Narrativas da destruição: as memórias dos bombardeios de Dresden
Considerada um dos principais centros culturais da Europa, Dresden foi reduzida a escombros durante o mês de fevereiro de 1945. Após os ataques aliados, as narrativas sobre os bombardeios tornaram-se objetos de disputa entre diferentes grupos da sociedade alemã, incluindo a extrema-direita. Andreas Huyssen, em Seduzidos pela memória (2000), escreveu sobre o furor memorialístico vivido na Alemanha reunificada. Memoriais em abundância e propostas megalomaníacas foram entendidas como problemáticas pelo autor por representarem a vontade do espetáculo contemporâneo. Contudo, assim como o conturbado processo de desnazificação no pós-guerra, as políticas de memória foram distintas no novo Estado alemão.
Cidades centrais como Berlim viveram anos de debates públicos e concursos para novos projetos de memoriais. A Topografia do Terror, antes um quarteirão abandonado repleto de entulhos, tornou-se um memorial/centro de documentação que representa o Vergangenheitsbewältigung, o acerto de contas com o passado. Tal conceito, popularizado na reunificação, resumiu a nova postura adotada pela sociedade e pelo governo alemães: compreender e criticar os aspectos do passado sem silenciamentos.
Se a Topografia do Terror, que antes abrigara a sede da Gestapo e do Gabinete de Segurança do Reich, viveu anos de abandono, agora, recepciona milhares de pessoas buscando informações sobre a catástrofe do nacional-socialismo. Contudo, Huyssen aponta que nem todos os memoriais e monumentos possuem função social: muitos apenas ocupam o espaço urbano de maneira acrítica e rasa.
Além disso, outros fatores são fundamentais para os debates sobre memória na Alemanha: o Vergangenheitsbewältigung foi tardio e não teve a mesma profundidade em cidades do Leste. Tardio pois sucedeu anos de instrumentalização, negacionismo, silenciamento e a questão da culpa, apontada pelo filósofo alemão Karl Jaspers em 1946. Dresden, capital da Saxônia, possui um contexto mais complexo do que a cosmopolita Berlim e seu caso pode ajudar a explicar a heterogeneidade dos debates sobre memória no país.
A Florença do Elba
Em 2019, os principais jornais alemães e internacionais deram destaque à notícia que vinha de Dresden: a cidade declarava emergência neonazista. Instrumento adotado pelos políticos locais, a emergência consiste no alerta aos democratas de que os grupos extremistas avançam e ganham força. A presença da extrema-direita em Dresden não é novidade e possui relação direta com o passado da cidade.
Chamada inicialmente de Drezdzány, ela funciona como uma ponte no lado oriental da Alemanha. Próxima à fronteira com a Polônia e a Tchéquia, a capital da Saxônia abriga uma grande mistura cultural valorizada até hoje, sendo importante destino turístico para pessoas de todo o mundo. Por conta da sua riqueza arquitetônica, Dresden ficou popularmente conhecida como “Florença do Elba”, em referência à cidade italiana do Renascimento cultural.
Há 76 anos, acreditava-se que a Segunda Guerra Mundial não chegaria com o mesmo impacto em Dresden, como havia ocorrido em outras cidades alemães. A devastação causada pela Operação Gomorra, o bombardeio Aliado na cidade alemã de Hamburgo em 1943, e pelos ataques a Berlim e Colônia eram inconcebíveis e inesperados para uma população que se amparava no sentimento de que o status de cidade cultural proporcionava imunidade em relação às ofensivas inimigas. Chegaram a correr mitos de que Winston Churchill poupava Dresden, pois sua tia favorita morara na cidade e era uma amante da sua cultura (TAYLOR, 2004).
Embora rica culturalmente, Dresden possuía elementos que importavam mais na lógica da guerra. Conhecida pelas fábricas de lentes e câmeras, assim como pela produção de artigos luxuosos para lazer, a capital da Saxônia também integrou o esforço armamentista nos tempos de conflito. Devido a sua atividade nos anos anteriores à guerra, ela ficou conhecida como a “cidade sem indústria” (TAYLOR, 2004), mito que não levava em consideração a diversidade industrial, principalmente em relação a artigos que demandavam da engenharia de precisão, como era o caso das miras. Fábricas locais conhecidas, como a Seidel & Naumann-AG, deixaram de produzir máquinas de escrever para fabricar armas.
