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Hitler sem sunga, a suástica e o cartunista

Foto do escritor: Mélanie ToulhoatMélanie Toulhoat

Atualizado: 5 de abr. de 2022

 

O periódico independente Ex- estreou em novembro de 1973, sob a presidência do general Médici. O “jornal de texto, história em quadrinho, fotos e cometas” teve um início algo ambicioso, com uma modesta fotomontagem do não menos modesto Adolf Hitler, tomando sol em uma praia tropical. A publicação era da Ex-editora, localizada na rua Major Quedinho em São Paulo. Pelo jeito, o “projetinho de Hitler tropical” não nasceu em 2018 do nada, mas foi bem ancorado em uma tradição de algumas décadas.

Há um detalhe importante: na fotografia, Hitler (mas poderia ter sido um rei ou qualquer imperador) está pelado. Nu artístico. Coqueiros balançando, areia fina e o protagonista parecendo meio conturbado. Possuía um olhar intenso, quase romântico, pensativo, além de uma musculatura atlética. É importante mencionar a nudez, além do traseiro aparente, atribuído, pela montagem, ao protagonista, pois ela denota uma forma de descontração, uma quietude com a corporalidade totalmente antagônica com os cuidados, já sabidos, do regime nazista com a questão física. Aqui, o famoso lema Corpus sanum in mentem sanam parece visualmente subvertido: a testa está enrugada e o rosto, fechado. O olhar inquieto é desviado para fora da câmera, como se estivesse esperando por algo, ou alguém, cansado do banho de sol nesse corpo são.

A fotomontagem empregou, sem qualquer constrangimento, a técnica da metáfora visual, associando de forma implícita o então chefe do Estado brasileiro, o general Emílio Garrastazu Médici, com o Führer. Isso, em uma singela homenagem aos fotógrafos dadaístas John Heartflied ou Man Ray, que já haviam usado montagens satíricas e justaposições de elementos dispersos para combater, no campo das imagens, o autoritarismo, o nacionalismo histérico e a repressão sangrenta. Essa técnica de ressignificação de imagens foi amplamente utilizada, junto com charges, caricaturas e histórias em quadrinhos, pelos periódicos aficionados pela sátira política, durante o regime militar brasileiro. As diversas facetas do humor gráfico se juntavam em um ilusionismo satírico na hora de decompor e recompor a realidade brasileira, em uma brincadeira permanente com o proibido e o aceitável. De fato, o Hitler tropical sem sunga foi tolerado pelas autoridades alvejadas. Já, a terceira capa, ainda metafórica, apresentando, no momento da posse de Geisel, uma foto-charge-montagem de Nixon estadista em uniforme de presidiário, chamou atenção da polícia.

Esse processo de assimilação visual ligando o autoritarismo do Estado brasileiro aos símbolos do nazismo não nasceu nos anos 1970. O historiador Rodrigo Patto Sá Motta assinala em seu artigo “A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969” algumas referências à suástica e ao famoso bigodinho, como, por exemplo, em charges de agentes do Estado brasileiro, publicadas nos jornais Ultima Hora e Correio da Manha. Nos anos 1967 e 1968, os periódicos tinham denunciado a violência policial no meio de uma intensa repressão às passeatas e demais mobilizações públicas.

Quase 47 anos depois da publicação da primeira capa do Ex- com Hitler sem sunga, no dia 14 de junho de 2020, o cartunista mineiro Renato Aroeira publicou nas redes sociais a charge “Crime continuado”, associando o atual presidente e sua terrível “gestão” da crise sanitária com o regime nazista. Na imagem, Bolsonaro transforma com uma pincelada uma cruz vermelha, símbolo da saúde, em uma suástica. O título do desenho e a mensagem atribuída ao presidente, “Bora invadir outro?”, referem-se às palavras pronunciadas em 11 de junho por Bolsonaro, recomendando a invasão de unidades de saúde e de hospitais pela população para checar a ocupação dos leitos.

Renato Aroeira, 15/06/2020 (Reprodução Facebook)

Aparentemente, Aroeira ultrapassou os limites da ética. No dia seguinte à publicação da charge, o ministro da Justiça André Luiz Mendonça anunciou a abertura de um inquérito contra o artista e o jornalista Ricardo Noblat, acusado de ter reproduzido a charge criminosa. Com base na Lei de Segurança Nacional, Mendonça solicitou uma investigação da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República, pois, em um Estado de direito(a), não se tolera nem calúnia, tampouco difamação do chefe supremo. No caso de condenação, a pena prevista é de um a quatro anos de prisão. Cartunista bom é cartunista preso. Um tuíte da Secretaria de Comunicação da Presidência, firme e forte, insistiu na legitimidade de tal reação defensiva: “Falsa imputação de crime é crime. O senhor Ricardo Noblat e o chargista estão imputando ao Presidente da República o gravíssimo crime de nazismo; a não ser que provem sua acusação, o que é impossível, incorrem em falsa imputação de crime e responderão por esse crime”.

Lembrando que, em janeiro de 2020, o então secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim, havia superado todas as expectativas em termos de caricatura durante um discurso surrealista cuja encenação contava com um corte e cola de Goebbels e um trecho de Wagner como música de fundo. Parecia uma farsa dos Monty Python, só que não era.

A reação democrática das autoridades brasileiras, digna, portanto, de um Estado de direito, suscitou inumeráveis interpretações do trabalho e da situação vivida por Aroeira vindas de colegas da profissão subversiva de desenhista. Logo no dia 16 de junho, o cartunista e ativista Carlos Latuff publicou uma referência ao desenho em questão na tirinha abaixo, intitulada “Bolsonaro confirma a charge do Aroeira”.

Carlos Latuff, 16/06/2020 (Reprodução Brasil 247)

Por enquanto, as autoridades não abriram inquéritos contra as dezenas de chargistas brasileiros e estrangeiros que, para manifestar sua solidariedade e reafirmar a luta contra as violações da liberdade de expressão no Brasil, publicaram releituras do agora famoso desenho sob o título “Charge continuada”.

O ponto fundamental aqui não é a pertinência da analogia entre Bolsonaro e Hitler, entre o bolsonarismo e o nazismo, que obviamente é questionável do ponto de vista histórico. A questão é o direito que um cartunista tem de denunciar a desastrosa política sanitária do presidente brasileiro, de criticar os discursos que minimizam a seriedade da pandemia, de atacar graficamente as autoridades que incentivam o não cumprimento das regras básicas de saúde e, portanto, colocam em perigo a população. O próprio Hitler nudista, sob o regime militar, não tinha provocado tal ira…

 

Crédito da imagem destacada: Reprodução revista Ex-, n°1, novembro de 1973, p. 1.

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