Memórias negociadas, vítimas contestadas: o memorial do deslocamento alemão
Nos meses finais da guerra, milhões de alemães fogem do Exército Vermelho para o oeste. A maioria das pessoas que vivem nas regiões orientais do Reich alemão e no centro e sudeste da Europa são expulsas após o fim da guerra. No total, mais de 14 milhões de pessoas são afetadas por fugas e deslocamentos, e mais de 600.000 pessoas perderam suas vidas. (SFVV, 2021. Tradução minha)
O teórico alemão Karl Jaspers eternizou-se ao lançar sua obra A questão da culpa (1946) e ousar entender o que viria após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial. Ao investigar os efeitos psicológicos da guerra, Jaspers delineou o papel que a responsabilidade ocuparia na mentalidade alemã. Para ele, a culpa representaria um sentimento geral entre os alemães – a ideia de que todos seriam responsáveis em algum grau pelo morticínio causado pelo nazismo.
Observando as dinâmicas sociais dos alemães durante a guerra, é possível afirmar que a responsabilidade não poderia ser descartada. Campos de concentração dividiam espaço com comunidades bucólicas que viviam normalmente, enquanto “inimigos do Estado” trabalhavam até a morte. Nos arquivos da Gestapo, vizinhos denunciavam-se em busca de ganhos pessoais e instrumentalizavam o antissemitismo para tal. Mulheres acusadas de relacionamentos com poloneses ou judeus eram prontamente entregues à polícia ideológica do nazismo, como demonstrou o historiador Frank McDonough em seu livro The Gestapo: the myth and reality of Hitler's secret police.
Os alemães eram, de fato, culpados pelos crimes do Terceiro Reich. Transpondo a visão tradicional que responsabiliza apenas os líderes do nazismo, é possível observar a variedade de debates presentes na sociedade alemã até a atualidade. Dotados de uma perspectiva penitente da própria História, muitas vezes encaram de forma desconfiada quaisquer debates que envolvam as condições de “vítima” dentro do cenário germânico.
Fala-se da culpa e da responsabilidade, assim como da “memória penitente”, conceito utilizado pelo alemão Thomas Berger: é possível falar em vítimas na Alemanha? Quando o objeto de análise é um país ocupado, os carrascos e as vítimas acabam sendo delimitados, ainda que de maneira difusa. Os franceses, agarrados ao mito da resistência contra o domínio nazista entre 1940 e 1944, deixaram de lado a colaboração do Estado fascista de Vichy. Invadida e ocupada, a sociedade francesa encontrou atalhos para tornar sua narrativa heroica e vitimizada.
Processo semelhante pode ser observado no Leste Europeu ao longo do século XX. Tais territórios foram mutilados e saqueados por nazistas e comunistas, mas também tiveram seu grau de colaboração no Holocausto. Contudo, a narrativa da vítima compõe a base da memória nacional de países como Polônia e Hungria, não havendo espaço para questionar criticamente as ações de governos ou indivíduos alinhados ao nazismo. Até mesmo na Itália, país pioneiro na estruturação de um Estado fascista, a relação com as narrativas da guerra encontra o caminho do heroísmo. Todos que lutaram contra o Estado nazifascista de Saló (1943) tornaram-se resistentes, até mesmo os fascistas de longa data.
Assim, a narrativa do museu de Bologna, sem dizê-lo, apresenta os militares, oficiais e soldados, em sua grande maioria, como vítimas da Alemanha e da República Social Italiana. Da mesma forma que nos museus de Roma, Morfasso e Valmozzola […] o exército italiano é poupado das responsabilidades das guerras e batalhas travadas em nome do fascismo. (ROLLEMBERG, 2016, p. 269)
No caso alemão, quando não focalizavam a questão da culpa, as discussões recaíam em um debate sobre o negacionismo. Historicamente, indivíduos extremistas apropriaram-se das narrativas vitimistas para relativizarem o Holocausto, indicando que o genocídio sofrido pelos judeus não passava de uma grande farsa. David Irving, conhecido agitador político britânico, ficou mundialmente conhecido ao negar o Holocausto em um tribunal inglês após processar a historiadora estadunidense Deborah Lipstadt. Irving é adepto da teoria do “verdadeiro Holocausto”, o qual seriam os bombardeios efetuados pelos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial.
Outros negacionistas como Léon Degrelle, conhecido por escrever uma carta aberta ao Papa João Paulo II denunciando a “trama dos judeus”, reforçam a tese das vítimas esquecidas da Segunda Guerra Mundial. Ao longo dos anos, ousar desviar o caminho da memória penitente representou receber acusações de revisionismo negacionista e desenvolver um processo de trivialização do sofrimento reconhecido dos grupos perseguidos pelo nazismo. Mesmo com toda a problemática envolvida, é cada vez mais urgente compreender quem são essas supostas vítimas da Alemanha.
Vítimas ou carrascos?
