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Foto do escritorAugusta da Silveira de Oliveira

“Meu nome é Gal”: uma cinebiografia definida pela História

Talvez seja justamente pela personalidade tímida e retraída de Gal Costa (1945-2022) que sua cinebiografia, intitulada Meu nome é Gal, recorra tanto ao recurso da contextualização histórica como pano de fundo de uma trajetória tão rica quanto a da artista. Lançado em 12 de outubro, o filme foi dirigido por Dandara Ferreira, diretora da série documental O nome dela é Gal, lançada em 2017; e Lô Politi, que também assina o roteiro com Maíra Bühler e Mirna Nogueira. Gal é interpretada com maestria pela atriz Sophie Charlotte, com o aval da própria cantora, que acompanhou o início do projeto antes de sua morte inesperada, em novembro do ano passado.


Cartaz do filme "Meu nome é Gal"
Cartaz do filme "Meu nome é Gal". Imagem: Reprodução.

Também não é por acaso que os cinco anos retratados no longa metragem, que vai de 1966 a 1971, correspondam ao período de institucionalização e recrudescimento da ditadura militar (1964-1985). O regime parece inclusive ser uma das forças motrizes do enredo. Sua presença é aludida num dos primeiros sons que ouvimos no início do filme: uma sirene policial, que marca tanto a saída de Gal de Salvador quanto sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1966, quando a cantora vai para o Solar da Fossa, em Botafogo. O solar é uma pensão conhecida por ter abrigado inquilinos e visitantes ilustres da cena cultural brasileira (VAZ, 2011). Nesse momento, a amiga de infância e futura esposa de Caetano Veloso, Dedé Gadelha (Camila Márdila), precisa confirmar para a dona do estabelecimento que Maria da Graça ou Gracinha, como era conhecida, obviamente não se hospedaria com nome falso, pois não era subversiva.


Tão importantes quanto a protagonista são as personagens que a rodeiam. O filme retrata Gal em seu vivaz círculo de amigos e parceiros musicais, contribuindo para o andamento das cenas. A primeira parte da película, que cobre de 1966 a 1968, dá conta da ambientação de Gal nesse círculo expandido. O panorama político soturno e tensionado, narrado nas cartas escritas por sua mãe, dona Mariah (Chica Carelli), contrasta com a revolução nos costumes com a qual a artista se depara ao se reencontrar com os amigos baianos Caetano Veloso, na elogiada performance de Rodrigo Lellis, e Gilberto Gil, interpretado por Dan Ferreira. Gal se surpreende, por exemplo, ao ver que todos tinham passado a se cumprimentar com beijos na boca.



A Gal cantora, no entanto, parece já ter vindo pronta, carecendo apenas de encontros certeiros, como o que se dá com o produtor Guilherme Araújo (Luis Lobianco), que sugere o nome Gal Costa e ajuda a criar sua persona artística. São bonitas as cenas em que Sophie canta, não destoando de outras cenas em que a atriz dubla gravações da própria Gal em estúdio. O filme também retrata o reencontro com Maria Bethânia –numa interpretação envolvente da diretora Dandara Ferreira –, já estabelecida no Rio de Janeiro após o sucesso do show Opinião. Suas aparições efêmeras são explicadas pela própria personagem, pois Bethânia sempre esteve à margem dos movimentos com os quais Gal se associou, a exemplo da Tropicália.


No longa, a contracultura é a força que age em oposição à ditadura e suas referências, como em cenas e vídeos do acervo do Arquivo Nacional, que mostram a repressão a protestos políticos. O núcleo da Tropicália, ilustrado pela preponderante presença de Caetano Veloso, obriga Gal a rever suas predileções musicais e incorporar novos gostos, que vão da guitarra elétrica, passando pelo programa do Chacrinha e chegam à Coca-Cola, marcando um ponto de inflexão em sua trajetória (DUNN, 2001).


A liberdade sexual aparece nesse período de descobertas da personagem, quando Gal vai se despindo da personalidade mais retraída em resposta a vários estímulos externos. A cantora, que com o passar dos anos passou a ser associada à sensualidade, teve suas relações amorosas – tanto com homens quanto com mulheres – retratadas com naturalidade. As cenas com Lélia, uma personagem ficcional, são especialmente instigantes, pois não se eximem de tratar da vida pessoal de Gal, sem apenas sugerir ou aludir a possíveis relacionamentos com outras mulheres. Embora a artista tenha preferido não politizar sua sexualidade em vida, a escolha narrativa das diretoras e roteiristas complexifica e enriquece a cinebiografia de Gal, cuja máxima “meu negócio é a música”, presente no filme, mostrou-se como a saída retórica para muitas cobranças por posicionamentos ao longo de sua trajetória.



A segunda parte do filme é mais marcada pelo contexto político do momento, retratando o período que vai de meados de 1968 até 1971. Junto com o endurecimento da ditadura militar, a chegada da mãe de Gal, vinda direto de Salvador, tensionam o ambiente de liberação vivido pela cantora. No plano de fundo, nas rádios e nos jornais, a nova Lei de Segurança Nacional e o AI-5 reafirmam os inimigos do regime. Dona Mariah relembra que só faltam os artistas entrarem na longa lista dos considerados subversivos, aludindo ao perigo que corriam os que eram associados à contracultura.


