Mitos da Ditadura: “Naquele tempo não tinha corrupção…”
Atualizado: 15 de out. de 2020
“Naquele tempo não tinha corrupção…”. Foi o que ouvi de um senhor, com uns 50 anos, em uma conversa informal, enquanto aguardava ser atendido em uma casa lotérica. Ele faz parte da geração que nasceu na época do golpe de 1964 e viveu a juventude nas décadas de 1970 e 1980. Para ele, na ditadura não havia corrupção, como não havia bandidos pelas ruas, se amava a pátria e os professores eram mais respeitados. Em um momento, resumiu: “não era essa baderna”. Essas memórias, construídas a posteriori e repletas de impressões tão pessoais quanto parciais, deixou meu interlocutor nostálgico e o fez tirar conclusões apocalípticas sobre o tempo presente. “Na política só tem ladrão”, “Precisa começar tudo do zero”, afirmou.
Essas percepções não são somente individuais. Elas se replicam em grupos, redes sociais e habitam um repertório comum entre as direitas. Não raramente se manifestam também em políticos que se apresentam como inovadores e bastiões da moralidade. Ou entre eleitores céticos, que simplesmente anulam o voto, pois creem que todo o sistema político está corrompido. Os recordes de abstenção e voto nulo nas últimas eleições municipais, bem como o crescimento eleitoral das direitas, fenômenos que são, ao mesmo tempo, locais e mundiais, parecem atestar que meu companheiro ocasional de fila de loteria não está sozinho.
A escuta do “naquele tempo não tinha corrupção…” me fez escrever este texto. Sou historiador e, em virtude de minha tese de doutoramento, pesquiso a forma como a ditadura disse combater a corrupção. Estou convencido de que esse é apenas mais um dos mitos que se construiu sobre aquele período. Meus colegas historiadores talvez me advirtam que a palavra “mito” teve muitos sentidos ao longo da história e que ainda é polêmica. Raoul Girardet, historiador francês recentemente falecido e autor do livro “Mitos e mitologias políticas” admitiu diversos significados para os mitos. Entre eles, talvez o mais conhecido seja o de que o mito pode ser um “falseamento da realidade”. Em duas palavras: uma mentira. É justamente nesse sentido que afirmo que a ideia de que não houve corrupção na ditadura é um mito. Porque é falsa e não se comprova diante da pesquisa histórica. Pelo contrário, as evidências apontam o fato de que, nos anos de autoritarismo, o problema apenas piorou.
Imagem: Unplash
1- Muitos não se lembram de corrupção na ditadura porque havia censura. – A censura de imprensa, estabelecida no país desde o golpe, não deixava chegar ao grande público as principais denúncias de corrupção. A menos que isso fosse de interesse do regime. Ainda em 1964, foram vários os acusados de corrupção. Anos mais tarde, a Comissão Geral de Investigações (CGI), órgão criado após o AI-5 sob o pretexto de combater a corrupção, estabeleceu como norma plantar notas nos jornais sobre as principais denúncias. Era parte da suposta “obra moralizadora” da ditadura, que gerou, estima-se, cerca de 3000 processos com mais de 10000 envolvidos. Após feita a investigação, a CGI poderia sugerir ao presidente da República o confisco de bens dos acusados. Durante quase vinte anos, a ação conjunta do controle dos grandes meios de comunicação e da propaganda pela “moralização dos costumes políticos” gerou, em muitos, a sensação de que não havia corrupção.
2- As ações de combate à corrupção na ditadura tinham cunho arbitrário e de perseguição política. – Ao contrário da transparência e do controle externo dos poderes, princípios atualmente reconhecidos como basilares no combate à corrupção, os processos da CGI, que mencionei anteriormente, eram completamente secretos. Quando acionados, as vítimas da acusação tinham apenas oito dias para elaborar uma defesa com a justificativa de seus bens, com total desconhecimento da acusação. Os depoimentos ocorriam geralmente em quartéis, enquanto os suspeitos eram expostos na grande imprensa. Os principais alvos eram políticos do regime anterior e a intenção era a de abalar destruir suas reputações. Dúvidas disso? O primeiro investigado da CGI foi João Goulart, embora nada tenha sido comprovado sobre ele. Juscelino Kubitschek, outro ex-presidente, teve um dos mais longos processos da comissão.
