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Foto do escritorLúcio Geller Junior

O enigma de Putin

A invasão da Ucrânia por tropas russas em fevereiro de 2022 despertou o fantasma de um terceiro conflito mundial, em que a bomba atômica não seria mais um epílogo dramático, mas um princípio assustador. Suas consequências são sentidas em nível global, mesmo na América Latina. Embora muitos países alertassem desde 2021 sobre o risco de um conflito armado na Europa, devido a exercícios militares russos na fronteira com a Ucrânia, era difícil prever seus desdobramentos. Os líderes europeus lembravam os “sonâmbulos” às vésperas de 1914, surpresos pela eclosão da guerra (CLARK, 2014).


Muitos analistas começaram a defender que foi o processo de “expansão” da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sobre os países que pertenceram ao Pacto de Varsóvia que desencadeou o conflito. A proximidade do bloco, bem como a suposta “desnazificação” da Ucrânia, foram, porém, as razões que Vladimir Putin trouxe no discurso que deu início à ofensiva. Por isso, em minha última coluna, discuti os riscos de reiterar os pressupostos dos arquitetos da guerra, tornando-a um fenômeno inevitável.


“Apoie a Ucrânia contra a invasão russa”. Comício antiguerra em Vancouver em fevereiro de 2022. Wikimedia Commons.

Contudo, dei pouca atenção ao próprio Putin e ao movimento que ele representa. Para a imprensa francesa, o mandatário russo busca elevar seu país a um destino imperial, correspondente ao mito da “terceira Roma”; para a mídia estadunidense ele estaria mais próximo de um Gengis Khan. O governo ucraniano o associou a Adolf Hitler, invertendo a acusação feita pelo próprio Putin. Em meio a tudo isso, até as esquerdas hesitaram em definir uma posição sobre a guerra (DELIOLANES, 2022). É preciso, portanto, analisar o presidente em face de seus próprios paradigmas e interlocuções.


Encruzilhadas

Quando escrevi sobre a guerra na Ucrânia, minha preocupação era fazer uma leitura que não reduzisse o conflito a uma simples movimentação de peças de xadrez e não reforçasse estereótipos de características nacionais, como se a identidade fosse uma pré-condição, e não um produto de relações bem mais densas. Se a expansão da OTAN supõe uma ameaça à segurança da Rússia, ao mesmo tempo há um intrincado processo de “descolonização” do espaço pós-soviético (PETTINÀ, 2022). Afinal, a aliança resistiu ao fim da Guerra Fria devido ao ingresso sistemático de antigas repúblicas socialistas.


Isso não é subestimar os interesses dos Estados Unidos – que prontamente acolheram os seus pedidos de adesão –, mas considerar a insegurança que a égide soviética representou para muitas dessas repúblicas. Basta recordar as violações ocorridas na Hungria, em 1956, ou na Tchecoslováquia, em 1968. Ao lado disso, está a cisão do ideal de pertencimento com a sociedade soviética, o homo sovieticus, após o colapso do bloco socialista. Para uma constelação de movimentos – do feminismo, passando pelo pós-colonialismo (ou pós-soviência), até o nacionalismo –, foi um momento de rever o universo de representações e autorrepresentações nacionais (KUTKINA, 2020, p. 39).


Na Ucrânia, a expressão que chamou atenção nesse campo político foi a “descomunização”, ou seja, a superação do legado soviético. Evidentemente, afirmar que a Rússia ou a Ucrânia em algum momento foram comunistas não quer dizer que elas correspondam à ideia de Karl Marx de uma comunidade autoemancipada. Afora as nuances da forma como seu referente foi realizado, os críticos dessa perspectiva apontam que ela repete “métodos soviéticos”, ao exigir uma versão única da história, reduzida a um confronto binário entre vítimas e carrascos (SHEVEL, 2016, p. 263).


Não à toa, a “descomunização” achou espaço, de fato, em discursos nacionalistas abertamente chauvinistas e xenófobos durante os protestos do Euromaidan, entre 2013 e 2014, quando Ianukovich cedeu às pressões de Putin contra o acordo de livre comércio com a União Europeia (UE). O evento levou a conflitos civis, à queda de Viktor Ianukovytch, à reação de Putin na Crimeia e na Bacia do Donets com o apoio aos separatistas russos e à formação de batalhões de voluntários ucranianos para combatê-los. Tão logo foi eleito presidente em 2015, Petro Poroshenko adotou uma política de abolição dos vestígios da era soviética da paisagem pública ucraniana (GHODSEE, 2017, p. 150).


