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Vinícius Lara

O “documento sobre Geisel” e a disputa política em torno da Verdade e da Memória

Atualizado: 29 de abr. de 2021


 

É comum entre aqueles que exerceram cargos de alto-escalão no governo a publicação de suas memórias. Getúlio Vargas produziu seu Diário entre 1930 e 1946, editado em dois tomos pela FGV em 1997. Fernando Henrique Cardoso publicou recentemente três dos quatro grossos volumes sobre seus oito anos de governo, usando como fonte primária registros de áudio gravados no Palácio da Alvorada durante as noites do cotidiano presidencial.

Também existem as versões dos acontecimentos palacianos entre os poderosos da ditadura militar: Armando Falcão, o ministro da Justiça (1974-79) que não tinha “nada a declarar” quando questionado sobre violações de direitos humanos, escreveu o Tudo a Declarar. Sylvio Frota, conhecido como o “representante da linha-dura” durante o período de Ernesto Geisel, deixou para publicação póstuma o seu Ideais Traídos. O livro só poderia sair passados dez anos da morte do autor, ocorrida em 1996. O chefe do Gabinete Militar de Ernesto Geisel, Hugo Abreu, publicou logo em 1979 O Outro Lado do Poder, sua própria avaliação sobre a ditadura e seu papel nela. Diversos membros do alto-escalão dos governos militares cederam entrevistas aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo, Celso Castro e Gláucio Soares, editadas em três volumes na década de 1990.

Todos esses livros-documentos dão a dimensão da disputa em que se envolveram os ditadores e seus assessores sobre a memória do período de horror militar no Brasil (1964-1985). Não há, no entanto, a intenção de fornecer explicações ou o compromisso com a verdade, mas há nítida distorção dos acontecimentos históricos e da memória coletiva para justificar o que deveria ser julgado pela Justiça democrática como graves violações de direitos humanos. Para exemplificar, cito um trecho do livro de Hugo de Abreu sobre a edição do AI-5:

Costa e Silva tentou o aperfeiçoamento democrático do país, mas acabou tendo de aceitar a imposição do AI-5 […]. O AI-5 e suas consequentes medidas de força adotadas eram justificadas pelo crescimento da subversão e o surgimento dos primeiros atos de violência e terrorismo que chocaram e deixaram perplexa toda a Nação”. (p. 199-200)

O áudio da reunião que decidiu pelo AI-5 mostra como este foi decretado para eliminar toda e qualquer oposição ao regime e extinguir a esquerda brasileira. Todos os generais presentes na reunião votaram a favor do AI-5 sem ressalvas. O único voto contrário foi do civil Pedro Aleixo, ocupante do cargo de vice-presidente da República.

Chamado por muitos jornalistas e intelectuais como “presidente da abertura”, o ditador brasileiro entre janeiro de 1974 e 1979, Ernesto Geisel, concedeu longas entrevistas aos pesquisadores Celso Castro e Maria Celina D’Araújo na primeira metade dos anos 1990. Os relatos foram publicados em versão não-integral e póstuma no ano de 1997 pela editora da FGV. É a versão do ditador em relação à história da qual ele não apenas participou, como também detinha o poder de agir para alterar seu curso.

Geisel

General Ernesto Geisel. Fonte: Galeria oficial de presidentes da República/ Palácio do Planalto.


Nesse livro-documento, Geisel nega ter tido conhecimento prévio de execuções e torturas durante seu governo. Tenta construir a imagem de um presidente mais comprometido com o jogo democrático do que com a ditadura (chamada pelo ditador de “Revolução”), objetivo este que encontrou eco entre jornalistas e intelectuais. No capítulo “problemas com a linha dura”, Geisel respondeu à pergunta “O senhor dava alguma orientação, alguma diretriz, de como devia ser a repressão?”:

Não. Nas conversas eu estabelecia que as forças só deviam ser usadas quando fossem absolutamente necessárias, mas deviam ser limitadas. O problema se complicava por causa da organização que vinha do DOI-Codi. Havia as ações deles, havia as ações da Aeronáutica, havia as ações da Marinha. Não era possível, dentro do quadro criado, estancar o processo de vez. O que se fez foi reduzir progressivamente essa atividade. A situação se complicou, entretanto, em São Paulo. (p. 369)

