Milagre à brasileira.
“Ninguém segura este país”! Esse era o lema popular que sintetizava os desejos e aspirações de muitos brasileiros no período conhecido como milagre econômico, entre os últimos anos da década de 1960 e o ano de 1973. O panorama que se descortinava era radiante e otimista: crescimento econômico alto e constante – a média para o período foi de 10%, tendo o pico em 14% em 1973 de crescimento do PIB – com inflação estável e baixa para patamares brasileiros da época, abaixo dos 20% ao ano. O avanço econômico prometia a solução dos problemas sociais brasileiros, cedo ou tarde: o ministro da fazenda no período, Delfim Netto, prometia dividir o bolo da riqueza nacional – logo depois que esse crescesse, evidentemente. Somando-se a isso, a seleção brasileira garantia o tricampeonato mundial de futebol e o país adquiria reconhecimento internacional, demonstrações de sucesso capitalizadas pelo governo como provas objetivas do correto direcionamento do regime militar. Algumas poucas nuvens, num céu predominantemente limpo e azul, pareciam tão sem importância que não traziam grande preocupação aos tecnocratas responsáveis pelo planejamento estratégico da economia.
Ex-ministro Delfim Netto (Imagem: Reprodução)
Tudo isso era ainda mais extraordinário se contraposto ao cenário econômico da década de 1960, desanimador para dizer o mínimo: baixo índice de crescimento e inflação elevada, chegando à casa dos 80% ao ano, agravados pela conturbação da renúncia de Jânio Quadros (1961) após um governo curto e turbulento. Em rápida sucessão de eventos, tentou-se impedir a posse do vice João Goulart, manobra contornada por uma solução de conciliação, implantar um regime parlamentarista. De curta duração, o regime parlamentar foi substituído pelo presidencialismo após consulta popular (1963), que devolveu a Jango suas funções institucionais, mas não afastou a ameaça permanente de um golpe. O panorama político assustava os investidores, alguns dos quais viam as propostas reformistas do herdeiro de Vargas como uma ameaça vermelha dentro da lógica bipolar da Guerra Fria.
O golpe de 1964 colocou o marechal Humberto Castelo Branco na cadeira presidencial com um duro desafio a enfrentar, estancar a sangria econômica. Castelo foi sucedido pelo general Arthur da Costa e Silva, que radicalizou o autoritarismo do regime por meio do AI-5, pouco antes de sofrer o derrame que o tirou da presidência, sendo brevemente substituído por uma Junta Governativa. A sucessão seria feita pelo general Emílio Garrastazu Médici, em cujo governo ocorreu o milagre brasileiro, momento de maior crescimento econômico que coincidiu justamente com o período de maior repressão e autoritarismo dentro da ditadura militar.
Na verdade, o milagre não tinha nada de miraculoso. A soma de um rol de fatores conjunturais favoráveis foi aproveitada pela equipe econômica, como a disponibilidade de capitais provenientes dos países desenvolvidos e a ampliação do comércio internacional. Marcado por forte intervencionismo estatal, o plano era atrair investimentos estrangeiros (com destaque para o setor automobilístico), diversificar a pauta de exportações (a importância relativa do café, que representava 57% da pauta de exportações entre 1947 e 1964, caiu para apenas 15% entre 1972 e 1975) e estimular a modernização das estruturas produtivas brasileiras (por meio de incentivos fiscais e políticas de crédito). A racionalização da máquina burocrática, controlando o déficit público com apoio de uma política fiscal mais eficiente, dava ao país um grau de confiabilidade que atraía os investidores estrangeiros.