Euromaidan em Kiev em dezembro de 2013. Autora: Nwssa Gnatoush. Wikimedia Commons.

Desse ponto de vista, as ações de Moscou seriam uma luta antifascista. Não obstante, Putin muitas vezes colocava a Rússia em rota de colisão com os interesses dos países ocidentais – diferentemente de seu antecessor, Boris Yeltsin. Um exemplo é o impasse sobre o escudo antimíssil da OTAN na Polônia e na República Tcheca. Assim, sempre pairaram dúvidas acerca do espectro político do presidente russo – sem esquecer de sua parceria “sem limites” com a China em meio às tensões com os Estados Unidos e da aliança geopolítica de ambos junto ao Brasil, a Índia e a África do Sul: os BRICS.


Depois assistirmos às interações do bolsonarismo com a direita radical ucraniana e ao isolamento internacional dos últimos anos, era realmente difícil para mim, enquanto brasileiro, enquadrar Putin categoricamente em uma corrente política à qual pertencessem Donald Trump ou Jair Bolsonaro, apesar de suas afinidades no campo da reação a pautas de grupos minoritários. Sua imagem parecia convergir muito mais para a de um estadista com discurso antifascista e, no limite, até mesmo anti-imperialista.


Vladimir Putin participa do evento “Regimento Imortal” em maio de 2018. Fonte: Serviço Oficial de Imprensa e Informações Russo. Wikimedia Commons.

Todavia, a visão de uma Ucrânia rendida ao fascismo e de uma Rússia incumbida de aniquilá-lo não só assume as imagens criadas pelos oponentes como esconde suas nuances. Como ignorar o envolvimento de grupos nacionalistas com um movimento de apoia à integração com a UE ou a contraditória cooperação das lideranças de certos batalhões ucranianos, como o Azov, com nacionalistas russos? A mais surpreendente talvez seja o diálogo do líder do Bratstvo, Dmytro Korchynsky, com o infame extremista de direita russo Aleksandr Dugin (UMLAND, 2019, p. 110-114).


Certo é que, no caso das relações da Rússia com a Ucrânia, a questão da soberania aflorou uma miríade de expectativas sobre a nação em face de traumas e tensões que sobreviveram após o fim da União Soviética – entre elas, as bandeiras defendidas pelos radicais de direita. Sua presença na esfera pública, porém, não deve ser compreendida como uma particularidade ucraniana, decorrente de algum tipo de “mentalidade nacional”. Essa leitura negligencia de maneira quase xenófoba fatores que excedem os limites nacionais, criando um tipo de exclusivismo que só serve para sustentar o conflito.


A ascensão da direita é um fenômeno global com trocas, interações e divisões. A própria Rússia assistiu ao surgimento de agremiações extremistas em décadas recentes – como o Partido Nacional-Socialista Russo, a Frente Nacional, o Partido Nacional Popular, entre outros –, cujos ataques têm como alvo migrantes do Cáucaso e da Ásia Central, minorias sexuais e ativistas de movimentos sociais (DUNAEVA, 2013, p. 55-57). Todas essas arestas correm o risco de serem aplainadas quando a mesma leitura estanque da guerra na Ucrânia é aplicada ao presidente – seja ele qual for –, e seus seguidores.


Retratos

Se a desintegração do bloco socialista representou para a Ucrânia e para outros países um momento não só de reconfiguração das alianças geopolíticas como de surgimento de novos sentidos de pertencimento, para a Rússia não foi diferente. A economia socialista estatal foi substituída pelo capitalismo privado. Os valores declarados pelo Estado (ainda que longe da realidade) como a cooperação, o internacionalismo e o coletivismo, foram trocados pela concorrência, o nacionalismo e o individualismo. A lógica de governança foi reelaborada. Novas fronteiras foram traçadas e logo contestadas.

