O Encuentro Canción Protesta (1967)
Atualizado: 24 de mai. de 2022
Entre julho e agosto de 1967, foi organizado na Casa de las Américas o Encuentro Canción Protesta, que enviou a Cuba meia centena de cantores de várias partes do mundo. Este evento foi liderado por Haydée Santamaría que, “en sua afán martiano de integrar las voces de la cultura discriminada, la de los pobres de la tierra”, convidava cantores que denunciavam a injustiça social e se encontravam dispersos, sem saber que faziam parte de um movimento e ignorados pelos meios de comunicação.
A organização do evento fez parte de um movimento orgânico de difusão da canção política pela América Latina e foi justamente o alvo principal da organização no que concerne aos convidados. Participaram do festival nomes emblemáticos da música política latina, como os uruguaios do Los Olimareños, Alfredo Zitarrosa e Carlos Molina; os paraguaios do Los Guaranies; os chilenos Rolando Alarcón, Isabel e Angel Parra (filhos da famosa Violeta Parra); os argentinos Oscar Matus e Ramón Ayala; a haitiana Martha Jean-Claude; o mexicano Oscar Chávez e o peruano Nicodemes Santa Cruz. O cubano Carlos Puebla foi o grande representante e anfitrião do evento.
Dos convidados vindos de fora da América Latina, vale ressaltar as presenças significativas de John Faulkner (Inglaterra), Luis Cília (Portugal), Julius Lester (EUA), Jean Lewis (Austrália), Raimón (Espanha), Della Mea e Marini (Itália). E visto que um dos principais objetivos da canção de protesto idealizada para o festival era “la lucha de liberación de los pueblos contra el Imperialismo Norteamericano y el Colonialismo”, as participações de Van Loc e Trang Dung y Phan Duong (Vietnã) foram das mais essenciais e simbólicas. Uma das pautas de discussão do evento foi justamente ações de manifesto a favor do povo Vietnamita.
“Este festival, realizado entre julio y agosto de 1967, la Casa de las Américas consolidaba su relación con personalidades de la canción latinoamericana, y contribuía a impulsionar movimientos, como los de la Nueva Canción e la Nueva Trova”. (GONZÁLEZ R. Juan Pablo, 2017. P.12)
O evento – como tudo que se passara em Cuba no auge da Guerra Fria – chamou atenção e despertou o cuidado das ditaduras implementadas naqueles tempos, principalmente na América Latina. A retórica da Cuba comunista e da ameaça da vizinha vermelha se multiplicava nas mais variadas dimensões sociais e na canção não foi diferente.
O Brasil
O caso brasileiro chama atenção não apenas pela ausência de cantores no evento de Havana, mas ainda por dois aspectos importantes: as ações de censura e investigação da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) direcionadas a tudo que se relacionasse a esse evento musical e o modo como o governo militar articulou com a direita brasileira para relacionar o conceito de “canção de protesto” a algo subversivo e comunista.
Quem protesta não é necessariamente de esquerda ou comunista, mas no Brasil – no universo da canção – isso quase se tornou sinônimo. Esse imaginário da canção de protesto foi tão bem construído em torno de uma aura de esquerda que vários cantores que nunca estiveram declaradamente alinhados ao comunismo ou ao socialismo acabaram por entrar no grupo de ”esquerdistas”, simplesmente por serem enquadrados como cantores de protesto, como Caetano Veloso, por exemplo. Esse alinhamento também se dava no esteio dos festivais da canção realizados no Brasil, concomitantemente aos festivais na América Latina, mas no caso brasileiro a atividade era bem mais restrita à união dos próprios brasileiros do que entre latino-americanos, como ocorria, em eventos no Chile, Uruguai e Cuba.
Curiosamente, no mesmo ano foi realizado na TV Record o emblemático Festival da MPB (para alguns O Festival da Canção) que sagrou Ponteio (Edu Lobo/Capinam) como música campeã e teve como finalistas as músicas Alegria, Alegria (Caetano Veloso) , Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e Maria, Carnaval e Cinzas (Roberto Carlos). Esse evento é lembrado pelas ações de rebeldia dos intérpretes – como o violão quebrado por Sérgio Ricardo – e do público – que vaiou, principalmente a apresentação de Caetano Veloso – e se tornou, no imaginário nacional, um festival sobre o qual pairam ideias “sobre canções de protesto”.
A canção e o protesto
Nos anos 1960, vários dilemas sociais que pareciam ser pauta de apenas um ou outro povo, encontraram-se em lutas e ações de ativismo social de muitos deles. Essas reivindicações tiveram cada vez mais características de união internacional, e a canção passou a ser uma aliada, uma arma para esses gritos de resistência em ações de conscientização popular e de luta.
