Mitos da ditadura: eleições e democracia (Parte 1)
Atualizado: 15 de out. de 2020
E se alguém lhe perguntasse: como se define um regime democrático? Provavelmente, dentre os argumentos que você utilizaria, estariam a existência de partidos políticos e a realização de eleições regulares. Isso ocorre porque essas duas características são comumente identificadas como parâmetros para que se possa separar o joio do trigo; em outras palavras: para que se possa dizer o que é uma democracia e o que não é.
Se você, digamos, for ao Google e digitar a palavra “democracia”, é muito provável que, em 9 das 10 primeiras páginas, você irá ler que a democracia é uma forma de governo, na qual o poder é exercido diretamente pelo povo ou por seus representantes, por meio de mecanismos legítimos de participação popular nas decisões políticas. O direito de organização político-partidária e a realização de eleições regulares seriam, portanto, características fundamentais em um regime democrático.
Você poderia me perguntar então: isso significa dizer que quando há partidos políticos e eleições regulares o regime é democrático? Mesmo que possa parecer contraditória, a resposta é bastante simples: não. Ainda que estejamos acostumados a pensar que a existência de partidos ou a mera realização de eleições fossem capazes de definir um regime como democrático, há uma infinidade de exemplos que nos mostram que a grande maioria dos governos autoritários e ditatoriais se organizou em torno de partidos políticos e realizou eleições regulares.
Por que regimes ditatoriais criam partidos políticos? Por que ditaduras realizam eleições regulares? Como entender o papel das consultas à população em regimes autoritários? Como vemos, são inúmeras as questões que podem surgir quando tentamos entender esse tema. Neste breve texto, não iremos adentrar uma série de questões teóricas, sobre as quais inúmeros estudiosos têm se debruçado. Hoje, gostaríamos de apresentar uma reflexão, por meio de análise histórica, de um dos muitos mitos que existem em torno da ditadura militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Nesta primeira parte do texto, vamos falar sobre o período entre 1964 e 1968.
Não é raro você encontrar pessoas que argumentem que não se pode falar em ditadura no Brasil, pelo simples fato de que houve eleições regulares em todo o período. Além disso, de acordo com essas pessoas, os próprios generais eram eleitos pelo Congresso Nacional. Outro argumento apresentado é a existência de partidos políticos. Entre 1964 e 1985, os brasileiros e as brasileiras seriam livres para participar de partidos políticos. Em resumo, as pessoas que pensam dessa forma, costumam concluir afirmando que: “no Brasil, não houve ditadura”.
É razoável dizer que essa afirmação está correta? E como a História pode nos ajudar a pensar sobre essas questões?
É exatamente isso, que estamos propondo neste texto.
Em primeiro lugar, já vimos que a premissa (a base) desses argumentos está equivocada: a grande maioria dos governos autoritários e ditatoriais se organizou em torno de partidos políticos e realizou eleições regulares. Mesmo que a gente não precise se aprofundar em muitos desses exemplos históricos, podemos citar alguns casos, em que havia partidos políticos ou houve a realização de eleições.
Na Europa, por exemplo, a Espanha, que viveu sob a ditadura de Franco entre 1939 e 1975, apresentou algumas dessas características. Em todo esse período, foram realizadas diversas consultas públicas como referendos, eleições municipais, eleições legislativas e outros processos de escolha eleitoral. Na Alemanha, durante o regime nazista de Adolf Hitler (1933-1945), houve eleições parlamentares no início de 1936. Essa consulta popular incluiu ainda a aprovação de um referendo, perguntando ao povo se concordava com algumas medidas que o governo havia adotado.
Viajando em direção à América do Sul, podemos citar que a ditadura Uruguaia realizou consultas populares como, por exemplo, o Plebiscito Constitucional de 1980. Em 30 de novembro daquele ano, a população foi chamada a se manifestar sobre a aprovação de uma nova carta constitucional, que substituiria a Constituição de 1967.
Em resumo, há inúmeros exemplos de regimes ditatoriais, que organizaram eleições, consultas populares as mais variadas e mesmo realizaram referendos para a aprovação popular de decisões governamentais anteriores. Portanto, é historicamente correto afirmar que houve consultas populares, eleições ou, mesmo, a criação e existência de partidos políticos tanto em regimes democráticos, como em regimes ditatoriais.
