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Foto do escritorBreno Tommasi

Mulheres e indigenismo no Brasil: o silêncio sobre a atuação feminina

Para situar o leitor: o texto foi redigido pelo colunista Breno Tommasi em parceria com a historiadora Leticia Calado, que tece reflexões acerca da invisibilização da agência histórica das mulheres. O artigo foi, em sua maior parte, escrito por Breno Tommasi. O tópico “A visão de uma mulher historiadora sobre uma mulher sertanista” é de autoria de Letícia e as conclusões dos tópicos “Trajetórias femininas e questão indígena no Brasil” e “A memória, a História e o silenciamento” foram elaboradas em coautoria. Por essa razão, ao longo do artigo, há variação entre o uso da primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural.


Ao ingressar no doutorado, decidi que mudaria meu tema de pesquisa. Após dois anos investigando órgãos federais como a Funai, admito que estava cansado de encarar essas estruturas. Mesmo que sempre tenha reforçado em meus trabalhos a atuação de agentes feitos de “carne e osso”, decidi que era hora de direcionar meu olhar para as pessoas comuns que faziam parte dessas instituições. Selecionei meus atores centrais e iniciei um processo de reconstrução do cenário em que eles atuaram.

Talvez uma das características mais interessantes desse tipo de pesquisa, que se aproxima da produção biográfica, é que geralmente partimos para nossos objetos com uma quantidade limitada de informações em mãos. A primeira grande missão se torna, portanto, traçar os pontos mais relevantes das trajetórias pessoais dos indivíduos investigados.

No caso da pesquisa que venho desenvolvendo, centrada na figura de Apoena Meireles, sertanista que trabalhou na Funai – com intervalos – entre os anos 1960 e 2000, se tornou recorrente mencionar, em textos que tratam sobre o sertanismo no Brasil, o vínculo com Francisco Meireles, seu pai. Francisco também era sertanista e atuou no SPI – órgão indigenista antecessor da Funai – entre as décadas de 1940 e 1970. Seu nome se tornou extremamente popular quando se trata de questão indígena e de política indigenista no Brasil do século XX graças ao destaque que recebeu de jornais e de círculos intelectuais e em função de sua atuação profissional, valorizada em um período de intensificação dos discursos por integração e desenvolvimento nacional. Nesse contexto de exaltação do trabalho sertanista, Francisco e Apoena Meireles, pai e filho, são comumente tratados como duas das principais figuras do indigenismo brasileiro. Os homens da família concentraram as atenções enquanto as mulheres foram marginalizadas.


Apoena Meirelles. Rondônia, 198. Foto: Guina Araújo Ramos. Reprodução.

A motivação para produzir esse texto surgiu da minha surpresa ao conhecer a história de Abigail Lopes, a quem faço questão de me referir como sertanista, e não como esposa ou mãe de sertanistas. O contato ocorreu de forma indireta quando, procurando informações sobre a família de Apoena, encontrei o documentário Abigail na internet. Pouco conhecia sobre a sertanista, mas fui tomado por uma enorme curiosidade ao me deparar com tal produção cinematográfica. Nessa obra, Isabel Penoni e Valentina Homem apresentam “duas Abigail”: a dona de casa octogenária, profundamente marcada por suas crenças religiosas, e a jovem mulher sertanista.






A visão de uma mulher historiadora sobre uma mulher sertanista

A descoberta do documentário Abigail chamou minha atenção para sua trajetória impressionante enquanto indigenista, me levando a questionar por que sua história não foi investigada como foram as vidas de sertanistas homens. As únicas informações prévias que possuía sobre Abigail eram acerca de sua maternidade e de seu matrimônio com Francisco Meireles – o que a restringia ao papel da mulher por trás dos “grandes homens”. Assim como ocorre com tantas outras mulheres, a memória de Abigail estava condicionada a uma posição de coadjuvante.


Cena do documentário Abigail. Reprodução.