Ao mesmo tempo, surgiram muitos medos e frustrações. Apesar dos problemas, a União Soviética assumia uma posição de grande potência para os seus cidadãos e para o mundo (DUNAEVA, 2013, p. 64). Em minhas pesquisas com mulheres soviéticas que migraram para o Brasil na década de 1990, todas consideram que, a despeito de suas críticas, garantias sociais, como saúde, educação, emprego e moradia, deixaram de receber a atenção devida em sua terra natal (GELLER JUNIOR, 2022).


Dia da Vitória em Donetsk. Maio de 2018. Autor: Andrew Butko. Wikimedia Commons.

Porém, nem tudo foi só mudança. A Rússia precisou lidar com a concepção de nação – enraizamento territorial, linguístico e religioso de comunidades etnicamente definidas – herdada dos tempos imperiais e fiadora do modelo de Estado multinacional federativo assumido pela União Soviética – formado por unidades administrativas étnicas, as “repúblicas” (GELLER, JUNIOR, 2022, p. 35). Com a sua dissolução, todas as quinze federações – Rússia, Ucrânia, Bielorrússia etc. – tornaram-se países independentes. Porém, as mesmas lideranças que trabalharam pela separação, recusaram a independência da Chechênia, uma das divisões regionais internas da Rússia, promovendo uma longa guerra em prol da integridade territorial.


Não obstante, o primeiro governo pós-soviético da Rússia, chefiado por Yeltsin, foi responsável por fomentar a autonomia dos governos regionais em troca de apoio, sem contar com os possíveis efeitos disso em um ambiente de disputas nacionais. Frequentemente, a insubordinação chechena passou a ser associada pelas autoridades russas à deportação stalinista de 1944, sob justificativa de colaboração com os nazistas. Surgiu, assim, um discurso de apagamento de reivindicações centenárias em torno da colonização do Cáucaso pelo Império Russo (DUNAEVA, 2013, p. 81-83).


É nesse momento de “gravidade zero na terra”, em que “o velho acabou e o novo ainda não começou”, como escreveu Andrew Meier (2005, p. 68), que Putin emergiu. Sua imagem de grande estadista deriva dessa época. A transição econômica foi uma verdadeira “terapia de choque”, como apelidaram seus articuladores, por conta da rapidez da liberação dos preços antes controlados pelo Estado e da privatização de empresas estatais. A pressa expressava o temor de uma restauração soviética, mesmo diante de um saldo negativo: a disparada da inflação e uma queda do Produto Interno Bruto maior do que a da Grande Depressão, que atingiu os Estados Unidos em 1929.


Rapidamente, Yeltsin perdeu apoio popular e dos parlamentares, que acolheram seu processo de impeachment em 1993. O governo respondeu com o bombardeio da sede do Parlamento e a imposição de uma nova Constituição. O velho parlamentarismo soviético foi substituído pelo semipresidencialismo, com um presidente restrito ao Estado e um primeiro-ministro ao governo; já o Soviete Supremo deu lugar a uma assembleia bicameral. A situação se agravou em 1994, com o início da primeira guerra da Chechênia, que durou até 1996 e reduziu a sua capital, Grozny, a escombros de aço e concreto.


Um combatente checheno do lado de fora do Palácio do Governo durante uma breve pausa nas hostilidades em Grozny, Chechênia. Janeiro de 1995. Autor: Mikhail Evstafiev. Wikimedia Commons.

Eleito presidente ainda no período soviético, Yeltsin era muito associado à abertura política, mas suas soluções autoritárias lhe trouxeram dificuldades, inclusive para derrotar o candidato comunista Gennady Zyuganov na eleição de 1996. Yeltsin recorreu ao apoio financeiro dos famigerados “oligarcas” russos, uma pequena e poderosa elite econômica que se beneficiou de suas privatizações. Em resumo, o político que poucos anos antes encarnava a mudança, logo adquiriu as feições de um chefe de Estado pálido e acuado, culminando com sua renúncia à presidência em 1999.

