Nota circunstanciada sobre o destino da CEMDP no apagar das luzes do governo Bolsonaro
Atualizado: 19 de dez. de 2022
Aviso: esta nota foi encaminhada para instâncias nacionais e internacionais como parte de um conjunto de iniciativas que tem por finalidade dar publicidade e incentivar medidas cabíveis para que a ameaça de encerramento da CEMDP não se concretize.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída pela Lei n. 9.140 de 1995, vem sofrendo grandes ataques desde o ano de 2019, quando se operou a alteração da composição de seu colegiado, substituindo figuras de relevantes trabalhos em matéria de direitos humanos por entusiastas da ditadura. Em junho de 2022, foi anunciada a tentativa de encerramento da Comissão por seu atual presidente, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, com base na apresentação de um relatório final que, segundo a argumentação disposta no documento, daria conta de demonstrar que se findaram os trabalhos de apreciação de requerimentos de reconhecimento de mortos e desaparecidos políticos. O referido relatório, no entanto, não apresenta nenhum argumento que resulte na conclusão de que estão esgotadas as possibilidades de continuidade de buscas e análises em prol da identificação de pessoas desaparecidas, contrariando, portanto, o objetivo designado por lei à Comissão. Após a mobilização de algumas instâncias que se posicionaram contra o encerramento, a Comissão cancelou a reunião. Em dezembro, o atual presidente convocou novamente reunião extraordinária com a mesma finalidade.
O presente texto tem o objetivo circunstanciar como a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, único instrumento na estrutura do Estado brasileiro direcionado à busca de pessoas desaparecidas durante a ditadura, foi impactada por uma sucessão de fatos que levaram ao atual contexto de ameaça de encerramento de suas atividades. Além disso, a Nota visa levar essa apresentação dos fatos e pedir providências a instâncias institucionais e outros organismos no sentido de barrar a ameaça de encerramento.
I. A CEMDP
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) foi instituída no ano de 1995 a partir da Lei n. 9.140 com três objetivos, conforme o art. 4º dessa lei:
proceder ao reconhecimento de pessoas (inciso I);
envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados (inciso II);
emitir parecer circunstanciado relativos aos requerimentos de indenização que venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei (inciso III).
Ao longo dos seus 27 anos de existência, a Comissão procedeu ao reconhecimento de 364 pessoas como mortas ou desaparecidas políticas, acompanhou buscas em áreas como Foz do Iguaçu, Rio de Janeiro e Araguaia, e atuou na retificação dos assentos de óbito com base na Resolução 2 de 29 de novembro de 2017, em cumprimento à Recomendação n. 7 constante no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, CNV (2014).
Grande parte das medidas foi implementada ao longo da gestão da Procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, que presidiu a Comissão entre 2014 e 2019, até que em agosto de 2019 o colegiado da CEMDP sofreu uma sensível alteração. A procuradora foi substituída pelo agora presidente do órgão, Marco Vinicius Pereira de Carvalho (assessor da então ministra Damares Alves e filiado ao PSL). Na ocasião, a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha – escolhida para o cargo por sua notória experiência na defesa de pessoas presas por motivos políticos, o que a levou também a ser comissionada na CNV entre 2012 e 2014 – também foi substituída por Weslei Antônio Maretti (coronel reformado do Exército, elogioso à ditadura e a Carlos Alberto Brilhante Ustra). Ainda, o deputado Paulo Roberto Severo Pimenta, que ocupava a cadeira de representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, foi substituído por Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro (deputado federal pelo PSL e que também proferiu elogios públicos à ditadura). Finalmente, trocou-se o representante do Ministério da Defesa: João Batista Fagundes (coronel da reserva), que assumiu o posto no ano de 2003, cedeu lugar a Vital Lima dos Santos (equivocadamente apresentado como representante das Forças Armadas no relatório final apresentado pelo presidente da CEMDP – a Comissão conta com uma cadeira em seu colegiado para representação do Ministério da Defesa e não das FFAA). Toda a mudança no corpo de comissionados desenrolou-se em um cenário de manifestações públicas contra os trabalhos desempenhados pela Comissão, entre as quais se destacaram as afirmações do presidente da República a respeito do caso de desaparecimento de Fernando Augusto Santa Cruz e o procedimento de retificação de seu assento de óbito.