A ruptura do Pacto Molotov-Ribbentrop – o acordo de não-agressão entre soviéticos e alemães assinado em 1939 – abriu um novo front na guerra. Com a invasão alemã da União Soviética, Dresden tornou-se importante entroncamento ferroviário para mobilização de tropas, mas também para a recepção de refugiados vindos do Leste. Assim, devido à importância dada pelos aliados, Dresden tornou-se alvo de ataques em 1945. Liderado pelo marechal Arthur Harris, o Comando de Bombardeiros da Royal Air Force, a força aérea britânica, adotou o bombardeio de área no decorrer do conflito. Após a Blitz de Londres, quando os nazistas bombardearam a capital britânica dia e noite, foi a vez das respostas aliadas.
Colônia e Hamburgo já haviam sido destruídas após pesados ataques. O bombardeio de área consistia em incursões com centenas de aviões e lançamento de artefatos sem discriminação entre civis e militares. Indústrias, centros históricos e urbanos eram atacados da mesma forma. O número de mortos chegou à casa dos milhares, enquanto os sobreviventes conviviam com o trauma pelo resto da vida.
As memórias dos bombardeios
Em Dresden, os bombardeios tornaram-se tema transversal na história recente da cidade. Nos dias 13 e 14 de fevereiro, em 1945, centenas de bombardeiros ingleses e americanos executaram a Operação Thunderclap. O objetivo era a destruição total da capacidade industrial e do centro histórico de Dresden, fato que se tornou contestado pela opinião pública dos países Aliados e custou as condecorações de Harris após a guerra.
Enquanto os artefatos explosivos destruíam portas, janelas e telhados, as correntes de vento criavam as condições ideais para as bombas incendiárias. Galões inflamáveis desciam dos aviões e iniciavam focos de incêndios por toda a cidade. Em pouco tempo, o ar já alimentava um tornado de fogo no centro urbano, tornando a sobrevivência um misto de sorte e coragem. Os que buscaram refúgio nos porões, visto que a cidade não possuía estrutura de abrigos, morreram asfixiados.
Por sinal, a abertura dos porões é descrita por Frederick Taylor (2004) como uma das cenas mais marcantes dos ataques. Os corpos desfigurados pelo calor tornaram-se massas cinzentas misturadas e sem possibilidade de distinção. Ironicamente, os que buscaram abrigo em pequenos locais com água também não sobreviveram: fontes, poços e chafarizes ferveram com a alta temperatura. O rio Elba foi o principal destino para quem conseguiu fugir da morte.
Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, entendeu que os bombardeios eram um duro golpe, mas também abriam possibilidades: rapidamente, buscou-se instrumentalizar os ataques para questionar a moralidade de ingleses e estadunidenses. Goebbels categorizou a ação dos aliados como crime e alçou o número de mortos aos cem mil (TAYLOR, 2004), enquanto, na verdade, aproximadamente vinte e cinco mil pessoas morreram na ocasião. Mas o debate sobre os crimes aliados não parou por aí.
Afinal, é possível que vencedores cometam crimes de guerra? Na teoria sim, mas não na prática, quando os tribunais são conduzidos pelas nações vitoriosas. Decerto, a perspectiva alemã poderia adotar um tom crítico em relação aos ataques, mas isso não ocorreu: de acordo com Karl Jaspers, a sociedade alemã internalizou a culpa pelas atrocidades nazistas. Desta forma, era impraticável criticar os aliados, visto que Dresden era uma “cidade nazista”.
W. G. Sebald, escritor e crítico literário alemão, observou os efeitos dos bombardeios na literatura alemã do pós-guerra, conhecida como Trümmerliteratur, a literatura das ruínas. As lacunas literárias sintetizam três importantes elementos da memória coletiva alemã, principalmente em cidades como Dresden: o trauma, a culpa e o silêncio. Segundo Hermann Lübbe, pensador alemão, a relação do trauma com a culpa foi fundamental para a criação de um pacto de silêncio entre os alemães. Era melhor se calar e esquecer.