Qualquer debate voltado para esta temática deve buscar responder à pergunta feita anteriormente: é possível falar em vítimas na Alemanha nazista? As respostas partem inicialmente da desconstrução de noções generalizantes da sociedade alemã e, por fim, da problematização dos discursos rasos adotados pela extrema-direita.
A responsabilidade irrestrita da sociedade alemã – muito adotada ao longo dos anos de divisão – dá o tom das generalizações questionadas ao longo do tempo, principalmente nas décadas finais do século XX. Konrad Adenauer, chanceler da República Federal Alemã entre 1949 e 1963, era adepto do “aceitar e seguir em frente”, uma noção de culpa incontornável e necessidade de reposicionar a Alemanha no cenário internacional. É importante citar que assumir o seu papel de algoz no Holocausto possibilitou ao país um lugar de destaque na construção da União Europeia. Segundo a alemã Aleida Assmann, o Holocausto e o seu reconhecimento são considerados os mitos fundadores da Europa ocidental moderna pela comunidade política da Europa.
Com a emergência de tendências historiográficas que analisam os aspectos culturais, novas intepretações adentraram nas discussões sobre o papel da sociedade alemã no nazismo, destacando a colaboração ou não desses indivíduos. A responsabilidade, muitas vezes indireta, passava a ser entendida como voluntariado nos crimes perpetrados, tal qual defendeu o polêmico autor Daniel Goldhagen em Os carrascos voluntários de Hitler (1996). Arrasado pela crítica, Goldhagen apontava uma participação ampla e ativa da sociedade alemã, arrastando a intencionalidade para o seio da sociedade. Não se tratava mais de aceitar e conviver com o Holocausto, mas executá-lo.
Percepções essas reforçam a generalização da condição de algoz na Alemanha. Torna-se ainda mais difícil lidar com o conceito de vítima, sequestrado pela extrema-direita ao longo do século XX. Nota-se que o dilema se tornou uma questão política de extrema relevância para os países vizinhos, uma vez que vitimizar qualquer alemão seria uma narrativa que deslegitimaria seus sofrimentos. Para conseguir romper com a visão culpa-consentimento, é necessário observar atentamente os dois eventos mais presentes na narrativa extremista para questionar o Holocausto: os bombardeios e a questão dos “deslocados”.
Qualquer fato no qual alemães ocupem a condição de alvo recebe grande atenção da extrema-direita. O processo é simples: reforçar o sofrimento, manipular os fatos e compará-los com o Holocausto. A partir da comparação é possível questionar e, consequentemente, negar a morte de seis milhões de judeus ao longo da Segunda Guerra Mundial. Portanto, como lidar com essas memórias nas quais os alemães não são os algozes, mas sim as vítimas? As vítimas necessariamente são dotadas de uma aura puritana ou são indivíduos contraditórios? Ao entrevistar Alda Niemeyer, sobrevivente dos bombardeios de Dresden, pude notar que a diversidade de narrativas vai de acordo com a segunda alternativa.
A terra e o mundo ao nosso redor tremiam, coisas voavam, o pó nos tirou o ar; a escuridão e o barulho infernal nos envolveram. Ninguém gritou, não conseguimos nem falar. Silêncio mortal. Quando o soar das explosões de bombas se afastou e finalmente parou, uma voz chamou um nome. A criança saiu dos meus braços. Deve ter achado a mãe. Quando subitamente deu mais um estouro, uma parte do alicerce se abriu. Havíamos aprendido nas lições da Defesa Civil que “onde entra luz, entra ar, e talvez haja uma saída”, por isso algumas mãos abriram mais ainda aquele buraco, dando-nos a chance de sair. (Alda Niemeyer, 2020.)
A cidade de Dresden, localizada na Saxônia, tem os seus dilemas particulares. Arrasada pelas bombas dos Aliados em 1945, ela hoje é o maior centro de peregrinação neonazista da Europa. As “marchas do luto” dizem falar pelas vítimas esquecidas da Alemanha, milhares de mortos enterrados sob escombros de uma cidade supostamente cultural. De Joseph Goebbels ao partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), o discurso sustenta-se na exploração sentimental das vítimas, sem recorrer a qualquer tipo de análise crítica ou políticas de memória. As vítimas existiram, assim como suas memórias transmitidas no seio familiar, mas o silêncio do Estado e a instrumentalização da extrema-direita fecharam as portas para o debate público.
Quase oitenta anos depois dos bombardeios, Dresden vive os enfrentamentos entre os defensores do “mito da vítima” e os antifascistas adeptos da “Alemanha sem vítimas”, noção em que um Estado carrasco não pode falar em perdas, apenas na sua responsabilidade. Ao longo dessas disputas, discussões sobre a História e as memórias são deixadas em segundo plano.
Memorial negociado
Inaugurado em 2021, o memorial Flucht, Vertreibung, Versöhnung (em português, Fuga, Expulsão, Reconciliação) vinha sendo elaborado desde 2005 – ano que marcou o início da histórica coalizão CDU-SPD (Partido Democrata Cristão e Partido Social-Democrata) que alçou Angela Merkel ao poder – e era parte de um compromisso com organizações históricas e extremamente influentes na Alemanha: os deslocados.