A ausência de documentações e textos sobre sua vida pode ser explicada pela existência de estruturas patriarcais em nossa sociedade, que dificultam às mulheres alcançarem posições de destaque. Esse processo de invisibilização das trajetórias femininas produz diferentes resultados, entre os quais sua exclusão do rol de possíveis objetos de estudo para pesquisas acadêmicas.

De acordo com a historiadora Michelle Perrot, há poucas autobiografias de mulheres. Consideramos uma atitude pouco feminina “o olhar voltado para si, numa fase de mudança ou ao final da vida, mais frequente em pessoas públicas que querem fazer o balanço de sua existência e marcar sua trajetória” (PERROT, 2007, p. 48). Ademais, como salienta Perrot, essas estruturas atuam também no âmbito individual, fazendo com que estas mulheres não se reconheçam como agentes de transformação social. A atuação feminina é tratada como restrita ao espaço privado e suas trajetórias são resumidas aos cuidados com o lar e com a família – logo, não seria interessante documentar suas vidas.

Apesar da ausência de dados precisos ou pesquisas específicas sobre a questão, basta uma breve análise das produções do campo historiográfico para que se perceba uma grande diferença no número de biografias e autobiografias escritas por e sobre homens. Além disso, a maior parte dos trabalhos produzidos na academia adota como personagens centrais figuras masculinas. Durante séculos a escrita biográfica esteve quase restrita a “História dos grandes homens”, que desde o nome – embora usado em sentido generalizante para tratar de diferentes campos – já não possuía grande compromisso em retratar as mulheres.


Trajetórias femininas e questão indígena no Brasil

Abigail Lopes nasceu em 1924 e, ainda na juventude, se casou com Francisco Meireles, funcionário do SPI. A vida de Francisco se confundia com o trabalho: o sertanista era frequentemente obrigado a lançar-se aos interiores do Brasil a serviço do órgão indigenista oficial. Ao contrário do que muitos poderiam supor, Abigail não se restringiu a aguardar o retorno do marido na calmaria do lar, ambiente comumente associado ao feminino. Na década de 1940, acompanhou Francisco Meireles em diversas expedições, entre as quais destacou-se o contato com os indígenas Xavantes, grupo considerado violento e arredio ao contato dos homens brancos.


Cena do documentário Abigail. Reprodução.

Em registros fílmicos – gravados pelos órgãos de comunicação do governo, por membros das comissões e/ou por jornalistas –, é possível observar uma Abigail ativa na aproximação estratégica com aquelas comunidades tradicionais, coordenando entre os homens da expedição o posicionamento dos objetos ofertados aos indígenas para facilitar o contato. Percebe-se também a empolgação no semblante e nas atitudes de Abigail diante da experiência de campo.


Considerando o trabalho com os indígenas, pelo menos um filho do casal, Apoena Meireles, nasceu em meio a uma comunidade Xavante localizada na reserva Pimentel Barbosa. Entre os indígenas, Abigail era conhecida como tipizari, a “dona das panelas”, fato que expõe a atribuição de funções relativas ao lar às mulheres que integravam as expedições. Era comum que fossem elas as responsáveis pela cozinha, pela lavagem das roupas, pela coleta de água e outras atividades similares. Nas imagens capturadas pelos cinegrafistas das expedições que constam no documentário, vemos que Abigail não se restringe a essas funções: a sertanista atuou intensamente na atração dos indígenas.


A trajetória como sertanista informal, contudo, não durou muito tempo. Após transferir-se para o Rio de Janeiro, Abigail decidiu se afastar do mundo que conhecera junto aos indígenas para zelar pela família – mas não abandonou definitivamente as raízes que havia criado com essas comunidades. Na cidade, Abigail iniciou-se nas religiões de matriz africana, frequentando tanto as giras dos terreiros de umbanda quanto os xirês dos barracões de candomblé. Era filha de Obaluaê, orixá das doenças e das enfermidades, mas também das curas e da terra. Sua dijína, nome com o qual a pessoa é “rebatizada” no candomblé bantu de Angola, era “Madoji”.


