Mitos da Ditadura: eleições e democracia (Parte 2) – Os três patetas e os últimos generais
Atualizado: 15 de out. de 2020
Na semana passada, na primeira coluna desta seção, a gente discutiu alguns aspectos sobre um dos mitos mais comuns acerca de regimes ditatoriais ou autoritários. Nossa argumentação procurou demonstrar que a mera realização de eleições regulares e a existência de partidos políticos não são elementos capazes de definir como democrático dado regime político. De fato, nosso enfoque recaiu, especificamente, sobre o mais recente ciclo ditatorial brasileiro entre 1964 e 1985.
Nós tentamos desmontar o mito de que não se pode falar em ditadura no Brasil pelo simples fato de que houve eleições regulares em todo o período. Para isso, nós falamos um pouco sobre as eleições indiretas para o cargo de presidente da República entre 1964 e 1968. Ao mesmo tempo, explicamos como se organizavam os partidos políticos no Brasil, a partir da adoção do Ato Institucional n. 2, no dia 27 de outubro de 1965.
Hoje, nós vamos discutir a seguinte questão:
E como foram eleitos os outros generais que ocuparam a Presidência da República?
Vamos primeiro falar dos outros três generais, que entre 1969 e 1985 comandaram a ditadura militar brasileira. Você, certamente, já ouviu falar nos generais Emilío Garrastazu Médici (1905-1985), Ernesto Geisel (1907-1996) e João Baptista Figueiredo (1918-1999).
Como eles foram eleitos para o cargo de presidente da República?
Quando o general Artur da Costa e Silva foi escolhido para presidir o país entre 1967 e 1971, a ditadura militar encontrava-se em franco processo de radicalização. Conforme vimos, com a adoção do Ato Institucional de n. 2 em 1965, uma série de mudanças foram realizadas com o intuito de modificar o sistema político-eleitoral brasileiro. Dentre as principais medidas que o ato introduzia, podemos incluir a extinção dos partidos políticos até então existentes e a concentração de poderes nas mãos do chefe do Poder Executivo.
Presidente Artur da Costa e Silva (1967-1969).
O Ato Institucional n. 2 também definia que a escolha do presidente e do vice-presidente da República passaria a ser “realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação nominal”. Tornava-se legal um recurso autoritário: até 1989, ano em que seriam realizadas as primeiras eleições diretas para a escolha do presidente, o povo não mais teria o direito de se manifestar.
Portanto, a partir do golpe civil-militar, os generais, que ocuparam a Presidência da República entre 1964 e 1985, não foram eleitos pela vontade popular. Eles foram escolhidos em eleições indiretas que, de fato, eram meras formalidades de confirmação dos nomes impostos pela cúpula militar.
Conforme vimos, no dia 3 de outubro de 1966, data em que completaria 67 anos de idade, o general Costa e Silva foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. A chapa única, que concorrera naquela “eleição”, receberia 294 votos. O MDB não apresentou candidato de oposição e 136 parlamentares, ou seja, 35% do Congresso, sequer compareceram para confirmar a vitória do representante da ditadura. Na mesma chapa, seria eleito, para o cargo de vice-presidente, um político e advogado mineiro: Pedro Aleixo.
Na crise que se instalaria com a doença do general Costa e Silva em 1969, Pedro Aleixo, que constitucionalmente deveria ser empossado no cargo de presidente da República com o afastamento do general Costa e Silva, diria aos membros da Junta Militar que se formava: “Lamento; não pelo que me causará de mal, mas pelo mal que causará ao país”.
Mas, afinal, ao que se referia Pedro Aleixo?
No dia 27 agosto de 1969, o general Artur da Costa e Silva, que ocupava a Presidência da República, teve um primeiro acidente neurológico que, nas horas seguintes, o impediria de continuar no cargo e, em menos de quatro meses, causaria a sua morte. Diante do impedimento do presidente da República, a Constituição de 1967, que havia sido criada após o golpe militar, determinava que o vice-presidente deveria assumir o comando do país. Desrespeitando a Constituição, a cúpula militar reunida em torno do então secretário geral do Conselho de Segurança Nacional, o general Jayme Portella, decidiu impedir a posse do vice-presidente e nomear um “Junta Militar” para governar o país.