3 – Os casos de corrupção que envolviam militares e aliados da ditadura tinham tratamento diferenciado. – As suspeitas de corrupção que envolviam militares não implicavam o risco da perda de bens, como ocorria com os investigados pela CGI. No lugar disso, os casos eram encaminhados a comissões de investigação sumária que existiam nas três armas. Sobre esses documentos, nada sabemos até hoje. Nem mesmo se ainda existem. Já as denúncias de corrupção de aliados civis do regime, embora existissem em razoável número, raramente eram enfrentadas pela cúpula do Planalto, como sugere Elio Gaspari no livro A ditadura acabada. Outro especialista no assunto, o historiador Pedro Campos, fez um estudo aprofundado sobre as transações de empreiteiras com a ditadura, demonstrando que as relações ilícitas entre o Estado e esses empresários não nasceram na Nova República, como parecem sugerir algumas das delações de empreiteiros que se tornaram célebres recentemente.
4 – Concepção limitada do problema da corrupção – Nos relatórios e nas atas de reuniões da CGI é facilmente perceptível a ideia de que corrupção era roubo e que só havia ladrões na política pois não havia punição. Achavam que a simples existência e o medo da punição inibiriam práticas corruptas, o que chamavam de “ação catalítica”, em referência ao efeito de aceleração, catálise, que algumas substâncias químicas produzem em reações. No entanto, o combate à corrupção produzido pelos militares no poder, como admitiu o próprio ex-presidente Ernesto Geisel, foi inócuo. Isso ocorreu porque a ditadura perpetuou uma noção simplória de corrupção. Cientistas sociais de diversas vertentes teóricas apontam para leituras bem mais complexas sobre o tema. Leonardo Avritzer, cientista político da UFMG, por exemplo, refuta a ideia de que a corrupção seja algo cultural ou inerente aos brasileiros, mas, antes, um fenômeno relacionado à incapacidade das instituições de coibi-la, em uma “inter-relação entre política e cultura”. Nesse sentido, combater a corrupção passaria por entender melhor essa relação e criar mecanismos institucionais para evitá-la.
Certamente já ouvimos o famoso dito de que uma mentira contada muitas vezes pode ser aceita como verdade. Hoje se fala em pós-verdade, expressão oriunda da guerra de versões e informações falsas, ou extremamente parciais, que, por exemplo, são compartilhadas nas redes sociais. Algo de que se utilizam, inclusive, figuras públicas que veem nessa característica do século XXI uma porta de entrada para oportunismo e a realização de seus objetivos políticos. Talvez as redes sociais tenham contribuído para uma espécie de primazia da opinião. (como esta, que arrisquei agora). Esse pequeno artigo mesmo, quantos poderão desqualificá-lo sem sequer debater os aspectos que apresentei?
Todos, inclusive minha companhia de fila, têm o direito de expressar seus sentimentos e impressões políticas. Vivemos, afinal, em uma democracia. Mas quando os juízos que emitimos sobre política e história afastam-se muito dos fatos, o debate cai de nível e nos tornamos vulneráveis a aventureiros que se apresentam como salvadores da pátria e dos tempos. Uma avaliação mais acurada faria perceber que fizemos avanços importantes no combate à corrupção no Brasil nos últimos anos, tais como a criação da Controladoria Geral da União (CGU) e a atuação da Polícia Federal na inibição de novos crimes. O risco, parece, é outro: o da aposta insistente em medidas autoritárias para extirpar a corrupção. A pregação moralista e a cegueira diante da história da ditadura apresentam a contrapartida da total descrença na política e, consequentemente, na democracia. Se essa perspectiva se mantiver, haverá o perigo de sucumbirmos a novos anos de chumbo.
Diego Knack é historiador e professor de História.
Para saber mais:
Leonardo Avritzer. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Pedro Henrique Pedreira Campos. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar (1964-1988). Niterói: Eduff, 2015.
Celso Castro; Maria Celina D’Araújo. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
Carlos Fico. Como eles agiam – os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Fernando Filgueiras. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Elio Gaspari. A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
Raoul Girardet. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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