Nesse ínterim, o novo Estado que se organizava em Dresden adotou caminhos problemáticos. Visando culpabilizar os antigos aliados como criminosos de guerra, os soviéticos reproduziram o discurso “sacrificial” de Dresden. Novamente, a cidade era retratada como um lugar sem importância militar, lotado de refugiados e atacado injustamente. De fato, os ataques podem ser questionados à luz da moralidade das suas justificativas, tal como Michael Walzer, teórico estadunidense, propôs no seu livro Just and Unjust Wars (1977).
Os abusos do passado por parte do governo socialista escancararam portas que foram abertas pelo silêncio e pelo trauma. Enquanto o debate público e a reconstrução da cidade eram inexistentes, culturas políticas extremistas que encontraram espaço de desenvolvimento no governo socialista cooptaram diversos pontos em aberto sobre a discussão dos bombardeios. O discurso oficial instrumentalizado pelo Estado era cercado pelas memórias subterrâneas (POLLAK, 1989) cada vez mais negacionistas.
A República Democrática Alemã possuía um ambiente político favorável a movimentos nacionalistas e, até mesmo, neonazistas. Enquanto o foco das narrativas oficiais estava voltado à desmoralização do Ocidente, internamente desenvolvia-se uma juventude ressentida e carregada de traumas das gerações anteriores. Em meio ao clima de repressão política, estes grupos começaram a ocupar espaços e discussões sobre o passado ignorados pelo debate público.
Vale ressaltar que os grupos extremistas de Dresden não formam um único corpo. Além dos nacionalistas e neonazistas, já observados no século XX, a cidade também se tornou espaço de outras perspectivas do extremismo. É o caso do PEGIDA (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), movimento criado em 2014 em Dresden e abertamente islamofóbico e da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido criado em Berlim em 2013, que representa a face institucional da extrema-direita e possui grande eleitorado na Saxônia.
Também surgiram polêmicas na produção bibliográfica em relação a Dresden. Enquanto muitos pontos ainda careciam de esclarecimento, caso do número de mortos e da justificativa dos ataques, algumas obras foram lançadas com narrativas completamente enviesadas. Foi o caso da produção de David Irving, conhecido negacionista inglês que possui circulação em grupos neonazistas. Irving, que era referência no assunto com seu livro The Destruction of Dresden (1964), optou por enveredar no negacionismo do Holocausto utilizando Dresden como instrumento.
Segundo as historiadoras Denise Rollemberg e Janaína Cordeiro (2021), o processo de silenciamento, principalmente em relação ao Holocausto ou a traumas semelhantes, favorece o avanço da relativização e do consequente negacionismo, no sentido claro da palavra. Tal percurso é semelhante com o que acontece com Dresden, onde o passado traumático torna-se um instrumento de relativização na seara do negacionismo histórico.
Os grupos extremistas contemporâneos da Saxônia adotaram os ataques a Dresden como base narrativa e fonte de legitimação do negacionismo. Popularizou-se entre os negacionistas o Bombenholocaust, o Holocausto das bombas, discurso que relativiza o massacre dos judeus alegando um “verdadeiro genocídio executado pelos aliados”. Após anos de um descaso visível até mesmo nos museus locais da cidade, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier discursou nos eventos relativos aos 75 anos dos bombardeios.
O posicionamento de Steinmeier buscou o equilíbrio entre o reconhecimento das atrocidades nazistas e a lembrança da destruição perpetrada pelas tropas aliadas. Abordar este tema em Dresden, nos 75 anos do bombardeio, não era simples formalidade. O presidente, geralmente responsável pelas cerimônias internas, tem ciência da responsabilidade que paira sobre os bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Além disso, ele sabe que os nazistas não foram os únicos a utilizarem bombardeios como instrumento de terror e que o passado traumático de Dresden está em disputa.
BIBLIOGRAFIA
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