Lélia González e Beatriz Nascimento: intelectuais negras em tempo de ditadura
Atualizado: 13 de abr. de 2022
Uma das temáticas menos investigadas nos estudos sobre a ditadura militar brasileira é a atuação das mulheres negras na luta contra o regime. No entanto, o fato de não haver muitas pesquisas acadêmicas sobre o assunto não impede que sejam encontradas referências a essas mulheres nesse período de nossa história recente. O próprio fato de haver poucos estudos acerca dessa temática é muito eloquente. Contudo, podemos tentar recuperar a história das mulheres negras ao longo da ditadura a partir da lembrança de duas importantes intelectuais negras que se destacaram naquele momento: Lélia González (1935-1994) e Beatriz Nascimento (1942-1995). Por meio da trajetória e da obra dessas duas referências da intelectualidade negra brasileira, é possível chegar a algumas conclusões a respeito da condição das mulheres negras no Brasil da época.
É sabido, porém, que as expressões do movimento negro foram alvo de censura dos governos militares, que negavam a existência do racismo na sociedade brasileira. Como esmiuçado por Lucas Pedretti em artigo publicado em janeiro de 2017 no História da Ditadura, as manifestações, culturais ou políticas, do movimento negro foram alvo de perseguição e censura pelos agentes da ditadura brasileira, que defendia o mito da democracia racial. Prova disso foi a perseguição sofrida pelo bloco afro Ilê Aiyê, da Bahia, e pelos bailes soul realizados nos subúrbios cariocas na década de 1970.
É nesse contexto que ocorreu o desenvolvimento do trabalho das duas expoentes da intelectualidade negra brasileira supramencionadas. Contemporâneas, ambas foram de enorme importância para o desenvolvimento de pesquisas sobre as questões raciais e de gênero no Brasil.
Lélia Almeida González nasceu em Belo Horizonte e mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1940, onde graduou-se em História e Filosofia. Posteriormente, tornou-se mestre em Comunicação e doutora em Antropologia. Professora, sua trajetória intelectual foi marcada pela articulação entre militância política e uma produção intelectual dedicada ao estudo da história e da cultura afro-brasileiras. Em seus escritos, abordava a questão da opressão vivida pelas mulheres negras, inclusive nos círculos feministas e de esquerda e destacava a importância da luta das “amefricanas” contra as opressões de raça, classe e gênero. Apontava a especificidade da luta das mulheres negras em relação à luta das mulheres brancas. Em um artigo intitulado “Por um feminismo afro-latino-americano”, de 1988, Lélia escreve:
[…] para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias – a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos. E foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação. A mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa presença nos ME [movimentos étnicos] é bastante visível; aí nós amefricanas e ameríndias temos participação ativa e em muitos casos somos protagonistas. Mas é exatamente essa participação que nos leva a consciência da discriminação sexual. Nossos companheiros de movimentos reproduzem as práticas sexistas do patriarcado dominante e tratam de excluir-nos dos espaços de decisão do movimento. E é justamente por essa razão que buscamos o MM [movimento de mulheres], a teoria e a prática feministas, acreditando aí encontrar uma solidariedade tão importante como a racial: a irmandade. Mas o que efetivamente encontramos são as práticas de exclusão e dominação racista […]. Somos invisíveis nas três vertentes do MM[1]; inclusive naquela em que a nossa presença é maior, somos descoloridas ou desracializadas, e colocadas na categoria popular (os poucos textos que incluem a dimensão racial só confirmam a regra geral). […]
Lélia Gonzalez, Cosme Velho, Rio de Janeiro, década de 1980 Acervo JG/Foto Januário Garcia (Fonte: Projeto Memória)
Alguns anos mais tarde, em entrevista ao Jornal do MNU, Lélia comenta sobre a sua trajetória no feminismo:
No meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas, etc. e eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as questões que elas estavam colocando. Agora, na própria fala, na postura, no gestual, você verificava que a questão racial era… Isso a gente já discutiu muito e a experiência que eu tive foi num encontro na Bolívia promovido pelo MUDAR (Mulheres por um Desenvolvimento Alternativo), uma entidade internacional que foi criada um pouco antes do encerramento da década de mulher em 1985. Foi ali, pela primeira vez, que eu encontrei um tipo de eco, uma maturidade por parte do movimento, no sentido de parar e refletir sobre as questões que a gente coloca enquanto mulher negra […] Mas não há dúvida de que existe um setor do movimento de mulheres que está preocupado com a questão racial. O feminismo, como uma feminista inglesa colocava, não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores antigos, se ele não levar em conta a questão racial. […] (Jornal do MNU, 1991, p. 9)
Além de professora, Lélia também foi uma das fundadoras do Olodum (BA), do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN-RJ), do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras (RJ) e do já citado Movimento Negro Unificado (MNU). Também foi diretora do Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
A educação da população negra era uma das preocupações de Lélia González. Em entrevista a uma edição de 1991 do Jornal do MNU, Lélia comentou a esse respeito:
Na África, num desses Congressos em que estive, essa questão pintou, levantada por um companheiro do Movimento Negro dos EUA. A grande questão levantada foi esta: ‘Nós estamos aqui falando do passado, de glórias ou de derrotas, mas como é que estamos nos colocando em termos de perspectivas, em termos de futuro? O ano 2000 está aí, o mundo se automatiza cada vez mais – e nós?’ […] Veja que isso é muito sério, em termos de nossa comunidade, essa ausência de instrumental que lhe possibilite se colocar em pé de igualdade com as populações não-negras, que têm um acesso extraordinário à informação. Você percebe isso nas pequenas coisas, como esses videogames da vida. As nossas crianças nem sabem o que é isso, porque elas estão nas ruas, sem escola, vendendo balas. […] Recordo-me de um papo com Darcy Ribeiro, ele dizendo justamente essa coisa. Eu estava defendendo a oralidade, a cultura oral. E ele dizia que achava válido o que eu estava dizendo, mas que não era suficiente. Porque se não souber ler, dança. […] Acho que o Movimento Negro tem que pensar seriamente nessa questão. E veja que é uma de nossas grandes bandeiras, sempre levantamos a questão da educação. Agora acho que nós não a implementamos devidamente, a gente falava muito mas não desenvolvemos trabalhos concretos nesse sentido. E temos que partir para isso urgentemente, ontem. (idem, p. 8)
Lélia González também participou da vida política do país. Em 1982, candidatou-se a deputada federal do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi militante entre 1981 e 1986. Desfiliou-se do PT em 1986, quando ingressou no Partido Democrático Trabalhista (PDT), pelo qual disputou o cargo de deputada estadual.
Lélia González faleceu em 1994, vítima de um enfarte.
Intelectual, poeta e ativista, Mariz Beatriz do Nascimento nasceu em Aracaju, no ano de 1942. Em 1950, juntamente com os seus dez irmãos, sua mãe – a dona de casa Rubina Pereira do Nascimento – e seu pai – o pedreiro Francisco Xavier do Nascimento, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1971, ingressou no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Após concluir a graduação, trabalhou como professora na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Assim como Lélia González, impulsionou as pesquisas sobre as relações étnico-raciais nas universidades brasileiras. Tal como sua contemporânea, Beatriz Nascimento criticava o mito da democracia racial presente no discurso oficial. No texto Por uma história do homem negro, a pesquisadora escreveu: “A democracia racial brasileira talvez exista, mas em relação ao negro inexiste”.
Enquanto historiadora, Beatriz Nascimento questionou a ausência de pesquisas sobre o negro no Brasil para além da temática da escravidão. No documentário O negro da senzala ao soul (1977), a historiadora afirma que a “história brasileira foi escrita por mãos brancas” e que os quilombos deveriam ser estudados para além da repressão, pois constituíam espaços sociais formados por pessoas negras que, antes de considerarem a si próprias como escravas – posto que eram livres anteriormente à sua escravização – se entendiam enquanto homens. Além disso, a história dos quilombos não se esgota com o fim da escravidão; o quilombo é um continuum na história do negro brasileiro.
