“Investigadores da História”: um serviço à história pública
A partir de 2018, com a estreia de O caso Evandro (Anticast, 2018), houve um aumento exponencial na audiência de filmes, podcasts e séries que abordam crimes reais no Brasil. O gênero conhecido como true crime despertou o interesse de parcela significativa dos ouvintes nos processos de imersão investigativa, onde jornalistas, policiais e historiadores se debruçam por muitas horas na análise de cada detalhe de casos que chocaram a opinião pública.
A mulher da casa abandonada (Folha de S. Paulo, 2022) e Um espião silenciado (HD1, 2022) são alguns exemplos de podcasts em formato de storytelling, em que há um ou mais narradores que apresentam e investigam histórias de forma ativa, a ponto de interferirem nos rumos da apuração dos fatos. Uma história permeia todo o podcast, tendo, geralmente, de 8 a 36 episódios.
Já outros, como Modus Operandi (Globoplay, 2020) e In casu (HD1, 2020), funcionam como compiladores de crimes reais, portanto, cada história se inicia e termina no mesmo episódio. Os narradores não interferem nas investigações, tendo a função de apresentar os crimes citados de maneira mais didática para o público.
A televisão acompanhou esta tendência e criou programas como Investigadores da História (History Channel, 2020), além de retomar um clássico do gênero: o Linha Direta (Globo, 2023). Focarei na análise do primeiro programa mencionado, dado o interesse da série na apuração pericial de mortes ocorridas durante a ditadura militar brasileira.
Os responsáveis pelas investigações dos 13 casos mostrados na única temporada do programa são: Mauro Yared (perito criminal da Polícia Civil do Distrito Federal desde 1993 e perito da Comissão Nacional da Verdade entre 2013 e 2015) e Celso Nenevê (ex-diretor do Instituto de Criminalística do Distrito Federal, ex-presidente da Associação Brasileira de Peritos Criminais e perito criminal especializado em mortes violentas, balística, explosivos e explosões).
Os episódios têm em torno de uma hora e são divididos em cinco partes:
1) Apresentação da vítima, de informações básicas do óbito e levantamento de hipóteses a serem investigadas por Celso Nenevê e Mauro Yared;
2) Entrevista com testemunhas, familiares e amigos da vítima, além da análise específica da documentação do caso, seja histórica, jornalística ou pericial;
3) Mapeamento em 3D, pela empresa estadunidense Faro Technologies, do cenário onde ocorreu a morte in loco e reconstituição digital do local e das pessoas envolvidas no óbito;
4) Testes com armas de fogo, explosivos, ligas de aço, panos e cordas, contando com o auxílio de manequins, carnes de animais e bexigas de farinha para simular a causa da morte;
5) Conclusão.
É possível perceber contradições na utilização de certas palavras para se referirem a essa conjuntura histórica específica. Ao longo dos episódios, são utilizados termos como: “regime militar” e “ditadura”, “terroristas” e “revolucionários”.
Em uma breve pesquisa no perfil pessoal de Mauro Yared no Instagram, encontrei diversas postagens de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a seus aliados. Entretanto, tenho que admitir que isso não interferiu na análise objetiva dos casos, visto que, em episódios como os de Arnaldo Cardoso e Higino Pio, o investigador refutou as respectivas versões da polícia e das Forças Armadas de “troca de tiros” ou suicídio como causas da morte de ambas as vítimas.
A própria página da série no Facebook, ao ser indagada por usuários sobre opiniões políticas a respeito do tema, afirmou estar focada exclusivamente na análise técnica dos casos. Nota-se também que a maioria das entrevistas com militantes, ex-guerrilheiros e familiares são feitas por Celso Nenevê, que demonstra uma perspectiva mais crítica às ações da ditadura militar.
A série tem o mérito de destrinchar hipóteses veiculadas pelo senso comum em casos de grande repercussão nacional como os de Vladimir Herzog e Stuart Angel. No caso de Vladimir Herzog, a versão oficial da ditadura afirmou que o jornalista teria cometido suicídio na cela do DOI-CODI, em São Paulo. A resposta mais difundida para rebater a alegação dos militares é que Herzog não poderia ter se suicidado, pois seu pescoço estava amarrado a uma grade de 1,63 m de altura e ele tinha por volta de 1,70 m, além das pernas terem sido quebradas. Sendo assim, o que os peritos chamam de asfixia por suspensão incompleta não poderia ter sido a causa de sua morte, isto é, quando a vítima tem a possibilidade de tocar no solo no momento de uma asfixia. Porém, o que Celso e Mauro relatam é diferente do convencional.
