O capitalismo, suas memórias e suas vítimas
Atualizado: 15 de mar. de 2023
Como o ouroboros que come seu próprio rabo, a sociedade capitalista está preparada para devorar sua própria substância. (Nancy Fraser, Cannibal capitalism, 2022).
Em 1921, Walter Benjamin, pensador alemão morto na fronteira entre a França e a Espanha quando tentava escapar do regime nazista, escreveu que o capitalismo é “um fenômeno essencialmente religioso [...] Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto.” Em seguida, complementa de forma lapidar: “o capitalismo é a celebração de um culto sem sonho e sem piedade. Para ele, não existem ‘dias normais’, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda pompa sacral, do empenho extremo do adorador” (O capitalismo como religião, 1921).
Hoje, pouco mais de um século depois de Benjamin ter atribuído ao capitalismo os traços de uma religião, ainda vemos atuando na praça pública seus pregadores mais ferrenhos, rostos suados, vozes sonoras, palavras fervorosas e nas mãos algum livro que lhes garanta a verdade do seu próprio dogma. No dia 24 último, um desses adoradores usou do espaço que um jornal gaúcho lhe garante para publicar sua pregação. Na GZH, Daniel Scola ofereceu aos fiéis sua cantilena sobre “Os ajustes do capitalismo”.
Enxergando o mundo ainda por um prisma bipolar, onde capitalistas e comunistas disputam os futuros da humanidade, Scola garante que o comunismo não funcionou. Ele, que o “viu de perto em dois países diferentes”, pode assegurar com tranquilidade o atestado de não funcionamento. Quem duvidaria de um olhar tão preciso e aguçado como o seu? Assim, como em sua restrita visão de mundo existem apenas duas opções disponíveis na história, restou a ele concentrar esforços para pensar sobre “os ajustes necessários para a sobrevivência do capitalismo”. Francis Fukuyama agradece a oculta deferência! Mencionando a atual crise do capitalismo, Scola lembra a sugestão, dada pelo economista estadunidense Alan Greenspan, de que “o capitalismo tem uma capacidade ‘destrutiva’, mas é isso que garante a sobrevivência dessa forma econômica”. Ora, se a destruição da vida planetária que assistimos atualmente se deve ao capitalismo (ou à sua “crise”, como quer o jornalista), é porque sua capacidade destrutiva está muito bem ajustada. Ou seja, o capitalismo está tinindo! Que tipo de ajuste, então, precisaria ele?
As recentes, estarrecedoras, mas nada surpreendentes notícias sobre o uso de mão de obra de pessoas submetidas a condições análogas à escravidão em vinícolas gaúchas é exemplo claro de um sistema social muito bem ajustado. E ajustado segundo os parâmetros nacionais, afinal eram empresas familiares atuando em uma sociedade que encontra no familismo patriarcal uma de suas estruturas mais profundas. Outras dessas estruturas, “como a história mostra” e “como a história explica” (valendo-nos de expressões usadas por Scola), é a escravidão em suas múltiplas formas.
E como no capitalismo tudo que é ruim sempre pode piorar, ainda fomos obrigados a ler atônitos a nota emitida pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, justificando a situação em razão de uma suposta “falta de mão de obra” e explicando que programas estatais que procuram minimizar os efeitos da própria crise provocada pelo capitalismo seriam os verdadeiros culpados da situação. Tampouco faltou a dose de xenofobia que sempre acompanha situações como essa, vinda na fala de um vereador bolsonarista. Não há como desvincular disso a dimensão racial que envolve toda situação.
A escravização e a correlata racialização de pessoas é parte constitutiva do capitalismo em sua história, algo que se mantém contemporaneamente. Como alguns autores já argumentaram, entre eles a filósofa Nancy Fraser, além da exploração institucionalizada de trabalhadores e trabalhadoras, a ordem social capitalista funciona por formas brutais de pura e simples espoliação da força de trabalho, seja na forma da escravidão, seja na forma eufemista de trabalho análogo à escravidão. Fraser ressalta ainda que tal espoliação, assentada na opressão racial, é hoje a própria condição de possibilidade para a exploração capitalista do trabalho. Não há capitalismo sem espoliação.
A perspectiva aguda de Benjamin é mais do que atual: o capitalismo é, de fato, a celebração de um culto sem sonho e sem piedade. Seu fervor destrutivo e sua estrutura espoliadora não são falhas do sistema: são seu próprio motor, aquilo que faz girar essa máquina de destruição permanente. Os trabalhadores resgatados das vinícolas gaúchas são as vítimas mais recentes de um sistema que não cessa de produzir mais e mais vítimas. Não há sistema mais ajustado do que esse.
O que é preciso fazer, pelo contrário, é desajustar esse sistema, abrir a caixa que protege esse motor, fazê-lo reduzir a velocidade, parar de lubrificar seu maquinário, interromper sua marcha impiedosa rumo ao precipício. Uma marcha que, obviamente, não começou agora. Talvez, mais do que nunca, seja preciso falar das memórias do capitalismo, reconhecer suas violências, lidar com seus traumas e resgatar do esquecimento a experiência de suas vítimas.
Esse pode ser um caminho para desnaturalizar o que para alguns é considerado uma evidência: a inexistência de alternativas. Considerar o capitalismo como a única forma de vida possível é algo mais do que falta de imaginação política; não é senão atestar a própria cumplicidade com a destruição. É tão somente a ladainha fatalista de adoradores e pregadores em seu culto da morte.
Fernando Nicolazzi e Caroline Silveira Bauer
Pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA/UFRGS)
Créditos da imagem destacada: Ministério Público do Trabalho. Reprodução.
Artigo publicado originalmente no Jornal Sul21.
Como citar este artigo:
NICOLAZZI, Fernando; BAUER, Caroline Silveira. O capitalismo, suas memórias e suas vítimas. História da Ditadura, 6 mar. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-capitalismo-suas-memorias-e-suas-vitimas. Acesso em: [inserir data].