Desses novos integrantes, dois foram recentemente substituídos: em 5 de dezembro 2022, em data próxima àquela da anunciada reunião extraordinária agendada para acontecer no próximo dia 14, Maretti foi substituído por Paulo Fernando Melo da Costa (Republicanos, conhecido pela alcunha Paulo Pró-Vida por sua militância contra o direito ao aborto e apoiado por Damares Alves) e Vital Lima dos Santos por Jorge Luiz Mendes Assis (representando do Ministério da Defesa).
Depois da primeira leva de mudanças na composição da Comissão, foram feitas mudanças também na estrutura institucional ligada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, transformando a Coordenação Geral de Mortos e Desaparecidos Políticos (CGMDP), responsável pelo apoio institucional e administrativo à CEMDP, na Coordenação de Desaparecidos, de modo a esvaziar a pauta de memória e verdade, bem como as atividades de busca e identificação a serem executadas pela Comissão, e mesmo o enfrentamento pelo Estado dos desaparecimentos forçados. A Comissão também mudou seu escopo de atuação, ao I) decidir pela interrupção da atuação da CEMDP na questão dos assentos de óbito, II) decidir pela suspensão de buscas de corpos de pessoas desaparecidas, III) decidir pela reversão da decisão de indenizar a família de Albertino José de Farias e, finalmente, IV) anunciar a intenção de encerramento das atividades da Comissão, inicialmente ao corpo de membros por meio de e-mail enviado em junho de 2022, com o chamado para a reunião que seria realizada no dia 28 do mesmo mês e ano com o objetivo de analisar o Relatório Final dos trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e votar por sua aprovação. Posteriormente, em dezembro, uma nova reunião foi convocada com o mesmo objetivo.
O objetivo do referido relatório, nele explicitado, é o de
sumarizar e descrever as atividades desenvolvidas pela CEMDP desde sua instituição, em atendimento ao art. 13 de sua lei de regência, que diz: ‘Finda a apreciação dos requerimentos, a Comissão Especial elaborará relatório circunstanciado, que encaminhará, para publicação, ao Presidente da República, e encerrará seus trabalhos’.
O relatório argumenta que a Comissão teria cumprido seus objetivos legais relativos (I) ao reconhecimento das vítimas, (II) ao esforço para a localização dos corpos e (III) à emissão de parecer sobre os pedidos de indenização. A seguir, apresentaremos algumas das razões pelas quais esses argumentos não procedem.
Reconhecimento das vítimas
O reconhecimento sobre as vítimas é uma das atribuições da CEMDP, como já foi mencionado. O discurso veiculado pela atual composição da Comissão argumenta que não há novos reconhecimentos a serem feitos em razão do esgotamento do prazo legal disposto para tal finalidade. Abaixo, contextualiza-se como se dá o processo de reconhecimento e a maneira limitada como o argumento sobre o esgotamento não é suficiente para embasar o encerramento do órgão.
O prazo para a apresentação de requerimento com solicitação de reconhecimento de morte ou desaparecimento por parte das famílias, previsto no art. 10 § 1º, da Lei 9.140/1995, foi modificado duas vezes, por alterações promovidas nessa disposição legal pela Lei n. 10.539 em 2002 e pela Lei n. 10.875 de 2004. Segundo consta no Relatório Final de atividades apresentado pela Procuradora Eugênia Gonzaga, quando de sua exoneração da presidência da CEMDP, em 2018, em Reunião Ordinária do colegiado que compunha a CEMDP na ocasião, votou-se pela admissão da possibilidade de proceder novos reconhecimentos e pagamentos de indenização. Em prol da tese, argumentou-se que o direito das famílias de requererem o reconhecimento das mortes e desaparecimentos e o pagamento de indenização é imprescritível a partir da interpretação possibilitada pela Lei n. 12.528, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade em 2011. Apesar de a decisão ter tido parecer favorável por parte da Advocacia-Geral da União, quando apreciado o pedido de indenização referente ao caso Albertino José de Farias, após alteração do colegiado, o caso foi novamente matéria de análise em junho de 2020, quando o requerimento da família de Albertino foi indeferido e a indenização, portanto, não foi paga.
