“Ideologia de gênero”: um novo rótulo para velhos hábitos
Atualizado: 29 de abr. de 2021
No último dia 12 de maio, o Brasil já se encontrava em meio à grave crise sanitária deflagrada pela covid-19. De acordo com o boletim divulgado pelo Ministério da Saúde, até aquele o momento havia 177.589 casos confirmados e 12.400 vítimas fatais em todo o país[i]. Nesse mesmo dia, Jair Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada um grupo de crianças que, acompanhadas pelo padre Pedro Stepien, cantaram Jesus Cristo – clássico religioso de Roberto Carlos – e fizeram um apelo ao presidente: queriam o fim da “ideologia de gênero”. Em resposta, Bolsonaro anunciou que já havia providenciado o envio de um projeto de lei ao Congresso – em caráter de urgência constitucional – com o objetivo de proibir a chamada “ideologia de gênero” em todo território nacional. A medida, segundo ele, seria uma reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que semanas antes havia derrubado por unanimidade uma lei municipal de Novo Gama, em Goiás, que vetava a discussão de gênero nas escolas[ii].
A defesa de certa ideia de moralidade, fundamentada no combate à chamada “ideologia de gênero”, tem sido recorrente nos últimos dez anos da trajetória política de Jair Bolsonaro. O tema pautou de maneira significativa a campanha eleitoral de 2018, foi uma promessa reafirmada no discurso de posse e continua sendo constantemente invocado por membros e apoiadores do atual governo. Para alguns interlocutores, que o assunto mereça a urgência presidencial mesmo diante do cenário alarmante de uma pandemia, é sinal de sua importância no projeto bolsonarista. Para outros, como não é raro que ele venha à baila em momentos de crise, sua função seria justamente criar uma cortina de fumaça, desviando a atenção pública de assuntos percebidos como mais importantes.
Não é minha intenção conjecturar sobre o quão genuína é a preocupação do governo com a agenda moral que defende: seja ela um princípio fidedigno ou um subterfúgio para distrair a opinião pública, o que chama a atenção é a comoção social que esse discurso suscita. De um jeito ou de outro, o bolsonarismo reivindica para si o papel de morigerador social e se apresenta como uma alternativa à alegada dissolução moral que atribui às esquerdas, o que seduz amplos setores da sociedade. Além disso, trata-se de um discurso que repercute em políticas públicas – ou na ausência delas – e legitima práticas sociais não raramente discriminatórias, o que tem consequências muito reais na vida das pessoas. Diante disso, é interessante refletirmos sobre o fenômeno a partir de uma perspectiva mais ampla, no sentido de compreender como e por que esse tipo de discurso encontra terreno fértil na nossa sociedade.
Protesto contra a visita da filósofa Judith Buttler em São Paulo, em 2017. Foto: Agência Brasil/Rovena Rosa
Um primeiro aspecto a ser considerado é a noção de “ideologia de gênero”. Em linhas gerais, ela expressa a ideia de que o debate e as reivindicações em torno dos direitos sexuais e reprodutivos fazem parte de um plano totalitário, empreendido a nível global por setores progressistas e de esquerda, cujo objetivo seria subverter os valores morais e destruir toda a ordem social. As origens dessa narrativa podem ser localizadas entre a ala conservadora da Igreja Católica, ainda na década de 1970, mas foi a partir dos anos 2000 que ela se popularizou em diversos países, alcançando adeptos entre grupos neopentecostais e setores da sociedade que se reivindicam laicos e democráticos[iii].
No Brasil, esse discurso tem sido empregado para deslegitimar a promoção de direitos reprodutivos; o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero; a educação sexual de crianças e adolescentes; além de manifestações artísticas e culturais que de alguma forma façam referência a gênero e sexualidade. O argumento empregado por aqueles que acreditam existir uma “ideologia de gênero” é o de que esses temas, muito associados às políticas e movimentos sociais de esquerda, são apresentados no escopo dos direitos humanos para que pareçam justos e democráticos, quando, na verdade, seriam antinaturais, totalitários e estariam sendo artificialmente incutidos na sociedade com a intenção de pervertê-la.
Nunca é demasiado ressaltar que essa idealização não encontra respaldo em nenhuma teoria científica reconhecida como tal. Trata-se de uma contra narrativa reacionária, ainda que bastante sofisticada, em muitos sentidos, uma vez que permite aos seus adeptos atualizar antigos discursos frente a uma nova realidade. Ela apresenta também a possibilidade de unir diferentes grupos, pois mescla pautas de natureza moral a outras, cuja natureza política é mais óbvia, de forma que o combate à chamada “ideologia de gênero” converte-se num combate às esquerdas, de uma maneira geral.