No dia 31 de agosto de 1969, a chamada “linha dura” empossaria no comando do regime ditatorial a junta formada pelo general Aurélio de Lira Tavares, pelo almirante Augusto Rademaker Grünewald e pelo brigadeiro Márcio de Sousa e Melo. Em menos de 10 dias, a junta aprovaria uma série de medidas que indicariam a radicalização da ditadura, como, por exemplo, o Ato Institucional n. 13, que previa a pena banimento aos indivíduos que fossem considerados uma ameaça à segurança nacional. Alguns anos depois, o deputado Ulysses Guimarães se referiria ao trio de oficiais como “os três patetas”, em referência ao grupo cômico norte-americano The Three Stooges.
Junta Militar (1969).
E Pedro Aleixo? O vice-presidente, que previra o mal que a medida causaria ao país, teve seu mandato extinto pelo Ato Institucional n. 12, que seria adotado no dia 6 de outubro de 1969. A Junta Militar, entretanto, teria curta duração: no dia 22 de outubro de 1969 o Congresso Nacional seria reaberto para confirmar a escolha do próximo general a ocupar a Presidência da República. Uma semana mais tarde, no dia 30 de outubro de 1969, tomaria posse o novo ocupante do Palácio do Planalto: iniciava-se o governo do general Emílio Garrastazu Médici e do vice-presidente Augusto Rademaker Grünewald.
As eleições indiretas que garantiram a Médici os votos de 293 parlamentares, ocorreram no dia 25 de outubro. Há autores que afirmam que a reabertura do Congresso Nacional, que se encontrava em recesso desde o dia 13 de dezembro de 1968, fora uma exigência do futuro presidente: o general não gostaria de ser associado ao caráter ditatorial do regime de exceção, do qual se tornava chefe. Fazendo uso ostensivo das aparências “democráticas”, que a eleição indireta poderia atribuir ao seu mandato, Médici comandaria o país entre 1969 e 1974, período de maior violência estatal, marcado pelo terrorismo de Estado e por inúmeros casos de crimes contra os direitos humanos.
Se, por um lado, as medidas repressivas e a inegável popularidade do presidente Médici garantiram vitórias eleitorais avassaladoras nas eleições parlamentares de 1970, por outro, foram incapazes de conter os debates políticos acerca de sua sucessão, que começaram a ganhar contornos já em 1972. Em face das naturais elucubrações acerca dos possíveis candidatos ao Planalto, Médici decidiu proibir, a partir de abril de 1972, o debate público sobre o tema. A censura seria encarregada de recolher periódicos; o sistema de repressão e informações de impedir manifestações públicas.
Presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
O fato é que naquele momento, as preocupações do general Médici estavam voltadas para outra disputa eleitoral.
Nós dissemos aqui que em 1965, com o Ato Institucional n. 2, o governo modificou uma série de mecanismos eleitorais e, dentre outras medidas, estabeleceu eleições indiretas para governadores de estado em todo o país. A derrota dos candidatos da ditadura, nas eleições de outubro de 1965, sobretudo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerias, foi decisiva para essa medida. Alguns meses depois, em fevereiro de 1966, com a adoção do Ato Institucional n. 3, seria a vez de os prefeitos de capitais dos estados e de outras cidades, que fossem consideradas de “segurança nacional”, não mais seriam eleitos pela população: passariam ser nomeados pelos governadores que, a essa altura, não mais eram escolhidos pelo voto popular.
Acontece que com a reforma eleitoral de 1968, que a emenda constitucional introduziria no texto da nova Carta de 1969, as eleições diretas para governadores seriam reestabelecidas já em 1974. Por meio de pesquisas eleitorais, o governo calculou que seria derrotado em importantes estados da federação. O que fazer? Médici decidiu mudar as regras do jogo novamente: por meio de nova emenda constitucional as eleições diretas para governadores seriam adiadas para 1978. Com isso, a ditadura militar garantiria a indicação de indivíduos que fossem palatáveis ao Planalto do Planalto.