Ainda sobre o caso Albertino, em reunião ocorrida no mês de setembro de 2021 promovida pelo Grupo de Trabalho Memória e Verdade do Ministério Público Federal, o presidente da CEMDP relatou que o entendimento atual adotado pela Comissão é contrário ao da gestão anterior, ou seja, a Comissão hoje compreende que o prazo legal se esgotou e, com isso, a formulação de pedidos para novos reconhecimentos e indenizações encontra-se impossibilitada.
O relatório final apresentado como levantamento geral dos trabalhos da Comissão no marco da tentativa de seu encerramento afirma que a CEMDP apreciou 479 requerimentos, sendo 136 relativos aos desaparecidos reconhecidos no Anexo I da lei e outros 228 casos com reconhecimentos realizados posteriormente pela Comissão mediante apresentação de requerimento por parte das famílias. Desse montante de 364 casos, em 359 foi paga a indenização: alguns casos não tiveram indenização por recusa da família ou em razão desta não ter sido localizada e, em três casos, “o pagamento não foi realizado em virtude dos (sic) requerimentos terem sido realizados de forma intempestiva, contrariando os prazos dispostos nas leis” – entre esses três, está o caso de Albertino José de Farias.
Esforços para localizar os corpos
No que compete ao objetivo de envidar esforços para a busca dos corpos, é necessário primeiramente apontar que a Comissão Especial é atualmente o único órgão estatal com atribuição expressa para realizar tal atividade, que é responsabilidade do Estado brasileiro frente a uma violação grave de direitos humanos. Esta obrigação do Estado brasileiro é inclusive afirmada em sentenças proferidas em âmbito nacional – no caso Araguaia, que tramitou na 1ª Vara Federal em Brasília – e internacional – Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, culminando na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro em 2010. Soma-se a isso o fato de, em 2019, o Grupo de Trabalho Araguaia – do qual fazia parte os ministérios da Justiça, Defesa e dos Direitos Humanos, por meio da mesma coordenação dedicada a prestar apoio à CEMDP – ter sido extinto, como uma consequência do Decreto n. 9.759.
O Relatório apresentado para justificar o encerramento da Comissão não expõe nenhuma justificativa para se concluir que se esgotaram as possibilidades de buscas. No item intitulado Esforços de localização dos corpos de pessoas desaparecidas registra-se as “diferentes frentes e abordagens de trabalho”: a Equipe de Identificação de Mortos e Desaparecidos Políticos (EIMDP); buscas relativas à Guerrilha do Araguaia; análise dos remanescentes relativos ao Cemitério Dom Bosco em Perus (SP), tratativas correspondentes à Casa da Morte, ao Cemitério de Ricardo de Albuquerque (RJ), à Ilha Grande e ao caso de Foz do Iguaçu (PR). Em todos os itens apresentados, no entanto, o relatório limita-se a descrever o histórico das atividades realizadas e exibir os valores empregados sendo que, em nenhum momento, apresenta qualquer justificativa que sinalize o esgotamento de busca ou identificação de remanescentes ósseos de pessoas desaparecidas. Pelo contrário, trata-se de um conjunto de frentes que tiveram suas ações interrompidas ou proteladas pela gestão atual.
Em Representação dirigida à Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão do Distrito Federal, dra. Luciana Loureiro Oliveira, no dia 17 de junho de 2022, a Comissão Arns pronunciou-se contra a extinção da CEMDP segundo a tese de que:
Ainda há em curso a necessidade a identificação de ossadas em estudo e na guarda direta ou indireta da Comissão, em confronto com o DNA de familiares. Apenas para exemplo, a UNIFESP tem a seu cargo o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense – CAAF, unidade encarregada judicialmente do exame das ossadas encontradas na vala de Perus, [...]. Encerrar os trabalhos por motivo ideológico, poderá acarretar aos responsáveis a consequência da improbidade administrativa
O documento cita, ainda, a função da CEMDP em atender ao disposto no Relatório Final apresentado pela CNV em 2014 que em sua 27ª recomendação versa sobre o prosseguimento das atividades de localização, identificação e entrega às famílias de pessoas desaparecidas, os remanescentes ósseos que possibilitem sepultamento digno.
