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Foto do escritorHistória da Ditadura

Mourão, Bolsonaro e Castello Branco – entrevista com o historiador Daniel Accioly

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Daniel Accioly é doutor em História, professor e escritor. Dedicou-se nos últimos anos ao estudo das múltiplas influências estrangeiras no pensamento do Exército Brasileiro no período da Guerra Fria. O historiador lançou recentemente o livro Castello Branco, no qual analisa a forma pela qual o oficial Humberto de Alencar Castello Branco foi um dos principais atores envolvidos na transformação da Doutrina Militar Brasileira, a partir das influências estrangeiras.

HD: No seu trabalho de mestrado, você estudou as influências estrangeiras no pensamento do Exército. Como essa pesquisa despertou seu interesse pela figura de Castello Branco?

O estudo acerca dessas influências acabou me levando até ele. Castello Branco foi um personagem central nesse processo de formação da doutrina militar brasileira. Por coincidência, ele está mais atual do que nunca. Jair Bolsonaro elogiou Castello Branco, o general Mourão citou-o como exemplo de militar liberal e o (na época) comandante do Exército, general Villas Bôas, tuitou elogios a ele. Faz alguns anos que há uma operação clara de fortalecimento de uma memória positiva sobre o Castello Branco, como alguém “moderado, legalista e democrata”. Esse novo governo de militares que, em tese, pretende implementar uma ordem liberal no Brasil tem Castello Branco como uma clara referência. Por uma coincidência, eles já têm até um Roberto Campos (Neto, presidente do Banco Central) e um Castello Branco (Roberto, futuro presidente da Petrobras) na equipe de governo.

HD: Foi em razão do fortalecimento de uma “memória positiva” sobre Castello Branco que você resolveu escrever uma nova biografia sobre ele?

Vou responder essa pergunta em duas partes. Em primeiro lugar, não é exatamente uma biografia. Temos dois grandes trabalhos de referência que são as biografias escritas por John Dulles e por Lira Neto. Ambos realizaram um levantamento documental extenso, incluindo o arquivo pessoal de Castello Branco, mantido hoje pela ECEME. As duas obras têm o objetivo de apresentar a vida de Castello da forma mais completa possível.[1] Eu não tinha essa intenção. Meu interesse está focado no militar e político Castello Branco. Seu pensamento doutrinário, seus valores e, mais importante, sua relação com o Exército brasileiro. Ele dedicou sua vida a essa instituição. Posso dizer que é uma biografia no sentido de buscar compreender as ações desse personagem a partir de sua formação, seus projetos, perspectivas, memórias, frustrações e alegrias. Como Castello se dedicou desde cedo à carreira militar, sua história é também a história de alguém que presenciou as transformações pelas quais passaram Exército e sociedade ao longo do século XX.

HD: E aí entram as relações entre indivíduo e sociedade. Como você tratou essa questão? Castello era fruto de um período ou formador de um período?

Esse é o problema que toda biografia tenta resolver. Sabemos que um indivíduo está sempre limitado a um campo de possibilidades dado por seu contexto social, pelo tempo em que vive. Em algum grau, ele foi formado pelo Exército e, ao mesmo tempo, formou um novo Exército. Eu diria que, à medida que cresceu na carreira militar, Castello teve cada vez mais poder para influenciar momentos decisivos que envolveram o Exército e o Estado brasileiro.

HD: Como no golpe de 1964?

Esse seria um exemplo, embora eu veja que Castello trabalhou por anos nos bastidores do Exército, não para planejar o golpe, mas sim para impor ao sistema de ensino do Exército sua doutrina e sua visão de mundo, as quais foram decisivas para agregar os oficiais que praticaram o golpe. Obviamente ele não fez isso sozinho, nem conseguiu sucesso absoluto nesse processo. O ponto é que ele, durante muitos anos da carreira militar, ocupou posições de magistério dentro do sistema de educação do Exército, conseguindo trabalhar para modernizar a doutrina militar de acordo com seus interesses.

HD: Você está dizendo que ele, na sua atuação profissional, empreendeu uma série de ações de caráter político. É possível separar o Castello Branco militar do político?

De fato, em muitos momentos, as ações de Castello se situaram numa zona cinzenta entre os dois, ainda mais quando se é membro de uma instituição estatal que detém o poder da violência. Um exemplo disso é o debate sobre o papel do Exército brasileiro. Esse é um dos temas que tem uma claríssima dimensão política.

HD: Você poderia citar alguns desses temas em debate?

Desde a Primeira República, existiam certos questionamentos como: o Exército deve se dedicar exclusivamente à defesa contra agressões de nações estrangeiras? Deve cuidar da defesa interna também? Deve cumprir algum papel na segurança pública? Deve ajudar no desenvolvimento econômico? Deve ajudar no processo de educação da sociedade brasileira? Como deve ser a educação dos oficiais? Quais são os melhores critérios de promoção na carreira? Castello por sinal foi um crítico ácido da utilização do Exército em múltiplas funções. Na opinião dele, os escassos recursos deveriam ser usados de forma concentrada em seu papel primordial.