Os apresentadores do programa afirmam que é possível morrer por suspensão incompleta, caso a pessoa deseje se suicidar e que, portanto, esse não deve ser o melhor argumento para contrariar a versão dos militares. O que explica o assassinato de Herzog são os dois sulcos em direções diferentes no seu pescoço (um de cima para baixo e outro de baixo para cima), além das marcas e da falta de pelos na parte superior das costas do jornalista, o que consta em seu laudo cadavérico. Um dos sulcos teria sido feito através de enforcamento quando Herzog foi torturado, provavelmente em uma “cadeira do dragão”, o que explicaria também as marcas e a ausência de pelos nas costas. O outro sulco no pescoço teria surgido quando, já morto, foi pendurado em sua cela para simular um suicídio.
Outro caso de repercussão nacional foi o de Stuart Angel, remador do Flamengo, estudante de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militante do grupo de guerrilha urbana denominado Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Stuart se escondeu por três dias na garagem dos barcos do Flamengo antes de ser capturado e levado para a Aeronáutica. A versão mais difundida é que Stuart Angel teria sido arrastado por um jipe militar pelo pátio do Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador. Em alguns momentos, teriam o arrastado e colocado sua boca no escapamento do carro, em alusão ao fato do militante ser usuário de maconha. Isso teria sido feito para que pudesse pressionar Stuart a revelar a localização do líder do grupo guerrilheiro MR-8, Carlos Lamarca.
Celso e Mauro mostram a fragilidade dessa tese, contestando o ato do arrastamento do corpo de Stuart pelo Galeão, um dos aeroportos mais movimentados do Rio de Janeiro e o único com voos internacionais. Certamente, isso atrairia olhares de curiosos e repercutiria no grande público. Testes feitos com aparelhos especializados mostraram a alta temperatura que um escapamento de carro geraria no esôfago de uma pessoa, o que impediria a confissão da vítima para seus algozes e até mesmo sua sobrevivência.
Os peritos não se propõem somente a criticar hipóteses, mas a apontar soluções apresentadas na Comissão da Verdade. Apoiam-se no depoimento de um militar que confirmou que Stuart teria sido enterrado na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em 1971, ano de sua morte. Em 1976, houve uma obra de ampliação e modernização desta base aérea pela empresa Cetenco Engenharia S.A. Nesse mesmo ano, a Cetenco fez uma obra no centro da cidade e no local foi encontrado um crânio e alguns ossos. Este crânio foi enviado para o Centro de Ciências Forenses da Universidade de Northumbria, na Inglaterra e os especialistas afirmaram que há compatibilidade com o rosto de Stuart Angel.
A hipótese de Celso e Mauro é que Stuart teria sido morto e enterrado na Base Aérea de Santa Cruz e seus restos mortais teriam sido levados pela empresa Cetenco, de Santa Cruz para o centro do Rio de Janeiro, sem intenção. É muito provável que tenha ocorrido um reaproveitamento das terras usadas na obra de Santa Cruz para a obra do centro da cidade, o que teria deslocado, sem intenção, o crânio de Stuart até o centro do Rio.
Diante de todas essas informações, acredito ser muito proveitosa a experiência de assistir a série Investigadores da História, sobretudo pela oportunidade de acompanhar em detalhes o trabalho da perícia presente na Comissão da Verdade. Diversos esforços são feitos para uma análise mais ampla dos casos, tais como a utilização de drones, mapeamentos digitais dos locais do crime e simulação de disparos com armas de fogo em diferentes objetos, oferecendo novas questões às conclusões explanadas pelos especialistas até o momento.
Vale ressaltar que não pretendo, com esse artigo, passar a ideia de que existem programas “certos” para falarem sobre crimes da ditadura e outros “errados” ou sensacionalistas. A intenção é destacar a importante contribuição à memória social de um programa que alia acontecimentos históricos com uma tecnologia de alto nível, afim de elucidar questões que, há décadas, instigam especialistas do tema.
Em tempos de grande interesse por programas de true crime, é importante a divulgação de produções como essa, pois elas podem funcionar como grandes aliadas da historiografia para a promoção de uma História Pública. Dito de outro modo, uma forma de levar o conhecimento histórico para além dos muros da universidade, aproximando o público em geral das discussões travadas por muitos anos na academia.
Referências
BRASIL. Relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Investigadores da História (Seriado). Direção: Tony Rangel. Brasil: History Channel, 2020. 13 episódios.
JORDÃO, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021.
Como citar este artigo:
ALBERTI, Raphael. “Investigadores da História”: um serviço à história pública . História da Ditadura, 30 out. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/investigadores-da-hist%C3%B3ria-um-servico-a-historia-publica. Acesso em: [inserir data].
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