O apoio de SĂŁo Paulo a GetĂșlio Vargas no caminho para a ditadura de 1937
- Thiago Mourelle
- 10 de out. de 2023
- 6 min de leitura
Em São Paulo, o feriado de 9 de julho alimenta até hoje uma memória dos paulistas enquanto legalistas e defensores da Constituição, capazes de lutar pela defesa dos direitos democråticos, contra um governo tirano. Com essas cores de fundo, a chamada Revolução Constitucionalista de 1932 ainda é rememorada.
Porém, um estudo mais profundo, que analisa o tempo histórico através de um olhar que vai para além do discurso oficial, nos revela que as coisas não são tão simples como parecem. E, em alguns casos, os fatos nos mostram não só outros lados da história, mas até que a própria história que nos contaram condiz pouco com o que se passou.

JĂĄ Ă© amplamente conhecido que as motivaçÔes dos paulistas para a revolta de 1932 foram outras, para alĂ©m da defesa da reconstitucionalização do Brasil. Havia revanchismo pela deposição do paulista Washington LuĂs e pelo impedimento do tambĂ©m paulista JĂșlio Prestes, candidato eleito, em assumir o governo â o que se daria em 15 de novembro de 1930. A tomada do poder por GetĂșlio Vargas, semanas antes da posse do vencedor das eleiçÔes, impactou o domĂnio de SĂŁo Paulo na polĂtica nacional. AlĂ©m disso, a nomeação de interventores nĂŁo paulistas e a indicação de novos impostos sobre o cafĂ©, entre outras coisas, acendeu o desejo desse estado de se levantar contra GetĂșlio.
O que pouco se fala Ă© que, quando assumiu a presidĂȘncia em eleição indireta, em julho de 1934, GetĂșlio Vargas jĂĄ contava com o apoio total e irrestrito da maioria da bancada paulista: justamente o Partido Constitucionalista de SĂŁo Paulo. Este foi fundado a partir da luta de 1932 e, menos de dois anos depois, estava de corpo e alma ao lado do presidente. NĂŁo se via sombra da oposição de outrora.
A costura do acordo foi tratada com sigilo, pois havia temor de qual seria a repercussĂŁo na polĂtica interna do estado. Por fim, apĂłs publicizada, a aliança foi resumida na charge do genial Alfredo Storni, no jornal O DiĂĄrio da Noite, mostrando o grande sĂmbolo da uniĂŁo, que foi a entrega de dois importantes ministĂ©rios aos paulistas: o das RelaçÔes Exteriores ficou com Macedo Soares e o da Justiça, com Vicente RĂĄo.

A experiĂȘncia de conviver com um Congresso Nacional atuante foi muito difĂcil para GetĂșlio, acostumado atĂ© entĂŁo com os quase quatro anos em que governou por meio de decretos. No seu diĂĄrio, reclamava nĂŁo apenas da oposição, mas atĂ© dos prĂłprios aliados, em razĂŁo dos favores pedidos em troca de apoio. Sentia saudades da ditadura de 1930-1934 â chamada pelos historiadores de Governo ProvisĂłrio â diante do grande desafio de gerir o paĂs com as dificuldades comuns a qualquer governo democrĂĄtico, conforme mostro em livro lançado recentemente (Mourelle, 2023). O problema central era a necessidade de obter maioria na CĂąmara para conseguir a aprovação de seus projetos de governo, e aĂ Ă© que entra a participação essencial de SĂŁo Paulo.
A numerosa bancada do Partido Constitucionalista, de 22 deputados federais (contra 12 do Partido Republicano Paulista, PRP), se juntou ao Partido Republicano Liberal do Rio Grande do Sul e ao Partido Progressista de Minas Gerais como a espinha dorsal, o tripĂ©, que foi fundamental para o aumento de poder do Executivo em momentos-chave, possibilitando a repressĂŁo nas ruas, o fechamento de sindicatos e a perseguição contra adversĂĄrios polĂticos. Tudo isso jĂĄ durante o governo constitucional.
O jornal O Estado de SĂŁo Paulo, porta-voz dos rebeldes de 1932, tambĂ©m passou a apoiar a polĂtica do presidente, fato que recebeu duras crĂticas do PRP, partido forte na Primeira RepĂșblica, mas frĂĄgil tanto na Constituinte de 1933, quanto no Congresso montado a partir de 1934. Os deputados perrepistas, embora em minoria, foram ao plenĂĄrio da CĂąmara em diversas ocasiĂ”es para ler ediçÔes do EstadĂŁo da Ă©poca da guerra civil, relembrando discursos de polĂticos que, em 1932, chamavam Vargas de âusurpadorâ, mas que, em 1934, estavam ao seu lado para o que der e vier.
Ă importante ainda deixar claro que o apoio paulista a Vargas ocorreu nĂŁo apenas de forma quantitativa, pelo apoio formal dos 22 deputados do Partido Constitucionalista â o que jĂĄ seria extremamente importante, pois, Ă Ă©poca, eram necessĂĄrios 128 votos para se obter maioria simples. Houve tambĂ©m um apoio qualitativo, com SĂŁo Paulo âvestindo a camisaâ, apoiando ativamente o presidente. Cardoso de Melo Neto â lĂder da bancada de SĂŁo Paulo â, Morais de Andrade e Valdemar Ferreira, trĂȘs deputados muito atuantes na legislatura e todos do Partido Constitucionalista, realizaram ao todo 83 discursos a favor do presidente no perĂodo de julho de 1934 a maio de 1935. Em 23 de fevereiro de 1935, por exemplo, ao defender a Lei de Segurança Nacional da crĂtica de deputados de origem sindical, Melo Neto afirmou que o Estado deveria ter âampliada sua esfera de açãoâ e que âo direito do Estado deve prevalecer sobre o direito do indivĂduoâ, para nĂŁo se ter âum regime fracoâ. Palavras que soaram como mĂșsica para os ouvidos de GetĂșlio.
AliĂĄs, esta que foi a primeira Lei de Segurança Nacional da histĂłria brasileira, e que viabilizou o aumento da repressĂŁo, teve como um dos âcabeçasâ do projeto, segundo a imprensa, o ministro da Justiça, o tambĂ©m paulista Vicente RĂĄo. Para ser relator da lei, na CĂąmara, outro paulista: Henrique Bayma. Assim, SĂŁo Paulo, por intermĂ©dio de importantes parlamentares e ministros, garantiu que o governo de GetĂșlio Vargas obtivesse o que buscava desde a reconstitucionalização: a ampliação de seus poderes, de modo a obter possibilidades de ação perdidas desde o inĂcio do governo constitucional. O deputado Macedo Bittencourt (PRP), em 20 de julho de 1935, discursou na CĂąmara criticando o apoio da maioria paulista a GetĂșlio, dizendo que Vargas conseguiu a âconquista absoluta de SĂŁo Pauloâ.