Alguém poderia dizer: “sim, mas você se esqueceu de dizer que no caso da Alemanha, a eleição mencionada admitia um partido apenas, não havia mais de um partido”; ou, “eu li que no caso da ‘reforma constitucional’ no Uruguai, o projeto já estava previsto desde o início da década de 1970”. Portanto, é necessário compreender de que forma ocorreram as eleições, por exemplo. Mencionar um “fato” sem explicá-lo é muito pouco e pode gerar um entendimento equivocado.
Todos esses apontamentos são válidos. Eles nos ajudam a refletir e parecem confirmar algo que temos debatido aqui no site História da Ditadura: entender um fenômeno histórico é muito mais difícil do que se pode imaginar. Não basta apenas recolher um punhado de dados. É preciso entender como todas esses fatos “funcionam juntos”; como dizia um famoso historiador, “como que as peças do quebra-cabeças se encaixam; como entender o significado da imagem que elas formam”
Vamos voltar ao caso da ditadura brasileira?
Como dissemos acima, nesta primeira parte do texto, vamos debater o período entre 1964 e 1968. E na breve explicação que iremos oferecer, vamos responder às seguintes questões iniciais:
Houve eleições no Brasil durante esse período? Os generais que ocuparam a presidência da República foram eleitos?
Sim.
Havia liberdade de organização em partidos políticos?
Sim.
Alguém poderia dizer: “mas essas respostas não dizem quase nada sobre esses “fatos”. Vocês poderiam explicar como isso acontecia?”
Portanto, vamos tentar explicar essas questões por meio da análise histórica.
Houve eleições no Brasil durante esse período?
Sim. Quando o golpe foi dado, o presidente João Goulart foi afastado e, em seu lugar, tomou posse o presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli. De acordo com a Constituição da época, Mazzilli ocuparia a presidência por um prazo máximo de 30 dias. Nesse período, o congresso elegeria indiretamente um novo presidente para concluir o mandato do presidente Goulart, que terminaria em 1966. Nesse intervalo de tempo, o general Costa e Silva se auto intitulou Ministro da Guerra e organizou um comando militar, que detinha o poder decisório de fato: “O Comando Supremo da Revolução”. Esse grupo resolveu decretar o primeiro Ato Institucional no dia 9 de abril de 1964. Os três militares que compunham o Comando decretaram uma série de medidas. Dentre elas: até a posse do próximo presidente, eles teriam o poder de suspender direitos políticos de qualquer pessoa pelo prazo de 10 anos e poderiam cassar mandatos legislativos em qualquer nível da Federação.
No mesmo dia, o Comando resolveu suspender os direitos políticos de uma centena de cidadãos e cassar os mandatos de 40 membros do Congresso. Até a eleição indireta de Castelo Branco, o Comando Supremo da Revolução transferiu para a reserva 122 oficiais das Forças Armadas. Além disso, suspendeu, dois dias depois, os direitos políticos de outros 67 cidadãos, entre civis e militares. No dia 14 de abril, outros 24 oficiais do Exército e da Aeronáutica seriam transferidos para a reserva. De acordo com levantamentos feitos por pesquisadores, nos primeiros meses 50.000 pessoas foram presas em todo o país; apenas na primeira semana após o golpe, 10.000 pessoas seriam detidas, 4.000 delas apenas no Rio de Janeiro.
No dia 11 de abril, por decisão do Comando Supremo, as eleições indiretas para presidente da República haviam sido marcadas. Por 361 votos a favor, 72 abstenções e 5 votos para outros militares que foram candidatos, o Congresso, que havia sido mutilado, aprovou a escolha do nome do general Castelo Branco, que havia sido imposto pelo Comando Supremo. O mandato de Castelo deveria ser encerrado em 1966. Entretanto, as eleições para presidente da República que deveriam acontecer em 1965 foram canceladas. O mandato de Castelo Branco seria prorrogado até 1967. Com a aproximação das novas eleições indiretas, os militares imporiam o nome do general Costa e Silva: aquele mesmo que havia se auto intitulado Ministro da Guerra. Ele seria eleito por um Congresso com cada vez menos poderes.
Houve eleições indiretas para presidente da República, de fato. Mas, como em outros regimes ditatoriais, elas eram meramente formais e serviam para dar um “verniz de legalidade” em um processo arbitrário e farsesco. Até 1989, os brasileiros não mais teriam o direito de eleger o presidente da República.
Havia liberdade de organização em partidos políticos?
