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No tempo em que Aparecida abençoava a Pátria armada

Foto do escritor: Mathews MathiasMathews Mathias

“Para ser pátria amada não pode ser pátria armada”. Com essas palavras, o arcebispo de Aparecida, dom Orlando Brandes, mandou um recado ao presidente Jair Bolsonaro e mereceu os aplausos dos fiéis presentes no Santuário Nacional na manhã do último dia 12 de outubro e de boa parte da oposição ao governo nas redes sociais. Na mesma homilia, o arcebispo enfatizou que “Pátria amada não é transformar crianças inocentes em crianças fuzil”, uma referência ao recente episódio em que Bolsonaro recebeu uma criança de seis anos que empunhava uma arma de brinquedo. Para dom Brandes, “as crianças precisam de outras armas, da oração, da obediência, da convivência com seus irmãos”. O religioso também fez uma alerta sobre o discurso de ódio e as notícias falsas: “(...) para ser pátria amada seja uma pátria sem ódio. (...) uma república sem mentiras e sem fake news, sem corrupção.” No final do sermão, saudou a ciência e as vacinas. Recebeu mais aplausos e talvez o selo da tal frente ampla contra Bolsonaro.


Bolsonaro posa para fotos com criança fardada e com arma de brinquedo na mão, em evento de BH (Reprodução: TV Globo)

Aliás, não é de hoje que o arcebispo é saudado como uma voz progressista na Igreja. Em 2019, também no dia da Padroeira, dom Brandes criticou a direita, que chamou de “violenta e injusta” e reclamou do “dragão do tradicionalismo” que estava “fuzilando o papa, o Sínodo [da Amazônia] e o Concílio Vaticano II”. Porém, na tarde daquele mesmo dia, na presença de Bolsonaro, o arcebispo recuou da crítica e moldou sua homilia aos ouvidos da presença ilustre ao falar em “dragões das ideologias, que são interesses pessoais tanto da direita, quanto da esquerda.” Curiosamente, no verão passado, o mesmo dom Brandes, que hoje é saudado pelas oposições ao governo Bolsonaro, lamentou a morte da Operação Lava Jato e asseverou que a impunidade estava voltando. Diante dos bancos vazios da Basílica, em razão das restrições da pandemia em 2020, o arcebispo afirmou que “deveríamos salvar muito a Lava Lato porque ali então nós estamos vencendo o dragão da corrupção, que não deve voltar. Mesmo com as denúncias da Vaza Jato em 2019 e com as evidências de que os procuradores de Curitiba agiram fora da lei, o arcebispo elogiou a operação e pontuou que “não somos dignos de sermos escravizados pela corrupção”.


Em 2018, quando o Movimento Mineiro de Fé e Política organizou uma romaria ao Santuário pela liberdade do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e pela “paz democrática”, dom Orlando Brandes assinou uma nota em que afirmava que a Basílica “é um espaço sagrado que acolhe todos os filhos e filhas de Aparecida, sem distinção”. No mesmo documento, o Santuário era apresentado como “uma Casa que se coloca contra toda e qualquer utilização do seu espaço para fins políticos ou ideológicos”. Em outras palavras, o Santuário quis dizer que a Basílica não é espaço para fazer política. Ainda assim, a romaria ocorreu e a Basílica foi tomada por devotos vestidos com camisas vermelhas e enrolados em bandeiras do Partido dos Trabalhadores (PT), que entoaram o coro de “Lula livre” e gritaram “Fora Temer”.


Na celebração da missa, durante a leitura das preces, o padre João Batista de Almeida pediu para que “Nossa Senhora Aparecida abençoe [Lula] e lhe dê muitas forças para que se faça a verdadeira justiça, para que o quanto antes ele possa estar entre nós, construindo com o nosso povo um projeto de país que semeie a justiça e a fraternidade”. Em resposta, os devotos disseram “Senhor, escutai a nossa prece” e aplaudiram, choraram e se manifestaram com palavras de apoio ao ex-presidente.