O Estado passou a agir estimulando a formação de poupança interna (voluntária e compulsoriamente, no caso do FGTS) que era usada para o financiamento de grandes obras (datam do período a construção da rodovia Transamazônica, inaugurada em 1972, da ponte Rio-Niterói, aberta em 1974, a usina nuclear Angra 1, iniciada em 1972 e o começo das negociações com o Paraguai para a construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que se iniciou em 1975), visando a modernização da infraestrutura e incorporando novos trabalhadores ao mercado de trabalho, além do minucioso controle de preços e política de salários por meio de indexações. Não devemos esquecer as empresas públicas: era também o Estado que atuava como o maior produtor de eletricidade, aço, minerais, combustíveis e produtos químicos, exercendo controle sobre sistema portuário, telecomunicações e sistema financeiro. Essa política intervencionista do Estado brasileiro tornou-se alvo de crítica do FMI, o que dificultava a obtenção de crédito por meio de fontes oficiais, levando o país a buscar financiamento junto a bancos privados estrangeiros, com juros flutuantes e condições menos favoráveis.
Charge de Ziraldo
Na área social, o milagre por um lado fortaleceu a classe média, que conheceu notável valorização – profissões relacionadas a publicidade e administração de empresas ganharam cada vez mais destaque – e se tornou a consumidora preferencial dos bens de consumo duráveis que começaram a ser produzidos internamente. Por outro, as indexações prévias do salário mínimo subestimando a inflação futura causaram arrocho salarial das classes trabalhadoras, forçando a entrada de novos membros das famílias urbanas no mercado de trabalho para compensar as perdas individuais. Enquanto os economistas da equipe do governo viam esse crescimento da desigualdade social como um efeito colateral transitório do acelerado crescimento econômico, tendente a se normalizar no futuro, correntes críticas da economia viam a situação como resultado de contradições estruturais do sistema produtivo. A existência de um governo autoritário, por meio de censura e rígido controle sindical, foi um dos requisitos para abafar as vozes dissonantes e as críticas ao aumento da desigualdade.
Mas os ventos começaram a mudar em 1973: como retaliação ao apoio norte-americano a Israel na Guerra do Yom Kippur, os países árabes, através da OPEP, quadruplicaram o preço do petróleo para, à época, incríveis 12 dólares. O petróleo representava uma importante fonte de energia para os Estados Unidos, que consumiam quase um terço da produção mundial, o que contribuiu para frear a economia norte-americana e gerar um cenário de risco e insegurança que deixou em alerta as instituições financeiras internacionais. Ato contínuo, as taxas de juros também subiram, fato que impactou diretamente o Brasil, cujos empréstimos estavam atrelados a taxas de juros flutuantes, levando a uma explosão da dívida pública brasileira. Agravando ainda mais a situação, o país importava mais de 80% do petróleo que consumia, fato que vai motivar na década de 1970 a busca por fontes alternativas de energia com a adoção do álcool combustível por meio do projeto Pró-Álcool. Os créditos internacionais desapareceram, a economia brasileira movida predominantemente a petróleo começa a sofrer a pane seca e o milagre passa a dar sinais de esgotamento.
Coincidindo com o fim da era de prosperidade, começa também o abrandamento do regime a partir de 1974, com o governo Geisel, que prometia uma abertura política, ainda que “lenta, gradual e segura”. A degradação da economia vem acompanhada do acirramento das tensões inerentes a uma sociedade extremamente desigual, culminando nas grandes greves dos metalúrgicos do ABC paulista, na lei de anistia e na reforma partidária de 1979, demandas de uma sociedade que foi capaz de conviver com o autoritarismo mais brutal enquanto a vida material mostrou perspectivas de melhora.
A década seguinte traria inúmeros desafios para superar essa herança maldita do regime militar. Uma economia que patinava sem sair do lugar, a transição do poder das mãos militares para civis sem eleições diretas e o aumento da violência nas grandes cidades, dentre outros, que levariam os anos 1980 a serem rotulados como uma década perdida.
Caio Felix é professor de História.
Para saber mais:
Élio Gaspari. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Francisco Vidal Luna; Herbert S. Klein. Transformações econômicas no período militar (1694-1985). In: Daniel Aarão Reis e outros (Org). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
Luiz Carlos Delorme Prado; Fábio Sá Earp. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: Jorge Ferreira; Lucilia de A. N. Delgado (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Thomas Skidmore. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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