Os Vertriebenen (em português, “deslocados”) correspondem aos alemães étnicos expulsos de territórios do Leste Europeu ao longo do avanço soviético, indivíduos que se entendiam como germânicos, mas não habitavam a Alemanha no momento da guerra. Pessoas de diferentes origens e níveis foram tiradas de suas propriedades em um processo que envolveu o revanchismo soviético e a ocupação de terras. Marchando em direção à Alemanha, carregavam consigo a visão animalesca dos russos, perspectiva reforçada com a entrada do exército vermelho em Berlim.
Segundo o memorial, entre 12 e 14 milhões de alemães foram “deslocados” durante a guerra, tornando-se verdadeiros refugiados em sua terra natal. Nos bombardeios de Dresden, por exemplo, as estações ferroviárias estavam abarrotadas de sem-teto que rumavam para o oeste e necessariamente tinham que passar por Dresden, um entroncamento ferroviário da Alemanha. Estavam entre os mortos dos dias 13 e 14 de fevereiro em 1945.
Criada em 1957, a Bund der Vertriebenen (Federação dos Expulsos) tornou-se a principal representação dos expulsos alemães. Vale ressaltar que, no pós-guerra, foi criado até mesmo o Ministério Federal para Deslocados, Refugiados e Vítimas da Guerra para lidar com o assunto, dada a sua importância para a sociedade alemã. A influência da Federação somou-se às suspeitas de sua aproximação com a extrema-direita, cada vez mais adepta da pauta dos Vertriebenen. Para os nacionalistas, o heroísmo e as vítimas deveriam ser lembrados com mais orgulho pelos alemães, em mais um exemplo de instrumentalização.
Alexander Gauland, um dos principais nomes da AfD, polemizou ao declarar que tinha “orgulho dos soldados da Alemanha nazista”. Ele foi categórico ao dizer que os alemães, assim como os franceses e os ingleses, têm o direito de lembrar dos soldados que se sacrificaram em nome do seu país durante o conflito mundial. “Sim, nós nos ocupamos dos crimes de 12 anos do regime nazista. E, caros amigos, quando olho para a Europa, vejo que nenhum outro povo reconheceu tão claramente os erros de seu passado como a Alemanha”, disse Gauland em reunião no estado alemão da Turíngia, em 2 de setembro de 2017.
Além da perigosa aproximação da extrema-direita com os movimentos de expulsos, países como a República Tcheca e a Polônia mostraram-se contrários aos acenos à categoria de “vítimas alemãs”. Um memorial voltado aos Vertriebenen seria o reconhecimento de ações diretas destes países contra cidadãos de origem alemã, fato que poderia recair em mais um argumento negacionista. Ainda assim, era necessário encontrar caminhos para agregar as narrativas das vítimas das expulsões, caso assim fossem entendidas.
Duas saídas foram encontradas: criar uma instituição própria do Estado alemão ligada à Fundação do Museu Histórico Alemão (DHM) e abordar o refúgio de forma ampla no século XX. Elas convergiram para o que o historiador tcheco Matej Spurny classifica como “museu negociado”. Para ele, o memorial inaugurado em 2021 é um grande acúmulo de narrativas que não demonstram seu principal objetivo. No fim, o memorial, que também é um centro de documentação, é um diálogo acordado entre a responsabilidade e a vitimização. Na exposição, estão presentes os judeus expulsos de suas terras, ainda que de forma tímida, e os alemães expulsos do leste. A Alemanha perpassando a culpa e envergonhadamente citando suas vítimas.
Referências:
BARTOV, Omer. Germany as victim. New German Critique, n. 80, Special Issue on the Holocaust (Spring – Summer, 2000), p. 29-40.
GARRAIO, Julia. Horda de violadores: a instrumentalização da violência sexual em discursos anticomunistas alemães da Guerra Fria. Coimbra: Revista crítica de ciências sociais, 2012.
GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
IRVING, David. Apocalypse 1945: The destruction of Dresden. Londres: Parforce, 2005.
JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo: Todavia, 2018.
LIPSTADT, D. History on Trial: my day in Court with a holocaust denier. Ecco; Reprint Edit (2006)
McDONOUGH, Frederick. Gestapo: mito e realidade na polícia secreta nazista. São Paulo: Leya, 2015.
ROLLEMBERG, Denise. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016.
SHAFIR, Michael. Between Denial and “Comparative Trivialization”: Holocaust Negationism in Post-Communist East Central Europe. Jerusalém: Vidal Sassoon International Center for the Study of Antisemitism, 2002.
TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça-feira, 13 de fevereiro de 1945. Rio de Janeiro: Record, 2011.
Como citar este artigo:
BAUER, Carlos. Memórias negociadas, vítimas contestadas: o memorial do deslocamento alemão. História da Ditadura, 16 out. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/memorias-negociadas-v%C3%ADtimas-contestadas-o-memorial-do-deslocamento-alemao. Acesso em: [inserir data].
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