 edições, 2018.
MÃES DE MAIO, Movimento. Periferia grita. São Paulo: Fundo Brasil de Direitos Humanos e Fundação Rosa Luxemburg, 2012.
MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Argentina: Ediciones del signo, 2010.
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. “Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014)”. Varia História, Belo Horizonte, vol. 31, n. 57, p. 863-902, set/dez 2015.
QUIJANO, Anibal (Org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
SAID, Edward. O Orientalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.
TELES, Edson & SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.