Sobre as ruínas desse governo desacreditado, Putin entra em cena como alguém capaz de “arrumar” o país. Se comparado a Yeltsin, ele era uma figura pouco conhecida do mundo político, mas não necessariamente um outsider. Assim como o antecessor, ele viveu sob o socialismo de Estado e, com a transição, ingressou na política. Foi do serviço de inteligência da União Soviética para a assessoria de Anatoly Sobchak, primeiro prefeito eleito de São Petersburgo, antiga Leningrado, em 1991. Putin, na verdade, saiu das entranhas do governo de Yeltsin. Sua passagem pela prefeitura de um aliado do presidente o levou ao Kremlin em 1996, onde tornou-se o responsável pela reestruturação dos órgãos de inteligência. Três anos depois, ascendeu a primeiro-ministro.

A chegada ao novo cargo foi seguida pela retomada da guerra na Chechênia. Apesar da destruição, as forças russas não dominaram a região na primeira campanha. O cessar-fogo caiu com Putin, que lançou um ataque ainda mais brutal depois de um atentado a bomba em Moscou, automaticamente associado aos chechenos para desencadear uma “operação contraterrorista” (DUNAEVA, 2013, p. 87). Tudo isso, junto da saída de Yeltsin, o cacifou à presidência. Criado pelo mesmo grupo político do antecessor, Putin jogou com o chauvinismo dos eleitores que temiam mais uma fragmentação do país e o descontentemente dos atingidos pela crise econômica aberta pela transição. Esses dois fantasmas pós-soviéticos lhe garantiram a vitória; a reeleição em 2004; o sucessor escolhido, Dmitri Medvedev; e seu retorno para dois mandatos de seis anos cada, em 2012 e 2018, depois das reformas constitucionais que operou como primeiro-ministro nos quatro anos que ficou fora da presidência.


Cerimônia de posse de Vladimir Putin como Presidente da Rússia, em 7 de maior de 2012. Fonte: Serviço Oficial de Imprensa e Informações Russo. Wikimedia Commons.

Depois das nuances apontadas sobre a guerra, seria um equívoco afirmar que Putin é uma mera extensão de Yeltsin. O ponto é que ele não buscou romper com o modelo socioeconômico então recém implantado e do qual se beneficiou. A principal diferença, segundo muitos analistas, estaria na política. Sua longa permanência no poder, aliada a seu modo de governar, lhe conferiu uma imagem mais negativa do que a de Yeltsin (SEGRILLO, 2016, p. 236). À resposta violenta na Chechênia, seguiram-se medidas centralizadoras, como o fim das eleições diretas para os governos regionais, por exemplo.


Outra questão seria a relação de Putin com os “oligarcas”. Sua influência sobre o governo, a partir dos espólios das privatizações e de cargos na gestão de Yeltsin, foi contrabalanceada pela entrada de figuras originárias das forças de segurança ou militares. Ainda assim, isso não representa uma ruptura: nunca houve uma reestatização da economia e seu sucessor, Medvedev, é um civil ligado ao mercado financeiro. Novamente, se enxerga uma diferença política baseada no equilíbrio entre as forças que representam os traumas da transição e os componentes mais estatais do passado.


Caminhos

Mudanças políticas ou continuidades econômicas servem para mostrar como nenhum líder é um simples produto pré-determinado de um momento histórico ou um completo forasteiro – ainda que possam construir essa imagem, como fez Putin ao se apresentar com o ex-agente secreto, firme e viril. Entretanto, saídas autoritárias, negociações de agenda econômica, além do estilo político, são aspectos muitos frágeis para definir quem quer que seja. Sobretudo porque esse conjunto de características pode ser facilmente associado a movimentos e indivíduos que vão da esquerda até a extrema direita do espectro político, a despeito de suas genealogias históricas.


Para evitar nivelar as nuances do cenário russo, se recorre com certa frequência a três aspectos históricos específicos: a fragilidade da ideia de democracia no país; a tradição de um Estado forte e de uma autoridade soberana; e as principais vertentes do pensamento político russo – o ocidentalismo, o eslavofilismo e o eurasianismo.


Os períodos democráticos, de fato, são relativamente curtos quando comparados ao longo império dos tzares e aos mais de setenta anos do Estado autoritário soviético. Estão confinados entre as revoluções de fevereiro e outubro de 1917 e a partir dos anos noventa, com todas as ressalvas a Yeltsin e Putin. O entendimento de que os russos construíram um dos maiores impérios da história sob a égide de uma monarquia absolutista ainda hoje sustenta o conceito de gosudarstvennost’ – literalmente, “estatismo” –, no sentido da defesa de um Estado forte e centralizado.