Capa do livro Castello Branco, do historiador Daniel Accioly

HD: O papel de defesa externa?

Sim. Entretanto, ele foi mudando essa visão ao longo da carreira. Castello se orgulhava de ser um oficial adaptável, que ia mudando seu pensamento diante de novas realidades. Inclusive, o busto dele na ECEME louva essa característica. Tá escrito lá: “Ao chefe não cabe ter medo das ideias, nem mesmo das ideias novas”. Castello era um oficial camaleônico, algo fundamental no mundo da guerra que passou a se renovar com uma velocidade incrível ao longo do século XX.

HD: Você diz que o governo Bolsonaro tem o Castello como uma referência. Se ele estivesse vivo, você acha que ele seria contrário à proposta do presidente de criar mais colégios militares? Não sei. Castello Branco foi aluno do Colégio Militar de Porto Alegre por vários anos. Gostou tanto que depois continuou mais 47 anos no Exército. Ao mesmo tempo, ele não ia ver com bons olhos o gasto de recursos da Defesa com várias novas escolas militares. Castello cresceu num Exército marcado pela penúria dos soldos e pela falta de estrutura. Para piorar, como falei acima, os avanços tecnológicos se manifestaram no mundo militar de maneira irreversível. Havia uma certa ânsia modernizante dos militares que, logicamente, não queriam ficar para trás na evolução do mundo da guerra.

HD: Recentemente, o general Hamilton Mourão afirmou que “as nossa Forças Armadas não estão cooptadas para nenhum projeto de poder, nem de caráter ideológico”[2]. Ele também disse que houve uma tentativa de mudar o currículo das escolas militares durante os governos petistas e que os militares teriam defendido “com unhas e dentes” as suas escolas. Você vê alguma relação entre essas declarações e o seu livro?

Com certeza! O sistema de ensino do Exército não está submetido ao Ministério da Educação. Já vimos em notícias que os livros didáticos utilizados em escolas militares apresentam uma versão da História com omissões graves acerca do período da ditadura militar. De forma simples: eles apresentam a versão oficial dos próprios militares sem sequer mencionar a versão aceita pela maioria da historiografia brasileira. Nessa entrevista, Mourão elogiou o PT ter liberado verbas para a modernização do Exército e, ao mesmo tempo, criticou os que tentaram mudar o currículo das escolas militares. Acho que ele deu a entender que Hugo Chávez controlou o Exército na Venezuela através das escolas, ou seja, intervindo na formação dos oficiais. Manter o controle delas seria estratégico para evitar a cooptação.

HD: Castello foi um dos artífices da construção dessa mentalidade militar?

As escolas militares exercem dois tipos de influência sobre os oficiais. Em primeiro lugar, elas formam decisivamente a mentalidade militar. São o local onde você vai ver a cultura militar, ideologias, doutrinas que definem institucionalmente o Exército. Em segundo, as notas que os alunos vão tirando ao longo da permanência nessas escolas são definidoras de seu futuro. Ou esse ideário é aceito ou não se tem uma carreira muito longeva. Castello conseguiu, enquanto general, mudar esses currículos e, quando foi presidente, iniciar o processo de mudança do próprio Exército, que se desenrolou nos governos seguintes.

HD: Em linhas gerais, no que consistiam essas mudanças?

Nas escolas militares, criar uma doutrina brasileira a partir, principalmente, da Doutrina Francesa de Guerra Revolucionária e, no exército, criar uma estrutura mais enxuta voltada para o combate a esse inimigo interno. Somados a esses dois, a importantíssima criação de um serviço de informações.

HD: Para encerrar, o que você acha que podemos esperar do atual governo em relação ao estudo e ao ensino da ditadura militar?

Quanto ao governo eu não sei. Acho que, eventualmente, essas questões passarão a ter um tratamento diferente pelas novas gerações de oficiais. Afinal, os generais de hoje, e isso inclui o vice-presidente Mourão, se tornaram cadetes quando a luta armada já estava completa ou praticamente eliminada. Além disso, sabemos que do total de oficiais do Exército, apenas uma pequena porcentagem atuou de fato no sistema repressivo. Todos já foram para a reserva, são idosos ou falecidos. Há também uma nítida tendência dos oficiais de investirem em novos temas como o controle de fronteiras, combate ao narcotráfico, terrorismo, pressões ambientais, corrupção etc. É por isso que não foi bem recebida a ordem do General Villas Boas de “rememorar a Intentona Comunista”. As demandas do presente indicam que o Exército está mais preocupado em olhar para outras questões.

 

[1] John W. F Dulles. Castelo Branco: o caminho para a presidência. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

_________________. Castello Branco: o presidente reformador. Brasília: Editora UnB, 1983.

Lira Neto. Castello – a marcha para a ditadura. São Paulo: Contexto, 2004.

[2] Palestra concedida ao BTG Pactual. Disponível no YouTube.

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