“Afinal, uma produção cultural nunca se realiza no vazio ou na esfera iluminada de um mágico espaço espiritual que paira e flutua não se sabe bem onde. Toda produção nos aparece encarnada, num viver, do qual retira motivo, inspiração, conteúdo, força, posição de classe etc.” (MOURA, 1981. P.7)
“... como el importante papel que cumplimos en la lucha de liberación de los pueblos contra el Imperialismo Norteamericano y el Colonialismo. Esperamos que esta experiencia se repita en bien de la union de todos aquéllos que en sus países combatem através de lá canción. Los trabajadores de la Canción de Protesta deben tener consciencia de que la canción, por su particular naturaleza, posee un enorme poder de comunicación con las massas entanto que rompe las barreras que, como el analfabetismo, dificultan en dialogo del artista con el pueblo del cual forma parte.” (Resolución final del Encuentro de la Canción Protesta. Varadero, viernes 4 de agosto de 1967).
Passou-se a perceber na canção um instrumento político fluido e eficaz para o combate político, principalmente pelo momento de distribuição das cantigas (expansão do mercado fonográfico, rádios e programas musicais na TV) e das dinâmicas ideológicas no mundo. Na América do Sul, as resistências às ditaduras, às desigualdades e injustiças também tiveram versos e violas como aliados.
O Canción Protesta não foi o primeiro nem o último festival realizado na América Latina com essa perspectiva política. Vale lembrar os importantes festivais do Chile, em 1966 e 1968, além dos movimentos no Uruguai e Argentina, em torno do mesmo período. Inclusive, os festivais anteriores e posteriores ao cubano “permitíam ‘estrechar los lazos de hermandad que unen a las distintas regiones del pais’, juntadas ahora por la magia de la Cancion autóctona” (El Musiquero, 36, 12/1966. p.17)*.
Utopia e realidade
Dois aspectos extremamente relevantes desse encontro valem ser ressaltados além de sua dimensão musical e de protesto.
A imersão dos cantautores pelo território cubano. As visitas às várias cidades e vilas, assim como a interação com os projetos sociais inaugurados com o governo socialista, alinhavam ainda mais o canto e a escrita dos compositores aos seus ideais de liberdade e igualdade entre os povos. Segundo relatos da revista Canción Protesta, os cantores viam suas utopias cantadas nas mais diversas partes do mundo, transformadas em realidade e práticas sociais colaborativas. A canção, de fato, virara revolução.
A interação do líder cubano Fidel Castro nas atividades do festival. Fidel dialogava com os compositores, na apresentação do projeto social implementado no país por ele e os demais revolucionários em 1959 e, principalmente, mostrava sensibilidade ao perceber a importância daqueles músicos, daquelas canções e daqueles movimentos em dimensões de sociedade e justiça social.
“Según Rolando Alarcón, cuando Fidel Castro escuchó <Si somos americanos>, una de suas canciones que interpretó en el festival, afirmó que esa canción “valia más que diez discursos politicos”.
A canção que chamou a atenção de Fidel – escrita por Rolando Alarcón em sua passagem pelo México sobre o ritmo cachimbo chileno – dizia:
Si somos americanos / somos hermanos, señores, / tenemos las mismas flores, /
tenemos las mismas manos.
Si somos americanos, / seremos buenos vecinos, / compartiremos el trigo, / seremos
buenos hermanos.
Bailaremos marinera, / refalosa, zamba y son. / Si somos americanos, / seremos
una canción.
Si somos americanos, / no miraremos fronteras, / cuidaremos las semillas, /mira-
remos las banderas.
Si somos americanos, / seremos todos iguales, / el blanco, el mestizo, el indio / y el
negro son como tales.
Bailaremos marinera, / refalosa, zamba y son. / Si somos americanos, / seremos
una canción
*
Certamente o festival irradiou influências e ações políticas para diversas partes da América Latina e do mundo todo. Vale lembrar que o cantor Luís Cília, representante de Portugal em Cuba e, na altura, exilado português em França, foi um dos nomes mais ativos do “canto de intervenção português”. Ele conviveu e elaborou muitas estratégias de luta contra a ditadura salazarista em Portugal e, junto a cantores como José Mário Branco e Manuel Freire, estampou, no dia 25 de abril de 1974, uma revolução com trilha sonora de José Afonso. “Grândola Vila Morena” foi senha e trilha para a revolução em Portugal que, com certeza, teve vários ares do Canción Protesta cubano. Como recitou um famoso ativista na campanha de Salvador Allende à presidência chilena: “No hay revolucion sin canciones”.
Créditos da imagem destacada: Cartaz oficial do encontro, 1967. Acervo do autor.
Link para audição das canções do Encontro:
Referências:
* La revista El Musiquero fue una de las publicaciones periódicas sobre música más persistentes que se editaron en Chile. Publicada entre los años 1964 y 1976
MOURA, José Barata. Estética da Canção Política. Coleção Movimento. Livros Horizonte, Lisboa, 1981.
GONZÁLEZ R. Juan Pablo. Chile y los festivales de la canción comprometida. Boletin Música #45, 2017.
OGAS, Julio. «Nombrando Latinoamérica. Revolución y resistencia desde la nueva canción al hip hop», 2013.
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