Sim; mas, novamente, é preciso explicar o que estamos chamando de liberdade de organização em partidos políticos. Quando o golpe de 1964 foi dado, havia um sistema de multipartidarismo no Brasil. Isso significa dizer que a legislação eleitoral previa a possibilidade de, atendidas algumas regras, a criação de partidos políticos. Após o golpe de 1964, contrariando a pressão de muitos militares exaltados, Castelo Branco, o primeiro general a ocupar a Presidência, decidiu manter o calendário das eleições, que ocorreriam em 1965.
Quando o resultado das eleições foi divulgado, os agrupamentos militares que defendiam a radicalização do regime ficaram revoltados: os candidatos da ditadura haviam sido derrotados. A primeira derrota havia acontecido na eleição para prefeito de São Paulo em março de 1965. Ainda que o candidato vitorioso tenha sido um militar, o brigadeiro Faria Lima, sua vitória estava relacionada ao apoio que o ex-presidente Jânio Quadros havia prestado a esse candidato.
Essa primeira grande derrota acirrou os ânimos entre os militares mais radicais. Houve muita pressão para que o governo suspendesse as eleições para governadores, que estavam previstas para outubro do mesmo ano. Entretanto, as eleições ocorreram. Nova derrota para a ditadura: em dois dos principais colégios eleitorais, Minas Gerais e, o então estado da Guanabara, os candidatos da ditadura foram derrotados. Aos poucos, Castelo Branco começou a adotar medidas para restringir as possibilidades de novas derrotas eleitorais. Duas semanas após a divulgação dos resultados, no dia 27 de outubro de 1965, a ditadura adotaria o ato institucional n. 2.
O ato aprofundou os mecanismos autoritários ao concentrar poderes nas mãos do presidente da República. De acordo com alguns analistas, seu principal objetivo era impedir novas derrotas eleitorais do governo e, ao mesmo tempo, manter a realização de eleições. Assegurava-se, dessa forma, um “verniz democrático”. Dentre as inúmeras medidas adotadas pelo ato estava a reformulação do sistema partidário brasileiro.
Com o argumento de que a raiz da crise política era a existência de muitos partidos, o governo determinou, com o ato institucional a extinção de todos os partidos políticos existentes. Alguns dias depois, com a adoção do ato suplementar n. 4, de novembro de 1965, publicavam-se as novas regras para a criação dos novos partidos políticos.
De acordo com as novas regras, para que um partido político fosse criado era necessário que a agremiação contasse com 120 deputados e 20 senadores. Naquele momento, o Congresso Nacional era formado por 409 deputados e por 66 senadores. Dessa forma, embora o número de cadeiras no Congresso permitisse o surgimento de até 3 partidos políticos, a ditadura foi capaz de conquistar a filiação de 250 deputados e de 40 senadores, que haviam sido eleitos por outras legendas.
Com isso, surgia a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o partido de apoio dos governos ditatoriais no Congresso. Os demais deputados e senadores formaram um bloco único, que passou a organizar a “oposição consentida” à ditadura, em uma agremiação que receberia o nome de Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Ainda que essa medida garantisse ao governo uma sólida maioria no Congresso, outras medidas seriam adotadas a partir de 1966, para impedir que o processo eleitoral trouxesse surpresas indesejáveis. Para citar um exemplo, em fevereiro de 1966, a ditadura adotaria o ato institucional n. 3. Por meio dessa medida, os prefeitos de capitais dos estados e de outras cidades, que fossem consideradas de “segurança nacional”, não mais seriam eleitos pela população: passariam ser nomeados pelos governadores que, a essa altura, não mais eram escolhidos pelo voto popular.
De fato, entre 1964 e 1968 houve eleições no Brasil. No entanto, essa afirmação por si só, não esclarece nada do processo histórico. Essas eleições foram em grande medida mera formalidade para atribuir uma aparência democrática a um regime autoritário.
E como foram escolhidos os outros generais que ocuparam a presidência da República? Houve eleições para outros cargos? Como governadores de Estado, prefeitos, Senadores e Deputados?
Nas próximas semanas, vamos falar sobre esses temas. Até breve.
Pedro Teixeirense é historiador e editor do site História da Ditadura.
Para saber mais:
BRASIL. Ato Institucional n° 1, de 09 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. Disponível em: Palácio do Planalto.
BRASIL. Ato complementar n° 4, de 20 de novembro de 1965. Dispõe sobre a organização de partidos políticos. Disponível em: Palácio do Planalto.
Maria Helena Moreira Alves. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Editora Vozes, 1989.
Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Thomas Skidmore. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Luís Viana Filho. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
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