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Foto do escritorCarlos Bauer

Judeus escravizados em Dresden: o capitalismo e o Terceiro Reich

No texto anterior, discuti acerca dos bombardeios de Dresden e de seu papel na construção de uma “memória dupla” na Alemanha do pós-Segunda Guerra. Como alegou o presidente Frank-Walter Steinmeier em 2020, é consenso que o território germânico virou palco de grandes disputas de memória: enquanto a sociedade civil democrática busca o equilíbrio entre a vitimização e a responsabilidade, grupos extremistas instrumentalizaram o passado visando deslegitimar o Holocausto. alegando que o massacre de judeus não passa de uma conspiração e que o verdadeiro genocídio foi executado pelos Aliados.

O “mito da vítima” é um elemento presente nas narrativas daqueles que buscam alegar a irrelevância de Dresden na estratégia de guerra alemã. Segundo seus adeptos, a cidade não possuía grandes fábricas e nenhum tipo de produção que pudesse impactar os esforços bélicos a favor da vitória germânica. Pelo contrário, alegam que os bombardeios destruíram o centro histórico e ceifou a vida de milhares de civis (muitos deles refugiados).

Para desconstruir esse argumento, é necessário comprovar a existência de indústrias em Dresden. Este texto demonstra não só a sua existência, mas também as relações estatais-empresarias construídas entre figuras de poder que utilizaram de toda a máquina antissemita do nazismo para alimentar os objetivos da iniciativa privada.

O mito da cidade sem indústria


Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, muitos defensores do “mito da vítima” alegaram que a cidade não possuía atividade industrial relevante. Para os aliados, um fato que corroborou a presença industrial em Dresden foi a atuação da Zeiss-Ikon, a maior responsável pela geração de empregos privados na cidade e extremamente ativa nos esforços de guerra.Antes do conflito, qualquer alemão saberia dizer o que fazia a Zeiss-Ikon. Fundada em Dresden no ano de 1926, a empresa tornou-se referência mundial na produção de câmeras fotográficas – especialmente as de filme estreito – e na fabricação de projetores e lentes voltadas para o ramo fotográfico. Tal processo industrial requeria especialização e garantiu uma posição de destaque em um setor muito restrito da economia pré-guerra. Entretanto, não foi o surgimento da empresa nem seu posterior reposicionamento de marca que chamam a atenção. Além de empregar um enorme número de dresdenses, a Zeiss-Ikon foi um exemplo das relações escusas envolvendo o poder público local e executivos do setor privado durante o Terceiro Reich.


Placa de informações em frente à casa na Oschatzer Strasse 15, Dresden, com referência ao acampamento judeu de Hellerberg, a loja de departamentos Fanger e a fábrica Goehle. Autor: Derbrauni. Wikimedia Commons.

A importância econômica da empresa rendia posição de privilégio entre o alto-escalão da política local, possibilitando ganhos ilegais ao longo de toda a guerra. Como grande parte das fábricas alemãs, a Zeiss-Ikon mudou o foco da sua linha de produção durante o conflito, passando a atuar ativamente na fabricação de armamentos e miras para aviões da Luftwaffe. De acordo com Frederick Taylor, em sua obra Dresden: terça-feira, 13 de fevereiro de 1945 (2004): “(...) o maior empregador de Dresden era, de longe, a Zeiss-Ikon. E se passara muito tempo desde que a renomada empresa produzira alguma coisa tão inocente quanto uma câmera fotográfica”. A transição da gigante fotográfica para o ramo bélico representa o recorte de uma prática comum nas cidades envolvidas na guerra. No período em que o mundo consumia mais armas do que máquinas fotográficas, a Zeiss-Ikon se readaptou.


Perseguidos e escravizados


Outro fato relevante na relação Dresden-Ikon foi a utilização da mão de obra forçada durante o período nazista. Apesar de pouco mencionado nas listagens habituais, existiu um campo de trabalho forçado na capital da Saxônia durante o Terceiro Reich: o judenlager Hellerberg, que ficava na periferia Norte da cidade, próximo ao aeródromo (Taylor, 2004). Em essência, tratava-se de um campo de concentração, mas seu foco era a utilização de judeus escravizados na linha de montagem da Zeiss-Ikon.

Estudar a história desse “acampamento judeu” é entender ainda mais a profundidade dos negócios da Zeiss-Ikon durante a guerra. O campo, localizado na Dr.-Todt-Strasse 4(rua Dr. Todt, número 4), era um antigo armazém da empresa. A estrutura montada para receber judeus seguia os padrões dos campos de concentração espalhados pela Europa: galpões, camas de palha e punições físicas severas. A especificidade centrava-se no fato de ser uma filial da empresa que mais empregava pessoas em Dresden – a propriedade privada aos moldes do Terceiro Reich.

O abastecimento do campo dependia do confinamento de judeus, principalmente daqueles que ainda viviam em Dresden na década de 1930. Foi durante o governo de Martin Mutschmann (1925-1945), líder da Saxônia, que as ofensivas contra os judeus locais ganharam corpo. A sinagoga Semper foi incendiada durante o pogrom de 1938 e a política das “casas de judeus” passou a ser difundida por todo o Estado. A ideia era segregar, assim como ocorreria nos guetos poloneses após a invasão de 1939.

Panfleto distribuído pelo grupo Dresden Nazifrei (Dresden livre de nazistas) descrevendo a história do campo Hellerberg. Fonte: Dresden Nazifrei, 2019.

