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Interpretar ou sanitizar a extrema direita?

A insistência de Demétrio Magnoli sobre o tema da classificação do Rassemblement National (RN) tem verniz histórico, mas é equivocado e anacrônico. É um aspecto que passa pelas tradições históricas francesas, pelas categorias de análise do fenômeno global e pelos perigos da normalização.


Interpretar ou sanitizar a extrema direita?
Imagem: Thibault Camus. Reprodução.

  • O primeiro tópico é o caso das direitas francesas. A tese clássica foi construída por René Rémond em Les Droites en France, que delineava três tradições históricas fundamentais: legitimista, orleanista e bonapartista. Estas variavam desde proposições efetivamente reacionárias e contrarrevolucionárias, até uma tradição de culto à autoridade, onde se encaixariam formações inspiradas pela "onda fascista". A tese de Rémond foi criticada por autores como Zeev Sternhell, que indicava o fascismo como tradição em si: fenômeno com autonomia organizacional, ambição revolucionária e uma história própria - e não um subproduto de uma linhagem bonapartista. Esse é um ponto de partida importante, pois Magnoli parece insistir em um quadro analítico onde a tradição republicana (direita nacionalista?) seria um campo hermético, distanciado de duas possíveis tendências, que podemos chamar de reacionária e fascista. A historiografia das direitas debate imensamente sobre intersecções e fusões entre três ou quatro tradições.


  • A segunda questão trabalha menos com a matriz histórica francesa e mais com um quadro analítico das formações da ultradireita pós-1945 (notem como a questão contextual é importante). Desde autores como Klaus Von Beyme, existe uma tradição analítica dedicada a compreender como as formações do entreguerras - especialmente os fascismos - se moldaram ao contexto de hegemonia da democracia liberal. Deste grande campo de estudos, orientado sobretudo pela Ciência Política, surgiram novas balizas para categorias como ultradireita, direita radical e extrema direita. Em linhas gerais, o guarda-chuva (ultradireita) compreende desde partidos que atuam nos ritos e procedimentos democráticos (radical) até grupelhos e tendências abertamente antidemocráticas (extrema). No texto que Magnoli publicou na Folha e S. Paulo e cujo tema ele levou ao debate na GloboNews, o comentarista parece não se atentar para este princípio distintivo e, certamente, ignora o campo de estudos. Ainda sobre essas categorias, cabe um alerta que muitas vezes é capitaneado mais pela historiografia, que se preocupa com a hegemonia da categoria "direita radical", pois poderia lidar com um processo de normalização desses fenômenos em procedimentos democráticos. Em linhas gerais, a historiografia destaca o perigo da falsa equivalência entre dois campos "radicais", onde um perseguiria e excluiria minorias (a direita radical), enquanto outro pensaria na universalização de pautas democráticas (a esquerda radical). Sobre este tema, as contribuições de Steven Forti são importantíssimas. Além disso, destaco a análise histórica de autores como Federico Finchelstein, que chama atenção para a genealogia das expressões atuais, de maneira não restrita a tradições estanques, mas ao fluxo de transformações, inclusive nas credenciais oriundas do fascismo. Autores como Enzo Traverso, por exemplo, advertem que o estado atual não é uma plataforma definida, mas um período de transformação pós-fascista, um interregno. Aqui, a historiografia traz uma contribuição imensa. Vejam, o que estou argumentando é que o comentarista político está clamando por uma suposta "pacificação interpretativa" que simplesmente não existe, seja do ponto de vista da interpretação das direitas francesas, seja em relação ao framework do fenômeno atual/global.


  • Por fim, cabe um alerta sobre a dinâmica de normalização das extremas direitas no contexto das crises da democracia liberal. O quadro dos Le Pen é esclarecedor, pois o processo de "desdiabolização" envolve, por um lado, o aceno a valores republicanos construídos desde o crescimento de Marine Le Pen e o ocaso de seu pai Jean-Marie. Certamente, o Front National deixou de ter as exterioridades que o aproximavam de um quadro mais próximo ao campo do neofascismo, revivalista, vichysta etc. Mas, historicamente, precisamos entender e situar essa questão na conjuntura (o trauma de Vichy) e no contexto (a hegemonia da democracia liberal). Mais uma vez, como atenta uma larga bibliografia, o FN/RN opera em um sentido ultranacionalista, nativista, com um projeto político efetivamente orientado quanto a direitos essenciais de minorias, inclusive franceses não-brancos. Aqui, cabe a discussão sobre as categorias (radical ou extrema?), mas são poucos os que não irão interpretar este processo como um perigo à democracia.

Como historiador, chamo atenção para o fato de que as formas políticas adotadas não definem a natureza ou os resultados políticos de um grupo. A história de um certo grupo alemão da década de 1920 é ilustrativa, não? Então, é importante tomar os fenômenos em torno destas questões de fundo histórico e de interpretação. O que Magnoli promove é, simplesmente, uma sanitização da extrema direita (hoje na França, amanhã sabe-se lá onde), e é também um reflexo da permissividade explícita de outros setores das direitas, que embarcaram em um navio prevendo ganhos políticos imediatos, mas o resultado em médio prazo todos conseguimos enxergar.



 

Como citar este artigo:

CALDEIRA NETO, Odilon. Interpretar ou sanitizar a extrema direita? História da Ditadura, 2 jul. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/interpretar-ou-sanitizar-a-extrema-direita. Acesso em: [inserir data].

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