Em ano eleitoral e diante da indefinição da candidatura de Lula à Presidência da República, a romaria gerou muita repercussão e suscitou debates sobre os limites entre o político e o religioso no Santuário. Muitos devotos contrários ao PT e ao ex-presidente cobraram o repúdio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a renúncia do reitor do Santuário. Diante das críticas, o Santuário Nacional procurou contornar a situação com uma “nota de reparação”, assinada pelo padre João Batista de Almeida, por dom Orlando Brandes e pelo padre José Inácio de Medeiros, superior provincial dos Missionários Redentoristas da Província de São Paulo. No documento, o padre João Batista de Almeida manifestou pessoalmente o seu pesar pela forma como conduziu a missa pela liberdade de Lula e reafirmou que a Igreja não é lugar de tomar posição político-partidária.


A nota pode ter servido para diminuir os pedidos de excomunhão contra o padre, mas não silenciou a questão de fundo: o uso político do Santuário. No dia 10 de abril de 2016, por exemplo, o Movimento Legislação e Vida esteve na Basílica, embora em menor número que a romaria petista, para defender “uma Igreja livre do PT e dos comunistas”. Da mesma maneira que a romaria por Lula livre, os devotos de direita hastearam bandeiras e entoaram palavras de ordem.


Aparecida, política e ditadura

Para pensar a relação entre o Santuário e a política, é preciso ir além das disputas entre esquerdas e direitas no atual cenário político brasileiro. A rigor, não é possível refletir sobre a história de Nossa Senhora Aparecida sem observar os laços políticos que o Santuário foi capaz de firmar ao longo dos trezentos anos de devoção à santa.


Santuário Nacional de Aparecida, localizado em Aparecida, SP - Brasil. Autor: Valter Campanato. Agência Brasil. Wikimedia Commons.

Nem sempre a Padroeira do Brasil foi vestida com as cores da democracia. Frequentemente, se silencia sobre as complexas relações que o Santuário Nacional manteve com a ditadura civil-militar, por exemplo. Mas é preciso recordar que o golpe de 1964 contou com o apoio ativo de boa parte dos padres redentoristas, responsáveis pela administração do Santuário. Após o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, um dos padres que escrevia nas Ânuas de Aparecida, espécie de diário dos principais acontecimentos do Santuário e do Brasil elaborado pelos redentoristas, apresentou a síntese do evento no qual se “ajuntou a fina flor da canalha esquerdista do Brasil”: “demagogia, ataques à Constituição, ameaças!” (ALVAREZ, 2017, p. 210).


Menos de um mês depois do golpe, os padres do Santuário buscaram apoio do presidente recém-empossado Humberto Castelo Branco, que foi convidado para participar de uma missa em ação de graças pela “vitória da democracia” e de uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade que tomou as ruas de Aparecida em maio de 1964. Em 1965, o Conselho Administrativo do Santuário recebeu um pedido de Castelo Branco para que a imagem da Padroeira saísse da Basílica em procissão por todo o Brasil. Os redentoristas receberam o pedido com entusiasmo, pois acreditavam que a “visita da imagem de Nossa Senhora Aparecida ao Brasil poderia unir ainda mais o povo católico brasileiro” (ALVAREZ, 2017, p.214), tornando a Padroeira mais conhecida e fazendo com que o comunismo perdesse terreno. Entre 1965 e 1966, com o apoio financeiro do Tesouro Nacional, a imagem de Aparecida percorreu todo o Brasil, passando por Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Mato Grosso, Pará, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba e Espírito Santo.


Em 1967, ano em que a Padroeira comemorou o seu Jubileu de duzentos e cinquenta anos, fiéis do Brasil inteiro viajaram até Aparecida para participar da cerimônia de entrega da Rosa de Ouro, enviada pelo Papa Paulo VI à Basílica. O então presidente Artur da Costa e Silva e vários ministros militares também compareceram à celebração e foram ovacionados pelos romeiros e pelo clero de Aparecida. Na cerimônia, o cardeal Amleto Cicognani, em nome de Paulo VI, expressou sua esperança no governo Costa e Silva e previu um futuro magnífico para o Brasil. Em suas palavras, a Rosa de Ouro entregue ao Santuário representava o fortalecimento da “liberdade” e da “religião”, as “duas colunas da nação brasileira” e “fontes de energia a que o Brasil devia o seu progresso, a sua prosperidade e o seu bem-estar” (Jornal do Maranhão, p. 1. 20 ago. 1967).