O único teste eleitoral que o partido da ditadura, a ARENA, enfrentaria, foram as eleições municipais de 1972. Nessas eleições, com voto popular, os candidatos da ARENA venceram o pleito de novembro com ampla margem: 88% das prefeituras ficariam sob controle do partido do governo. Os casuísmos eleitorais e os mecanismos de controle e intimidação seriam elementos indispensáveis para a vitória de Médici.
Presidente Ernesto Geisel (1974-1979).
Chegara a hora de enfrentar a sucessão presidencial. Entre 1973 e 1974, surgiram boatos de que não haveria sucessão: o mandato de Médici seria prorrogado. Membros da cúpula do Exército e, o próprio general Médici, afastariam esses boatos: havia o receio de que o “verniz” democrático fosse manchado. Era preciso preservar a aparência democrática. Alguns setores mais “progressistas” começaram a articular, dentro do próprio Exército, possíveis candidatos que estivessem comprometidos com a “desmilitarização” do poder executivo. Era chegado momento de iniciar o efetivo retorno aos quartéis.
O debate acerca da escolha do sucessor do general Emílio Mécidi está longe de ser tema sedimentado entre historiadores. Para muitos analistas, a escolha de Ernesto Geisel, indicaria mudança no entendimento do tipo de regime político que os militares desejavam e eram capazes de gerir. Para outros, as pressões sociais e a desaceleração econômica foram fatores determinantes para a escolha de um nome comprometido com a distensão política. Parece haver certo consenso, quando o tema analisado é a importância do general Orlando Geisel, irmão de Ernesto e, ministro do Exército de Médici, na escolha do sucessor.
Ainda que em eleições indiretas, como já destacamos, o pleito de 1974 traria uma vitória simbólica da oposição. Nas convenções partidárias, que foram realizadas no final de 1973, os dois únicos partidos, ARENA e o MDB, escolheram as chapas que disputariam a eleição. A escolha dos partidários da ditadura recairia sobre os generais Ernesto Geisel e Adalberto Pereira, como candidatos, respectivamente, a presidente e vice-presidente da República. No MDB, a chapa de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho lançava um movimento inovador e instigante, em um jogo político de cartas marcadas. Na convenção do dia 22 de setembro de 1973, Ulysses Guimarães lançaria sua anti-candidatura à Presidência: “Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anti-Constituição”.
Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho.
Em alguma medida, embora derrotados em 1974, Ulysses e Barbosa Lima Sobrinho saíam vitoriosos da disputa. O general Geisel assumiria o comando do país no dia 15 de março de 1974, após receber 400 votos no colégio eleitoral, contra os 76, que prestigiariam os candidatos do MDB. Iniciava-se o mandato do 4° general a frente do Palácio do Planalto. De muitas formas, era o início do fim. O processo de distensão política daria seus primeiros passos.
Na próxima semana, no último texto sobre o tema, falaremos sobre as eleições do último general a presidir o país: o general João Baptista Figueiredo. Vamos explicar também as eleições em outros níveis da federação.
Pedro Teixeirense é historiador e editor do site História da Ditadura.
Para saber mais:
Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965. Mantém a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências. .
Ato Institucional n. 3, de 5 de fevereiro de 1966. Fixa datas para as eleições de 1966, dispõe sobre as eleições indiretas e nomeação de Prefeitos das Capitais dos Estados e dá outras providências. .
Ato institucional n. 12, de 1° de setembro de 1969. Dispõe sobre o exercício temporário das fundações de Presidente da República pelos Ministros da Marinha, do Exercito e da Aeronáutica, enquanto durar o impedimento, por motivo de saúde, do Marechal Arthur da Costa e Silva, e dá outras providências.
Maria Helena Moreira Alves. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Editora Vozes, 1989.
Carlos Chagas. 113 dias de angústia. Rio de Janeiro: Lpm, 1979.
Carlos Fico. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Elio Gaspari. A ditadura escancarada– As ilusões Armadas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
Jayme Portella. A Revolução e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979.
Thomas Skidmore. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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