Notas futebolísticas do golpe (ou Quando a ditadura paralisou um Rio-São Paulo)
“Se começasse a revolução e nos atacassem com bombas, responderíamos com bolas.” Essa frase teria sido dita por Fleitas Solich, treinador do Fluminense no início de 1964, em meio à crise política que culminaria em um golpe de Estado no início no dia 1º de abril. A história do futebol nos primeiros dias após o golpe ainda está por ser feita, mas não há dúvida de que a modalidade – e o esporte de forma geral – foi profundamente afetada pela ruptura institucional ocorrida em 1964.
Os impactos foram sentidos quase que de imediato. No dia 1º de abril de 1964, enquanto a Folha de S. Paulo noticiava o Golpe Militar em curso, uma nota no canto da página chamava a atenção por parecer completamente deslocada da realidade: “Pacaembu terá jogo!”. Apesar dos trechos ilegíveis, é possível ler: “Torneio Rio-São Paulo”, em referência a uma das maiores competições do futebol nacional dos anos 1960, protagonizada pelos clubes do eixo Rio-São Paulo.
Percorrendo as páginas da mesma edição, encontramos a informação completa sobre a competição: “Rio-SP tem 2 jogos hoje com 4 precisando vencer”. A matéria dava conta de que, na noite do dia 1º de abril daquele ano, haveria um jogo entre São Paulo e Corinthians (no Pacaembu) e Fluminense e Bangu (no Maracanã), ambos válidos pelo Torneio Rio-São Paulo.
Em meio à crise política e social causada pelo Golpe Militar, a informação de que o maior torneio de futebol do país não seria paralisado soava um tanto estranha, principalmente porque um dos jogos ocorreria no Rio de Janeiro, um dos palcos do golpe. Porém, verificando as edições seguintes, descobrimos que o Golpe Militar afetou diretamente a competição.
Os jogos que estavam previstos para serem realizados no dia 1º de abril foram suspensos. Aparentemente, a suspensão foi uma determinação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que decidiu pelo adiamento das competições esportivas. Para além do futebol, foram suspensas as competições de basquete e natação. Aqui vale lembrar que, na época, o presidente da CBD era João Havelange, uma figura controversa, que mesmo antes do golpe já buscava se aproximar de uma elite política conservadora, e, durante a ditadura, esteve bem próximo do regime.
Aquela rodada de 1º de abril fora suspensa, mas a competição retornou no quarto dia do mesmo mês, com jogos no estado de São Paulo. No Pacaembu, o Palmeiras recebeu o Vasco da Gama: placar de 3 a 2 para o time carioca. No dia seguinte, no mesmo estádio, o Santos venceu o Bangu por 2 a 1. No mesmo dia, o general Castelo Branco dizia à imprensa: “Serão punidos todos os traidores e responsáveis pela comunização do país!”.
A situação do Rio de Janeiro era mais tensa e crítica do que em São Paulo, daí a dificuldade em se realizar partidas de futebol na capital fluminense. Os jogos só voltariam a ocorrer em 11 de abril, no Maracanã, quando o Botafogo venceu o Flamengo por 2 a 1.
Um dos jogos da rodada de 1º de abril foi realizado no dia 9, com uma goleada do Corinthians sobre o São Paulo – 3 a 0 para equipe corinthiana. No mesmo dia, o primeiro Ato Institucional era assinado, determinando a suspensão, por dez anos, dos direitos políticos de todos os cidadãos que se opusessem ao novo governo. O outro jogo daquela rodada, entre Fluminense e Bangu, só seria realizado no dia 5 de maio, com uma vitória do Bangu por 2 a 1.
O torneio Rio-São Paulo de 1964 é lembrado por dois motivos: a competição só conheceu o seu campeão em janeiro de 1965 e aquela edição contaria com dois campeões: o Botafogo e o Santos. O atraso em se determinar os campeões se devia à dificuldade enfrentada pelos dois clubes para encontrar uma data na qual se realizar o desempate. Como ambos os clubes estavam excursionando no período, os dois foram considerados campeões daquela edição.
Sob o regime militar, o futebol ainda sofreria inúmeras interferências nos anos seguintes: em 1965, a CBD ratificou o decreto que proibia as mulheres de praticar futebol e outras modalidades; para a Copa do Mundo de 1966, o que se viu foi uma militarização da estrutura futebolística, desde a organização com dirigentes alinhados ao regime, até a comissão técnica da Seleção Brasileira, como é possível observar nos preparativos do selecionado para aquela a Copa; Em 1970, com a instrumentalização da vitória da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970, a conquista do tricampeonato foi amplamente usada para promover o regime, aproveitando o embalado do chamado “milagre econômico”; também foi durante o período que o regime militar financiou a construção de inúmeros estádios pelo país; além o regime ajudou a criar uma competição nacional que buscava abarcar o maior número possível de equipes, de preferência, de todas as regiões do país. Entretanto, como vimos, a história e a memória do futebol – e mesmo de outras modalidades – nos primeiros dias após o golpe está por ser feita. Ainda há muito o que pesquisar sobre os primeiros momentos do futebol sob o regime militar.
Como citar este artigo:
FIGOLS, Victor. Notas futebolísticas do golpe (ou Quando a ditadura paralisou um Rio-São Paulo). História da Ditadura, 13 mai. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/notas-futebolisticas-do-golpe-ou-quando-a-ditadura-paralisou-um-rio-sao-paulo. Acesso em: [inserir data].
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