Ao longo dos anos 1970, os laços que uniram o Santuário de Aparecida e o regime desde o golpe civil-militar de 1964 foram abençoados pelos anos do “milagre econômico” – período em que o Brasil alcançou taxas médias de crescimento muito elevadas e sem precedentes, mas também aprofundou as desigualdades. A cidade de Aparecida tornou-se um grande canteiro de obras do Departamento Nacional de Estradas (DNER). A rodovia Presidente Dutra ganhou mais uma via para facilitar a chegada de mais romeiros ao Santuário e a construção da nova Basílica foi acelerada sob o comando do padre Noé Sotillo, que afirmou que na época foi muito criticado pela esquerda clerical por ter feito acordos com a ditadura, embora só estivesse pensando no benefício dos romeiros.


Nesse sentido, a construção da Basílica que hoje abriga a imagem da Padroeira coincidiu com os esforços da ditadura na construção do Brasil grande. O governo Médici (1969-1974) investiu recursos federais na construção da chamada Passarela da Fé, que liga a antiga Basílica à nova, e as obras em Aparecida ganharam status de interesse público. A desapropriação de terras particulares para a construção da passarela só foi possível por meio de decretos do Governo Federal e do consenso construído entre a ditadura e o clero de Aparecida.


Em 1972, a Padroeira ainda abençoou as festas do Sesquicentenário da Independência do Brasil. A “grande euforia desenvolvimentista, as expectativas de ascensão social e o entusiasmado sentimento de construção do futuro, do Brasil potência” também empolgaram milhares de devotos e militares que participaram dos festejos patrióticos do sesquicentenário sob as bênçãos de Aparecida. Portanto, não é exagero dizer que nos tempos em que Aparecida abençoava a “pátria armada” pelos militares, o Santuário viveu os seus anos de ouro, com o aumento significativo do número de romeiros e investimentos públicos do Governo Federal na construção da nova Basílica e da Passarela da Fé. No entanto, ao longo do tempo, na memória da Igreja, alguns laços políticos do Santuário recebem mais deferência do que outros.


Assim, na esteira do mito da resistência construído ao longo dos anos 1970 pela Igreja Católica – e por tantos outros segmentos sociais que haviam apoiado o golpe e a ditadura – e diante das posições progressistas adotadas no presente, o Santuário silenciou sobre seus laços com o poder autoritário no passado. A atuação do clero de Aparecida do Norte e a própria identificação dos militares com a figura da Padroeira do Brasil foram a maior expressão da boa convivência da ditadura com uma parte da Igreja durante os primeiros anos do regime. Mais que isso, a imagem de Aparecida representou a capacidade da ditadura de suscitar apoios e alcançar legitimidade por meio de referências e valores compartilhados por parcelas significativas da sociedade.


De modo geral, a CNBB é reconhecida como uma das instituições mais críticas ao regime civil-militar. No panteão dos grandes heróis da resistência contra a ditadura, figuras como dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns são sempre lembradas como exemplos de coragem por denunciarem a tortura e acolherem presos políticos em suas dioceses. Porém, frequentemente, a maior parte da Igreja silencia sobre o apoio que a CNBB deu ao golpe de 1964 e sobre a benção de dom Arns às tropas golpistas do general Mourão Filho.

É bem verdade que, em 2014, no aniversário de cinquenta anos do golpe civil-militar, a CNBB reconheceu que o apoio da instituição à intervenção foi um “erro histórico” do qual “alguns setores da Igreja Católica” fizeram parte. No entanto, ao mesmo tempo em que assumia o “erro”, o texto assinado pelo então arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis, também fazia questão de lembrar que a Igreja não se omitiu diante da repressão. Assim, no ímpeto de reafirmar seu compromisso com a democracia no presente, a CNBB silenciou sobre a sua responsabilidade institucional no passado, atribuindo a culpa a apenas uma parcela da instituição – uma parcela sem nome e sem rosto.