No Brasil, assim como ocorreu em outros países da América Latina, o termo começou a se popularizar a partir de 2010, justamente quando o debate sobre gênero e sexualidade ganhava destaque na esfera pública e era discutido no Congresso. O momento coincide com a projeção midiática de Jair Bolsonaro em nível nacional, quando o ex-deputado sobressaiu como uma das mais virulentas vozes contra o material elaborado para o projeto Escola Sem Homofobia, apelidado pejorativamente de Kit Gay por seus críticos[iv]. A partir de então, tanto Bolsonaro quanto outros representantes da extrema direita brasileira, como O Movimento Brasil Livre e o Movimento Escola Sem Partido, por exemplo, passariam a incorporar à narrativa de combate a chamada “ideologia de gênero”, associando-a ao discurso de resistência às políticas e aos movimentos sociais de esquerda.
Criança Viada, série de pinturas de Bia Leite expostas na mostra Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, que foi alvo de calorosos protestos em 2017. Foto: Reprodução/Facebook
No entanto, se o termo é relativamente novo no debate público brasileiro, a ideia que ele transmite não é assim tão inovadora. Em momentos distintos de nossa história, podemos encontrar discursos parecidos, que atribuem a determinados agentes ou grupos sociais a intenção de desvirtuar moralmente o povo com o objetivo de transformar a ordem social. Assim, o projeto de lei do divórcio apresentado por Erico Coelho em 1893 foi atribuído à importação de “ideias modernas”, que ignoravam as “necessidades e costumes” do povo brasileiro e ameaçavam a estabilidade social, institucionalizando a “prostituição” e o “adultério” no país[v]. A Liga pela Moralidade, criada na década de 1910 no Rio de Janeiro, embora tivesse surgido no seio de uma agremiação católica, defendia que sua militância era inspirada por princípios patrióticos e republicanos. Seus militantes acusavam uma “indústria do vício” de tencionar perverter a sociedade. Sabemos ainda que uma das narrativas que legitimou socialmente o golpe-civil militar de 1964 foi a necessidade de proteger os chamados valores tradicionais do povo brasileiro, que estariam sob ameaça diante de uma possível vitória do comunismo no país.
Evidentemente, não se trata aqui de igualar o Brasil de hoje ao de cinquenta ou cem anos atrás. Existem distâncias inegáveis e rupturas que não devem ser minimizadas. Mas há também permanências. Os discursos morais persistem, embora com outros conteúdos, reclamando novas vítimas, algozes e redentores. Eles se adaptam às novas realidades sociais, reformulam-se, podendo parecer mais suaves ou agressivos em determinados momentos, mas prosseguem em disputa. Trata-se, portanto, de chamar a atenção para o fato de que não estarmos diante de um fenômeno alienígena. A agenda moral defendida pelo bolsonarismo, embora apresente peculiaridades que atualizam esse discurso frente ao cenário atual, proporcionando um novo fôlego a ele, é herdeira de uma longa e persistente tradição reacionária. Talvez por isso mesmo a narrativa da chamada “ideologia de gênero” tenha se tornado tão sedutora para determinados setores da sociedade.
É uma lição muito repetida entre os historiadores a de que devemos conhecer o passado para compreender o presente. Creio ser urgente investigarmos mais profundamente este aspecto da nossa história, que diz respeito à persistência de determinados discursos morais e ao lugar que eles ocupam na sociedade, para que possamos concebê-los como o instrumento político que são.
Notas:
[i] As informações foram divulgadas na página oficial do Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46872-brasil-registra-177-589-casos-de-coronavirus-e-72-597-pessoas-recuperadas.
[ii] Bolsonaro anuncia projeto contra “ideologia de gênero”, apesar de STF declarar inconstitucional. Carta Capital, 12/05/2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-anuncia-projeto-contra-ideologia-de-genero-apesar-de-stf-declarar-inconstitucional/.
[iii] Para uma melhor compreensão desse processo, ver: CAMPANA, Maximiliano e MISKOLCI, Richard. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. In: Revista Sociedade e Estado – Volume 32, Número 3, Setembro/Dezembro 2017, p. 725-747.
[iv] O material foi vetado ainda em 2011 pela então presidenta Dilma Rousseff e, portanto, jamais chegou a ser implementado, o que não impediu Bolsonaro de prosseguir insistindo no assunto, apresentando informações fantasiosas sobre a cartilha anti-homofobia. Em um vídeo produzido pela revista Nova Escola, são apontadas algumas das principais inverdades do discurso bolsonarista sobre o material. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpUnNyE8ztU&t=85s.
Crédito da imagem destacada: Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional, durante a campanha eleitoral de 2018. O ex-deputado afirmava que o livro Aparelho Sexual & Cia. era parte de um Kit Gay destinado a crianças e adolescentes. Foto: reprodução/Jornal Nacional.
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