Apontamentos finais e a necessidade de iniciativas
Desde o anúncio da reunião que legitimaria o encerramento da Comissão, chamada inicialmente para o dia 28 de junho e atualmente suspensa, diversos órgãos mobilizaram-se para denunciar a tentativa e apresentar argumentos que justificam a continuidade da CEMDP. Como a notícia veiculada pelo jornal Estadão, de autoria de Marcelo Godoy, no dia 13 de junho de 2022, Bolsonaro quer acabar com a Comissão de Mortos e Desaparecidos da ditadura mesmo sem achar corpos, ou a manifestação da Associação Brasileira de Imprensa frente ao caso em 20 de junho do corrente ano. No dia 23 de junho, a Folha de São Paulo publicou uma espécie de manifesto intitulado Em defesa do direito à memória e à verdade, assinado por reconhecidas personalidades políticas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:
A extinção da CEMDP está anunciada, mesmo que ainda esteja longe de concluir sua missão legal. Há numerosos casos pendentes, que demandam providências, como reconhecimento de vítimas, busca e localização de corpos e registro de óbitos que ainda não foram objeto de requerimentos individuais, como ocorre com os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério Ricardo Albuquerque.
O Ministério Público Federal enviara uma recomendação para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão com a afirmativa de que inexistia razão para o encerramento dos trabalhos da Comissão. A ação pode ter inibido a continuidade do projeto de encerramento, mas não evitou nova tentativa, iniciada recentemente.
Diante da nova ameaça de encerramento dos trabalhos, em dezembro de 2022, a recém formada Coalizão Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia – que representa 150 entidades e movimentos sociais – lançou uma nota de repúdio solicitando ação imediata dos órgãos competentes, além de ter lançado um abaixo-assinado. A equipe de transição destinada a cuidar dos preparativos para o início do novo governo recém-eleito afirmou que a busca por pessoas desaparecidas em ocasião da ditadura deve continuar no próximo mandato presidencial, afinal se trata de uma política de Estado.
Frente à situação que se apresenta, como profissionais que estivemos ligados à estrutura estatal em órgãos destinados a promover políticas de memória, verdade e reparação, manifestamos nossa preocupação com a atual situação. Recordamos que a CEMDP, além de único aparato institucional dedicado à busca e identificação de pessoas desaparecidas pela ditadura, também é um organismo que porta um acervo documental extremamente relevante para explicar o histórico de violência estatal brasileira e um dos poucos instrumentos que pode dar continuidade ao conjunto de recomendações deixado pela Comissão Nacional da Verdade e outras comissões estaduais, municipais e setoriais. Estamos cientes de que a decisão do colegiado da CEMDP – atualmente ocupada por pessoas historicamente contrárias às políticas ligadas aos direitos humanos – afeta irreparavelmente uma política de Estado conquistada com muitos esforços. Assim, solicitamos a ação contundente dos órgãos competentes na tentativa de barrar tal ameaça.
Paula Franco
Foi Coordenadora de Direito à Memória e à Verdade em órgão do Ministério dos Direitos Humanos que apoiava à CEMDP e pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade
Caio Cateb
Foi Coordenador de Buscas e Identificação de Mortos e Desaparecidos Políticos em órgão do Ministério dos Direitos Humanos que apoiava à CEMDP e pesquisador da Comissão Nacional da Verdade.
Carla Osmo
Professora na Unifesp, foi pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade.
Pedro Rolo Benetti
Foi Coordenador de Buscas e Identificação de Mortos e Desaparecidos Políticos em órgão do Ministério dos Direitos Humanos que apoiava à CEMDP e pesquisador da Comissão Nacional da Verdade.
Todas as pessoas que assinam a presente nota estiveram envolvidas com pesquisas sobre as alterações nas Comissões de Anistia e Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Dessas investigações resultaram dois textos já publicados: BENETTI, P. et al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, Vol.11, e48060, 2020. DOI: 10.12957/rmi.2020.48060|e-ISSN: 2177-7314. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48060/35880. Último acesso em dezembro de 2022 e CATEB, C. et. al. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro. In: TELES, E. e QUINALHA, R. Espectros da Ditadura. Da Comissão da Verdade ao Bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
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