Na nota de 2014, a manifestação da CNBB louvando a vitória do golpe em 1964 foi contornada como um acidente da história. Os elogios à ação militar, que acudiu os brasileiros e freou a “marcha acelerada do comunismo sem derramamento de sangue”, não mereceram nem uma breve menção – quem dirá um pedido de perdão. A posição honrosa do presente se explicaria pelo processo de “militarização do regime”, que teria feito com que, aos poucos, a Igreja fosse percebendo que “a finalidade do golpe, que foi para preservar o país do comunismo, foi tomando outra direção – tortura, arbitrariedade, repressão”.


Assim, em 2014, mesmo com o reconhecimento tímido das complacências, venceu a memória da resistência. Tal memória soube incensar a imagem de algumas figuras, como dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns, como se eles sintetizassem a luta de toda a Igreja pela dignidade humana desde o início da ditadura. O problema é que, entre estes valentes defensores dos Direitos Humanos, puderam comparecer, confortavelmente, lideranças eclesiásticas que apoiaram o golpe ou foram indiferentes à ditadura – como é o caso do cardeal dom Eugênio Salles. Daí a importância de resgatar as complexas relações que o Santuário de Aparecida manteve com a ditadura civil-militar, como um necessário contraponto a uma memória cristalizada e, por vezes, mitificada que setores da Igreja, sobretudo ligados à Teologia da Libertação, consagram.


Afinal, até hoje, é quase uma blasfêmia afirmar que a longa tradição patriótica que envolve a imagem de Nossa Senhora Aparecida também foi incorporada pelos militares e empolgou amplos segmentos sociais durante a ditadura civil-militar. Na memória devota construída por parte da Igreja e da sociedade sobre a ditadura, se houve alguma participação popular nas homenagens para Aparecida em 1967, por exemplo, certamente o povo tomou parte nas celebrações porque a “ditadura assustadora estava levando mais gente a pedir a ajuda de Deus” (ALVAREZ, 2017, p.215). Se houve alguma participação de militares nos festejos, seguramente, os fardados tentaram manipular a devoção em proveito do regime. No entanto, a realidade que se apresentou em 1967 foi bem diferente: milhares de devotos estiveram na Basílica de Aparecida para celebrar os duzentos e cinquenta anos da Padroeira ao lado dos militares e dedicaram saudações especiais a Costa e Silva que, por sua vez, não era um penetra na festa da santa, mas um convidado de honra do clero do Santuário.

Aparecida além da memória e das lutas política do presente

No presente, a homilia de dom Brandes é bem-vinda e marca uma posição refratária da de grande parte da CNBB ao governo Bolsonaro. Porém, em nome das lutas políticas do presente, não se deve deixar de olhar o passado a partir de uma perspectiva crítica. É preciso considerar a complexidade do social para tentarmos entender não só os meandros da construção da memória da Igreja sobre a ditadura civil-militar, mas também as posições adotadas pelo clero católico no presente. Mais que isso, como propõe a historiadora Jessie Jane Vieira, é importante ultrapassar “as narrativas laudatórias que partem de uma perspectiva muito marcada por certo senso comum a respeito do que foi, ou é, a Teologia da Libertação”, que, embora tenha perdido relevância institucional nas últimas décadas, saiu vitoriosa nas batalhas de memória.

Não se nega a importância política fundamental dos homens e mulheres, leigos e clérigos, que lutaram contra a ditadura e defenderam uma Igreja com opção preferencial pelos pobres. Não se espera que hoje bispos e padres vistam panos de saco e, com cinzas na cabeça, saiam pelas ruas a pedir perdão pelos seus pecados. Também não se propõe, ainda que fosse possível, questionar o papel que a figura de Aparecida possui para a fé de milhões de brasileiros. No entanto, também não se pode deixar que a memória permaneça entronizada em altares adornados por rasas simplificações.


 

Referências


ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2017.

BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias. São Paulo: Ed. Santuário, 1998.

FERNANDES, Rubem César. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! In SACHS, Viola. Brasil & EUA: Religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

VIEIRA, Jessie Jane. Impasses e controvérsias na construção da memória histórica da Igreja Católica no Brasil. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. 2011;3(2):203-216.


Créditos da imagem destacada: Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida, durante missa em 12 de outubro de 2021 (Reprodução, Santuário Nacional de Aparecida)


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