Cena do documentário Abigail. Reprodução.

Religiões como a umbanda e o candomblé, em diferentes medidas, através do fenômeno de sincretismo, incorporam elementos da cultura indígena brasileira. Os caboclos, o catimbó, o culto da jurema, os usos de diversas ervas, entre outras manifestações culturais e religiosas do candomblé e da umbanda, apresentam como origem as práticas de comunidades indígenas brasileiras. Foi nesses espaços que Abigail parece ter se encontrado, agora longe das tribos.


No final dos anos 1960, era a vez de Apoena ingressar na carreira de sertanista ao lado do pai, Francisco. Ambos estão entre os principais nomes do mundo sertanista, enquanto Abigail caiu no esquecimento e pouco foi produzido sobre sua memória.


Ficamos ambos surpresos ao descobrir que Abigail não era a única mulher da família com uma trajetória de vida atravessada pelo indigenismo. Em entrevista com Tainá Maldi, filha de Apoena, soube que sua mãe decidiu iniciar sua trajetória como antropóloga antes mesmo da formatura na Universidade de Brasília. Interessada pelos estudos de parentesco, Denise Maldi recorreu à família Meireles para conseguir acesso às comunidades indígenas que os sertanistas da Funai contatavam. Em 1973, casou-se com Apoena; três anos mais tarde, concluiu sua graduação, mudando-se para Rondônia pouco tempo depois. Ao lado de Apoena, Denise fez parte de importantes expedições para contatar comunidades isoladas como os Avá-Canoeiro.


As memórias e os estudos de Denise Maldi sobre esse e outros grupos indígenas compõem uma importante coletânea sobre seus costumes, suas práticas, suas interações sociais e suas cosmologias. Em 1996, Denise faleceu aos quarenta e dois anos, com uma promissora carreira já marcada pelos trabalhos que desenvolveu. Roque de Barros Laraia, antropólogo e um dos indigenistas mais relevantes do Brasil, escreveu uma carta lamentando a perda da pesquisadora. Publicado em 1997 no Anuário Antropológico, o texto dizia:


No final de 1983, [Denise] conseguiu uma forma de conciliar a sua vida familiar com o estudo de pós-graduação. Procurou-me, com seu jeito decidido, para comunicar-me que estava disposta a fazer o mestrado e que eu seria o seu orientador. Mais do que isto, disse que necessitava fazer o mestrado em um ano e meio, pois este era o tempo de que dispunha. Respondi que tinha o maior prazer de orientar a sua tese, mas que ela teria que fazer o mestrado no prazo que fosse necessário [...] conseguiu terminar o seu mestrado em um tempo excelente. Defendeu a sua tese de mestrado em julho de 1986, ou seja, dois anos e meio após a sua matrícula. Antes dela, apenas um aluno tinha conseguido esta façanha. 

Ainda segundo Laraia, a tese de Denise Maldi sobre os Pakaa-Novo concorreu ao prêmio do concurso da ANPOCS, sendo vencida apenas em critérios de desempate pelo trabalho de Nádia Farage.

O que torna a trajetória de Denise ainda mais surpreendente é seu destaque em uma área preponderantemente masculina apesar das barreiras impostas pelas funções atribuídas às mulheres em nossa sociedade. A antropóloga e sertanista recebeu o reconhecimento de muitos de seus pares da academia, mas sua memória parece não despertar o interesse dos estudiosos dedicados ao tema do indigenismo – pelo menos não no mesmo nível que figuras como os irmãos Villas-Bôas e o próprio Francisco Meireles.

Ao iniciarmos a pesquisa para escrever esse texto, nos deparamos com o artigo de Carolina Santana, intitulado “A invisibilidade das mulheres indigenistas: entrevista com Ananda Conde”. O excelente material produzido por Santana – cuja leitura recomendamos fortemente – aborda justamente a existência de mulheres indigenistas e o “apagamento” de sua atividade.