Foi uma das fundadoras do Grupo de Trabalho André Rebouças, na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde orientou estudantes negras/negros de diversos cursos, com a finalidade de ampliar a produção de conhecimento sobre o negro no Brasil. Em 1981, concluiu uma especialização (pós-graduação lato senso) em História nesta mesma instituição, com a pesquisa “Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas”.
Segundo Alex Ratts, “para Beatriz Nascimento, o corpo negro se constitui e se redefine na experiência da diáspora e na transmigração (por exemplo, da senzala para o quilombo, do campo para a cidade, do Nordeste para o Sudeste”. (RATTS, 2006, p. 65). Ainda segundo o autor da principal biografia da pesquisadora, o corpo do negro é o “principal documento dessas travessias, forçadas ou não”. (idem, p. 68).
Ó paz infinita, poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América e novamente Europa e África. Angola. Jagas. E os povos do Benin de onde veio minha mãe. Eu sou atlântica.
Beatriz Nascimento (Fonte: Jornal USP)
Neste poema de 1989, destaca-se uma característica da obra de Beatriz Nascimento. Em seus escritos, a intelectual faz questão de pontuar a sua identificação com o seu objeto de pesquisa, distanciando-se dos parâmetros positivistas das ciências humanas que apontam a necessidade de distanciamento entre o pesquisador e o seu objeto de pesquisa.
Entre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro das ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino dos homens de fora. Corpo/mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico que me faça conteúdo da sombra das palavras. Contornos irrecuperáveis que minhas mãos tentam alcançar. (Beatriz Nascimento. “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra [1977]. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006)
Para ela, a questão econômica não seria o grande drama do negro na sociedade brasileira. No documentário Ôrí, de 1989, a pesquisadora afirma, em sua fala, durante a Quinzena do Negro, realizada na Universidade de São Paulo, em 1977, que a situação econômica do negro brasileiro “apesar de ser um grande drama, não é o grande drama. O grande drama é o reconhecimento do homem negro, que nunca foi reconhecido no Brasil.”
A vida de Beatriz Nascimento chegou ao fim de forma trágica: morreu assassinada em 1995, ao defender uma amiga que tinha um companheiro violento. Àquela altura, cursava o mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ.
Juntas, Lélia Gonzáles e Beatriz Nascimento contribuíram para impulsionar os estudos sobre a temática racial nas universidades e tiveram um importante papel para pontencializar o debate sobre questões que fazem parte da pauta do movimento das mulheres negras na nossa época – como a representatividade e o acesso da população negra à educação. Recuperar a memória dessas duas referências intelectuais, além de uma homenagem, serve também como estímulo para o desenvolvimento de pesquisas sobre o período da ditadura que aborde de forma mais detalhada a luta e o cotidiano das mulheres negras e periféricas, além de ser uma inspiração para as lutas das “amefricanas” de nosso tempo.[2]
Graciella Fabrício da Silva é historiadora e professora de História.
Notas:
[1] Aqui, Lélia se refere a uma caracterização da participação política das mulheres, no interior do movimento feminista, em três vertentes, feita por Virgínia Vargas: popular, político-partidária e feminista. Segundo Lélia González, é na vertente popular que se encontra a maior participação de ameríndias e amefricanas.
[2] Um pouco da biografia das duas pode ser conhecido pelos documentários “Em busca de Lélia” (2017), dirigido por Beatriz Santos Vieira, e “Ôrí” (1989), da cineasta e socióloga Raquel Gerber.
Bibliografia:
Lélia González. “Por um feminismo afro-latino-americano”. Disponível em: USP. Originalmente publicado da Revista Isis Internacional. (8), out. 1988.
“Maria Beatriz do Nascimento (1942-1995)”. In: Acorda Cultura.
“Lélia González (1935-1994)”. In: Acorda Cultura.
Alex Ratts. Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
Crédito da imagem destacada:
Photo by Ayo Ogunseinde on Unsplash