O apoio de SĂŁo Paulo Ă© reafirmado em diversos outros momentos de crise do governo, inclusive no maior deles, em outubro de 1935, quando houve uma ameaça real da perda da maioria no Congresso, ao se intensificar uma crise polĂtica entre o presidente e o governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha. O Partido Republicano Liberal deixou de prestar apoio incondicional ao presidente e as vitĂłrias nas votaçÔes parlamentares ficaram ameaçadas. Na mesma Ă©poca, um conflito em torno da eleição para governador do estado do Rio de Janeiro levou a bancada fluminense, em peso, tambĂ©m para a oposição na CĂąmara Federal, acusando o presidente de interferir indevidamente no pleito estadual. E, nesses momentos difĂceis, SĂŁo Paulo permaneceu fechado com Vargas.
O rompimento dos paulistas nĂŁo ocorreu apĂłs a hipertrofia do Poder Executivo ou apĂłs a prisĂŁo de milhares de pessoas acusadas, muitas injustamente, de envolvimento nas revoltas de novembro de 1935. Tampouco quando o governo prendeu cinco parlamentares, em março de 1936, acusando-os de participação nos levantes, aplicando um forte golpe contra o Legislativo que soou como uma demonstração de força. AtĂ© o Ășltimo minuto, os paulistas tentaram articular, inclusive, para que o governador de SĂŁo Paulo, Armando Sales de Oliveira, fosse o candidato oficial do PalĂĄcio do Catete nas eleiçÔes previstas para janeiro de 1938.
SĂŁo Paulo sĂł se afastou de GetĂșlio Vargas apĂłs a confirmação de JosĂ© AmĂ©rico de Almeida como candidato do governo, quando ficou claro que GetĂșlio, de fato, nĂŁo apoiaria o governador paulista. E isso sĂł ocorreu no inĂcio de 1937. O que veio depois todos nĂłs sabemos: o cancelamento das eleiçÔes, o inĂcio da ditadura do Estado Novo e a elite paulista, quando no retorno da democracia, em 1945, aderindo majoritariamente Ă UniĂŁo DemocrĂĄtica Nacional (UDN), partido de oposição a Vargas e a seu grupo polĂtico.
A partir daĂ, a narrativa antigetulista ganhou palco e se consolidou. Com o passar dos anos, a memĂłria de SĂŁo Paulo como bastiĂŁo de resistĂȘncia em 1932 e zelador da democracia foi fortalecida. PorĂ©m, como vimos, pouco se fala de seu apoio fundamental, entre 1934 e 1937, para o fortalecimento dos poderes do presidente, inclusive com a criação e aprovação da LSN e a chancela Ă enorme repressĂŁo governamental nas ruas.
Sem SĂŁo Paulo, seria muito mais difĂcil para Vargas se fortalecer politicamente durante o governo constitucional a ponto de se articular para a execução de um golpe de Estado. Se GetĂșlio chegou forte em 1937, Ă© inegĂĄvel que conseguiu isso superando entraves polĂticos, muito em razĂŁo do auxĂlio dos parlamentares representantes de SĂŁo Paulo. Se, por um lado, polĂticos paulistas, em regra geral, nĂŁo apoiaram o golpe; por outro, ajudaram a pavimentar o caminho de GetĂșlio atĂ© lĂĄ.
ReferĂȘncias:
LOPES, Raimundo HĂ©lio. As tropas do governo provisĂłrio na guerra civil de 1932: formação, estrutura e historiografia. Revista AntĂteses, v. 15, p. 250-279, 2022.
MORAES, Francisco Quartim de. 1932: a histĂłria invertida. SĂŁo Paulo: Anita Garibaldi, 2018.
MOURELLE, Thiago Cavaliere. A democracia ameaçada: a CĂąmara dos Deputados confronta GetĂșlio Vargas (1934-35). Rio de Janeiro: 7Letras, 2023.
Como citar este artigo:
MOURELLE, Thiago. O apoio de SĂŁo Paulo a GetĂșlio Vargas no caminho para a ditadura de 1937. HistĂłria da Ditadura, 10 out. 2023. DisponĂvel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-apoio-de-sao-paulo-a-get%C3%BAlio-vargas-no-caminho-para-a-ditadura-de-1937. Acesso em: [inserir data].