Negacionismo, como lidar? O silêncio como armadilha
Nos últimos dias, diversas entidades, coletivos e indivíduos se organizaram para rememorar criticamente o aniversário dos 60 anos do golpe que deu início a uma longa ditadura no Brasil. Esse é um repertório comum a grupos que há décadas se organizam em torno dos debates sobre as políticas de memória, a justiça de transição e temas afins. Longe de ser uma nova estratégia, são eventos que fazem parte de um "calendário" que busca demarcar posição na cultura democrática brasileira. Contraposto a essa movimentação, a escolha do governo Lula foi a opção pelo silêncio, contrariando demandas e esforços de setores do próprio governo, em mais um episódio de uma problemática lógica de conciliação. Mas quais os impactos dessa escolha?
É importante, como ponto de partida, situar que este debate passa por uma perspectiva historiográfica e da delimitação da própria História do Tempo Presente, mas não se encerra nela. Isto porque é um esforço coletivo, que envolve a sociedade de uma maneira ampla, que é levada (ou provocada) a discutir a presença e atualidade de temas sensíveis de seu passado recente, as violações dos direitos humanos, assim como os espólios da última ditadura vigente. Se situarmos a problemática do passado autoritário recente em torno da relação entre a memória, a história, as demandas sociais, assim como os debates que a historiografia busca suscitar, essas disputas podem ser sintetizadas como um esforço e um alerta, para que esta série de abusos e violências não mais aconteçam. E evitar que estes fenômenos renasçam significa, além de demandar questões que operam no campo da reparação e da justiça, promover um esforço cotidiano para desarmar as armadilhas negacionistas articuladas em ambições antidemocráticas.
Por isso, é necessário considerar um alerta cotidiano contra o negacionismo. Como lidar com este fenômeno? Se pensarmos o negacionismo como um objeto historicamente situado, é possível citar ao menos três estratégias de combate ou contraposição ao fenômeno. A primeira possibilidade seria debater com negacionistas, buscando escancarar as falácias e fragilidades de seus argumentos, suas ambições e articulações. Mas, desde que o negacionismo se instaurou como um fenômeno cotidiano, essa estratégia é plenamente arriscada. Arriscada, pois em última instância auxilia a dar legitimidade aos negacionistas, por meio da interlocução que lhes é concedida. O debate, mesmo que ambicionado em desmontar as falácias negacionistas, acaba por reservar um espaço que é habilmente utilizado por eles. No Brasil, por exemplo, durante os anos 1980, negacionistas do holocausto ocuparam ambientes estratégicos para, em torno de debates midiáticos, encontrar um espaço para difusão de seus livros e argumentos, auxiliando a construir um mercado editorial negacionista, assim como uma vertente negacionista politicamente organizada.
Uma segunda estratégia seria desmontar os argumentos negacionistas, ou mesmo desarmar as suas estruturas. Essa premissa parece promissora, mas é necessário considerar que ela tem limites, não por causa da estratégia em si, mas devido ao ecossistema de desinformação que os negacionistas utilizam, com financiamento e rentabilidades engajadas na forma como algoritmos (e as big techs) recompensam discursos que movimentam engajamentos a partir de paixões, intolerâncias e do ódio na política. Ou seja, é importante considerar que é muito difícil pregar para aqueles convertidos ao discurso e à prática negacionista, pois este discurso, sobretudo em meio à digitalização da vida, adquire contornos de verdade, de comunidade, assim como de radicalização como um processo de formação de identidades políticas. É um universo de difícil penetração. Por isso, por mais produtivo e desafiador que seja desmontar, didaticamente, o discurso negacionista, há limites para esta operação crítica.
Uma última possibilidade proposta é pensar a construção de uma agenda e uma esfera contranegacionista e antinegacionista, que lida com percepções caras à divulgação científica e à História Pública, como pensar processos de disseminação de informação qualificada, a construção de saberes dialogados, a interface com o público, assim como a delimitação de públicos alvos. Ou seja, mapear e sistematizar as possibilidades para entender onde e quando é possível falar sobre negacionismos (particularmente, aqueles articulados à extrema direita) para um público que tende a olhar criticamente este fenômeno, na construção de um público articulado contra o negacionismo, em um compromisso com uma história crítica e democraticamente engajada. Além de projetos e iniciativas como o próprio História da Ditadura, este esforço precisa ser reconhecido e encampado por agentes e instituições do poder público, dado o seu grau de comprometimento com a condição democrática brasileira. Por isso, o silenciamento é um problema muito grande.
Ao escolher silenciar sobre 1964, o governo Lula perde uma oportunidade para investir em uma agenda propositiva, comemorativa, mas também reativa, contra os espaços de desinformação e articulação do negacionismo da ditadura civil-militar brasileira, que são tão caros para a formação de uma identidade política coletiva que costumamos chamar de bolsonarismo, mas que tem raízes históricas mais profundas assim como articulações transnacionais. Este silêncio, inclusive, foge ao padrão de qualidade que o governo atual desenvolve nos trabalhos de prevenção à disseminação de conteúdo extremista, assim como à articulação que busca compreender a rede de agentes envolvidos nos eventos de 8 de janeiro de 2023.
E quais os resultados desta escolha? No mínimo, é o aprofundamento de uma lógica de conciliação que, sistematicamente, se esquiva de discutir problemas profundos e urgentes da constituição da nacionalidade, da identidade nacional e dos padrões autoritários tão fortemente presentes na sociedade brasileira e em seu cotidiano. Por um lado, é possível dizer que o campo progressista engajado nestas pautas não vence eleições majoritárias, e a articulação que culminou na eleição de Lula foi pensada em uma amplitude de variadas cores e sabores políticos, o que é verdade. Mas é preciso atentar que, a despeito destas articulações diversificadas, a candidatura de Lula se construiu como de fato foi, isto é, uma via democrática contra um candidato de extrema direita com articulações golpistas. E, por isso, tratar criticamente o passado autoritário recente deve ser um compromisso cotidiano com a democracia brasileira e àqueles que votaram em Lula e Alckmin, sob risco de ver o debate público ser permeado ou monopolizado pelos negacionistas que se articularam fortemente ao longo da experiência do bolsonarismo no poder. O silêncio, portanto, é uma armadilha.
Como citar este artigo:
CALDEIRA NETO, Odilon. Negacionismo, como lidar? O silêncio como armadilha. História da Ditadura, 4 abr. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/negacionismo-como-lidar-o-silencio-como-armadilha. Acesso em: [inserir data].
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