Outra escolha narrativa que aprofunda o papel da ditadura militar como força propulsora do filme é indicar que parte das decisões artísticas de Gal tinha fundo político. Gal, de início, reluta em cantar “Divino Maravilhoso”, cujo refrão “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” a fazia temer a censura e repressão. Isso ocorre especialmente após Caetano ser vaiado e quase agredido pelo público ao cantar “É Proibido Proibir”, em setembro de 1968. O filme também faz referências à censura e às agressões sofridas pela equipe e pelo elenco do espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, no mesmo ano. É somente após ver seus amigos abrigando um homem após ser torturado pelo regime que Gal aceita defender a música no IV Festival Internacional da Canção.


Depois da performance, Gal fica incapaz de reagir. Ela passa vários dias na cama com a mesma roupa do festival, em verdadeiro estado de sofrimento que parece encapsular a importância política do feito com o fechamento do cerco da repressão. Grande parte da elaboração a respeito desse episódio é feita por outros personagens, a exemplo da cena que se segue à apresentação da cantora no festival. Gal apenas demonstra esse conflito ao aparecer chorando no quarto, embora mantenha-se introvertida, mas Dedé fala “é muita coisa represada”, ao ver a amiga psicologicamente exaurida. Do mesmo modo, a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil mudam o tom do filme e Gal, antes silenciosa e introspectiva, passa a se mostrar apática e deprimida.


Capa do álbum do show Fa-Tal, gravado ao vivo.
Capa do álbum do show Fa-Tal, gravado ao vivo. Imagem: Reprodução.

Após o período em São Paulo, o retorno ao Rio de Janeiro representa um novo período de libertação, embora não longe do olhar cauteloso dos órgãos repressivos. Gal se cerca de um novo grupo, especialmente na ausência de Caetano e Gil, já no exílio em Londres. O filme não retrata as várias visitas que Gal fez a eles, mas mostra que ela manteve estreita relação com os dois, tornando-se a “voz da Tropicália” durante sua ausência. Waly Salomão (George Sauma) e Jards Macalé (Barroso Eus) ganham mais espaço nessa parte, embora tenham papel diminuído em relação a sua real participação na trajetória de Gal nesse período, especialmente na concepção do show FA-TAL – Gal a Todo Vapor. A artista aparece como expoente maior da geração do desbunde na praia de Ipanema, nas “Dunas do Barato”, que posteriormente viriam a ser conhecidas como “Dunas da Gal”. O local se tornou famoso por reunir intelectuais, artistas e outras personalidades da contracultura, definido como “território liberado” por Waly Salomão (DUNN, 2016).


O filme culmina com a estreia do show FA-TAL que, embora estivesse sob ameaça de censura, é encarado por uma Gal convicta em seu propósito de cantar. A política nunca está em segundo plano. O papel central que a ditadura, a repressão e a censura têm ao longo do filme explica as decisões e a postura combativa que Gal progressivamente adota, e completa o arco narrativo que vai da Gracinha até a Gal Costa ícone da geração da contracultura (CONTENTE, 2021).


Muitas referências só são legíveis para os fãs da cantora e conhecedores da cena cultural em que ela circulava, como a fala reproduzida de Tom Zé: “Gal Costa é muito maravilhosa”, a cena de Waly Salomão repetindo “a vida é sonho” durante uma viagem de carro ou a presença de Maria Bethânia na plateia do show FA-TAL – Gal a Todo Vapor, no período em que Gal também era vista na plateia do show Rosa dos Ventos. Para os que não conhecem esses pormenores e vão ao cinema por gostarem de sua música, a vida e a carreira de Gal são retratadas de forma acessível, inserindo-a num contexto histórico e político mais amplo.


Cena do show "A Pele do Futuro" (2019).
Cena do show "A Pele do Futuro" (2019). Divulgação.

O final, com clipes de vídeo e áudio da carreira da cantora e de seu último show gravado, A Pele do Futuro, parece querer suprir a ausência das décadas subsequentes, não retratadas pelo longa, e demonstrar brevemente a grandeza de sua carreira. O tom de homenagem do filme não desabona seu intento de retratar o período formativo da vida de Gal, confirmando a complexidade de sua trajetória, marcada não só pela música, mas também pelas mudanças políticas que caracterizaram a história do Brasil contemporâneo.


 

Referências:

DUNN, Christopher. Brutality garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2001.

______. Contracultura: alternative arts and social transformation in authoritarian Brazil. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2016.

VAZ, Toninho. Solar da Fossa: um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.


Como citar este artigo: OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. “Meu nome é Gal”: uma cinebiografia definida pela História. História da Ditadura, 15 out. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/meu-nome-%C3%A9-gal-uma-cinebiografia-definida-pela-historia. Acesso em: [inserir data].

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