A entrevista segue para os casos do jornalista Vladimir Herzog, assassinado em outubro de 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, assassinado em janeiro de 1976, ambos nas dependências do II Exército, em São Paulo. Sobre o assassinato de Vlado, Geisel se defende:

[…] Disse para o [Sylvio] Frota e para o Ednardo [D’Ávila, comandante do II Exército]: ‘vamos apurar isso’. (…) De fato, criaram um herói. Pegaram uma pessoa relativamente sem importância e a transformaram num herói para a esquerda […]. (p. 370 e 372)

Sobre o assassinato de Manuel Fiel Filho,

a morte do operário ocorreu numa noite de domingo, e o Ednardo estava fora, numa fazenda no interior do estado passando o week-end. O Ednardo era uma boa pessoa, era meu amigo, mas o problema era que ele era displicente e sofreu uma influência que era comum em São Paulo: a atração dos generais pelo meio civil, pelo society. Então, o que acontecia? Aqueles magnatas de São Paulo convidavam o general comandante do Exército de São Paulo para um week-end na sua fazenda, na sua chácara, no seu sítio, o Ednardo era suscetível a isso, ia passar sábado e domingo lá e deixava o Exército à matroca. (p. 375)

Em nenhum momento o ex-ditador é confrontado sobre execuções sumárias ou torturas como política de Estado durante sua gestão e tampouco ele mesmo cita algo assim. As substituições ministeriais e do II Exército, apontadas como uma reação de Geisel frente aos “excessos”, parece hoje uma reação frente à opinião pública, à polêmica e ao poder dos seus ministros. Isso porque, ao contrário do que o ditador afirma, este não apenas tinha conhecimento como ordenou execuções sumárias para eliminar opositores à ditadura.

Nos últimos dias, um “documento da CIA sobre Geisel” ganhou notoriedade. O documento foi publicado por Matias Spektor no dia 10 de maio de 2018, sendo por ele descrito como o “mais perturbador que já li em vinte anos de pesquisa”. Trata-se de informe do diretor da CIA William Egan Colby para Henry Kissinger em 11 de abril de 1974 e descreve uma reunião entre Ernesto Geisel e os generais João Batista Figueiredo (chefe do SNI), Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino (chefes do Centro de Informações do Exército). Na ocasião, Geisel tomou conhecimento de execuções sumárias de cidadãos brasileiros comprometidos com o fim da ditadura militar até aquela data. O ditador permite que a prática seja mantida enquanto política de Estado, devendo ele ser constantemente informado sobre a situação.

O documento de 1974 desmente cabalmente o depoimento de Ernesto Geisel. As execuções de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho tinham a autorização expressa do governo militar. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, entre a data da reunião e o fim da ditadura foram assassinadas e desapareceram 89 pessoas. Mortes cuja responsabilidade é dos ditadores e daqueles que executaram suas ordens.

O conteúdo do documento, quando comparado às memórias de Geisel e de outros responsáveis pela política de extermínio da ditadura, revela a disputa política em torno da Memória e da Verdade: de um lado, a tentativa de construção da imagem de um grupo “moderado” que seria responsável direto pela “abertura política”, uma manipulação da memória coletiva. Por outro, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a pesquisa histórica e o documento agora conhecido e tantos outros já revelados dão mostra de que Ernesto Geisel era criminoso de lesa-humanidade e deu ordens diretas para a execução de opositores políticos.

Os avanços da Comissão Nacional da Verdade e da pesquisa histórica – à revelia da tentativa vil dos criminosos-ditadores em deformar a Memória e a Verdade – expõem, cada vez mais, a urgência da revisão da Lei da Anistia de 1979 e a punição daqueles que colaboraram e são os responsáveis pelo terrorismo de Estado e das graves violações de direitos humanos que ocorreram neste país entre 1964 e 1985. Este ambiente deu as condições de impunidade para que o Estado brasileiro ainda sequestre e/ou assassine sumariamente populações negras, LGBTs, indígenas e periféricas mesmo sob a vigência da Constituição de 1988. O capítulo dezesseis do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade lista 377 criminosos de lesa-humanidade. Muitos desses criminosos estão vivos e devem ser julgados por sua atuação durante a ditadura militar.

Vinícius Lara é doutorando em Ciência Política (UFRGS) e militante de direitos humanos.

O autor agradece os comentários de Raul Ellwanger ao texto.

 

Imagem destacada:

Photo by G. Crescoli on Unsplash

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