O passo seguinte da política antissemita era concentrar os judeus no campo montado pela indústria: o campo da Zeiss-Ikon. Lá, os internos eram obrigados a trabalhar na produção de armamentos, tendo suas atividades reguladas por membros da Gestapo orientados por executivos da empresa. Taylor, ao descrever imagens de filmes que detalhavam o cotidiano da Zeiss-Ikon, observou as relações entre indivíduos do Estado com os empresários da seguinte forma:


Os homens da Gestapo sorriem e conversam animadamente. Um deles é o SS-Scharführer Martin Perri e o outro, o SS-Üntersturmführer Henry Schmidt, chefe do departamento Judaico de Dresden, o famoso Jüdenreferat. Schmidt, com as mãos nas costas cobertas pelo sobretudo, em uma atitude de relaxado comando, quase gargalha ao dirigir a palavra ao policial à paisana. Entre eles está o enigmático civil com charuto na boca, o dr. Johannes Hasdenteufel, um poderoso executivo da Zeiss-Ikon AG, a gigante da indústria de câmeras e lentes no mundo pré-guerra e maior empregador de Dresden. 

A relação quase íntima entre Henry Schmidt e Johannes Hasdenteufel reforça a tese de que os limites entre o público e o privado já não existiam em Dresden. Os possíveis benefícios econômicos de Hellerberg aproximaram o aparato estatal de opressão e figuras importantes da esfera privada.Schmidt, nomeado para gerir questões burocráticas do campo, indicava um ancião entre os prisioneiros para comandar os demais. O campo não possuía grandes proporções, mas fornecia a mão de obra necessária para alcançar as metas da Zeiss-Ikon. A população judaica de Dresden não era grande – na verdade, estava abaixo dos índices nacionais. Enquanto a cidade possuía 0,26% de judeus em relação à população total, a Alemanha encontrava-se com uma porcentagem de 0,77% (GRYGLEWSKI, 1998).


Vale ressaltar que os prisioneiros do campo não foram apenas os judeus locais, mas indivíduos trazidos de outras regiões e que estavam de passagem. Por sinal, Hellerberg recebeu a denominação “campo de passagem de curta duração”, exatamente pelo seu tamanho, finalidade e posição geográfica.

No início da sua estruturação, o campo não era extremamente enclausurado, mas passou a ter status de detenção a partir das ações contra os judeus em 1943. De Hellerberg muitos foram enviados para Theresienstadt e Auschwitz. Aos poucos, o campo ficou vazio e perdeu sua função após as deportações para o Leste.

Os “campos de trânsito” eram ferramentas importantes para que a máquina do extermínio continuasse sendo abastecida com judeus de diferentes cantos da Europa. A ideia era movimentá-los sem reinseri-los na sociedade. Geralmente, esses campos eram vistos como locais menos brutais e com maior possibilidade de sobrevivência. Não há comparação possível entre Hellerberg e Treblinka ou Auschwitz.


Campo de judeus “privado”


A principal questão envolvendo o campo de Dresden é a sua especificidade em relação ao contexto aqui discutido. Primeiro, tratava-se de uma estrutura voltada para comportar os poucos judeus que ainda restavam na cidade, comprovando a perseguição antissemita na “cidade vítima”. Segundo, a organização do judenlager para atender aos anseios de uma empresa privada, fornecendo mão de obra escrava em meio ao Holocausto.

Um olhar mais atento sobre a histórica fabricante de máquinas fotográficas proporciona uma melhor compreensão da realidade de Dresden. Empresas privadas favorecendo-se daquilo que a guerra pode oferecer, com o adicional da utilização dos judeus por conta das políticas antissemitas. Uma empresa mobilizada para fins bélicos, com relevância política e econômica a ponto de montar seu próprio campo de concentração com aval e participação da Gestapo. Dresden era realmente uma cidade sem indústria?

É possível concluir que a progressiva readaptação da indústria dresdense passou pelo impulso do setor público. Era necessário endossar a economia de guerra e, ao mesmo tempo, fortalecer a máquina capitalista pré-existente na Alemanha. Executivos encontraram na doutrina e nas práticas do nazismo uma oportunidade perfeita para economizar com mão de obra e executar propostas de enriquecimento que violavam todos os direitos fundamentais.


Créditos da imagem destacada: Corpos carbonizados em Dresden. Fonte: Bundesarchiv, Bild 183-R72629/ Autor: Hahn.

 

REFERÊNCIAS

GRYGLEWSKI, Marcus. Sobre a história da perseguição nazista aos judeus em Dresden: 1933-1945. In: Norbert Haase, Stefi Jersch-Wenzel, Hermann Simon (eds.). A memória tem um rosto. Saxon Memorials Foundation e Gustav Kiepenheuer Verlag, Leipzig 1998, p. 100.

JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo: Todavia, 2018.

KLEMPERER, Viktor. I will bear witness: a diary of the nazi years 1942-1945. Nova York: Random house, 2000.

TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça-feira, 13 de fevereiro de 1945. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.

WALZER, Michael. Just and unjust wars: a moral argument with historical illustrations. Nova York: Basic books, 1972.



Como citar este artigo:

BAUER, Carlos. Judeus escravizados em Dresden: o capitalismo e o Terceiro Reich. História da Ditadura, 6 jul. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/judeusescravizadosemdresdenocapitalismoeoterceiroreich . Acesso em: [inserir data].



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