Ao falarmos de Abigail, Denise, Ananda – funcionária da Funai entrevista por Santana – e Neidinha – ex-sertanista da Funai que tivemos a oportunidade de entrevistar em 2021 –, é impossível não nos questionarmos: quantas outras sertanistas, indigenistas, antropólogas, enfim, quantas mulheres esquecemos pelo caminho?

Contudo, esse silêncio tem sido contestado. No caso de Neidinha, durante entrevista em que falávamos sobre Apoena Meireles, o assunto surgiu de forma espontânea. Ao ser questionada sobre seus anos na Funai, ela afirmou: se ser uma mulher indigenista já é difícil atualmente, a tarefa era ainda mais desafiadora nos anos 1980. Nesse momento, a ficha caiu: entrevistávamos uma mulher com uma história riquíssima no campo indigenista brasileiro, mas nos limitávamos a falar sobre um homem que ela conhecera.

A memória, a História e o silenciamento

Carolina Santana cita uma passagem de Michele Perrot que, quando lida nos dias de hoje, gera uma profunda inquietação: “No começo de Tristes Tropiques, Claude Lévi-Strauss descreve uma aldeia depois da partida dos homens para caçar: não havia mais ninguém, diz ele, exceto as mulheres e as crianças”. O apagamento das mulheres da História se aprofunda de acordo com a posição social ocupada: as mulheres marginalizadas são ainda mais facilmente descartadas das produções historiográficas.

Há décadas, historiadores e historiadoras têm investido sobre extensos e complexos debates acerca da função social do fazer historiográfico e do próprio historiador. As questões derivadas desses embates intelectuais aproximam-se – ao mesmo tempo que mantêm suas peculiaridades – dos debates surgidos no interior do campo antropológico sobre o papel do antropólogo em suas pesquisas. Nesse segundo caso, ganhou força a noção de alteridade, mas principalmente a ideia de que é necessário a esses pesquisadores um “olhar para dentro” ou um “olhar de si”. Ao nos depararmos com o próprio “estranhamento” com o qual encaramos outras culturas, o questionamento do lugar do pesquisador na produção etnográfica se tornou um dos temas centrais do fazer antropológico. Era importante questionar: quem sou eu nessa pesquisa? Como enxergo o “outro”? Quais são minhas motivações para pesquisá-lo? Essas e outras perguntas nos forçam a, novamente, fazer o movimento de olhar para dentro de si.

No campo historiográfico, esses procedimentos têm sido incentivados e, pelo menos em nossa experiência acadêmica, têm sido bem recebidos. Entretanto, ainda encontramos determinadas resistências internas, sobretudo entre os pesquisadores homens, muitas surgidas da nossa dificuldade em nos manter permanentemente questionando nossa posição e nossa visão sobre os objetos de pesquisa que escolhemos tratar. As estruturas de poder estão ao nosso redor e somos frequentemente permeados pelo patriarcado, pelo racismo, entre outras.

Em determinados casos, os reflexos da ação dessas estruturas são pontuais e podem passar desapercebidos. Por isso, é necessário apelar a um movimento de questionamento constante, uma inquietação permanente sobre tudo aquilo que produzimos não só na academia, mas principalmente para além de suas portas.



Breno Luiz Tommasi Evangelista e Leticia Calado Gonçalves do Sul




Créditos da imagem destacada: Cena do documentário Abigail. Reprodução.


 

REFERÊNCIAS:


Abigail. Documentário. De Isabel Penoni e Valentina Homem. Pernambuco, Brasil. 2016. 16 min.


LARAIA, Roque de Barros. Denise Maldi (1954-1996). Anuário Antropológico. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 96. p. 275-278, 1997.


PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2007.



Como citar este artigo:

EVANGELISTA, Breno Luiz Tommasi; SUL, Leticia Calado Gonçalves do. Mulheres e indigenismo no Brasil: o silêncio sobre a atuação feminina. História da Ditadura, 11 jan. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/mulheres-e-indigenismo-no-brasil-o-silencio-sobre-a-atuacao-feminina. Acesso em: [inserir data].

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