Ao gosudarstvennost’ está ligada a noção de vlast. Diferentemente de seu equivalente latino “poder”, vlast denota as condições necessárias para alguém legitimar a sua autoridade, como o direito e a capacidade de decisão e execução. O uso político e conceitual desses termos é recorrente, inclusive para explicar a ascensão do Soviete de Petrogrado (LIH, 2017). Atualmente, em uma democracia tênue, eles poderiam explicar, na opinião de Angelo Segrillo (2012, p. 99), a longevidade política e eleitoral de Putin ao fortificar o Estado e suprimir as tendências regionalistas após as turbulências de outrora.


Vladimir Putin a bordo do cruzador de mísseis movido a energia nuclear Pyotr Veliky durante um exercício da Frota do Norte, em agosto de 2005. Fonte: Serviço Oficial de Imprensa e Informações Russo. Wikimedia Commons.

A ideia de Putin como um gosudarstvennik, detentor de um vlast inquestionável quando comparado a seu antecessor, também está ligada ao terceiro ponto: as tendências políticas. Desde o século XIX, há uma preocupação em definir a Rússia como um país europeu (ocidentalismo), uma civilização única (eslavofilismo) ou uma confluência europeia e asiática (eurasianismo), com um sem-número de apropriações pelas mais variadas correntes políticas, a exemplo do neoeurasianismo de extrema direita de Dugin.


Apesar dos choques com os Estados Unidos e com a Europa na política externa e dos rótulos de tzar ou khan, as análises mais recentes preferem não classificar Putin como um eslavófilo ou um eurasianista, mas como um ocidentalista moderado. Para Segrillo (2016, p. 240), seus embates externos não resultam de uma posição antiocidental, principalmente quando se considera sua cooperação na “guerra ao terror” após os atentados de 11 de setembro de 2001 – agenda que lhe foi muito cara na Chechênia. Suas divergências atenderiam muito mais a uma postura de defensor do gosudarstvennost’ russo, quando compreendeu que seus interesses foram preteridos no meio ocidental.


Por um lado, não há dúvidas sobre a importância de considerar as referências da Rússia, não só para compreender suas particularidades, mas para evitar interpretações que as tornem “excêntricas” aos olhos dos outros. Por outro lado, há o risco de cair naquele exclusivismo, como se a ideia do “líder forte” fosse o resultado de uma propensão cultural ao autoritarismo, cobrindo Putin com um véu de naturalidade. De fato, conforme Segrillo (2012, p. 121), democracia e ditadura são termos que adquirem conotações distintas na Rússia, mas não porque isso é a realidade do país, e sim pelos modos de coexistir que foram construídos em determinado momento e que, portanto, não são inerentes.


Embora isso possa soar um tanto óbvio, essas observações me parecem cada vez mais necessárias de serem feitas quando analisamos alguém como Putin. Assim como outros líderes, ele possui um profundo interesse em definir a “essência do seu povo” (PUTIN, 2020, p. 260), não apenas para garantir os votos do eleitorado receoso de insurgências regionais e abalos econômicos, mas para legitimar o seu modo de governar, a sua permanência e a sua visão da Rússia para o mundo.


Todos os aspectos levantados para compreendê-lo fazem parte, inclusive, da semântica de Putin e seus signatários. O impulso centralizador de seus dois primeiros mandatos e do mandato de Medvedev foi explorado como um estágio realmente menos democrático, mas necessário para consolidar o sistema político da Rússia depois do caos da década de 1990. No entanto, como seu retorno para uma presidência bem mais longa foi recebida já em 2011com protestos, forças pró-putinistas começaram a abraçar a ideia do excepcionalismo da Rússia em comparação a outros países.


Um número aproximado de 50 mil pessoas se reuniu na Praça Bolotnaya, próxima ao Kremlin, para propor eleições justas. As então recentes eleições mostraram enormes violações a favor do partido líder – “Rússia Unida”. Dezembro de 2011. Autor: Leonid Faerberg. Wikimedia Commons.

O papel do Estado, os valores e as tradições, a rejeição ao pluralismo e até mesmo um tipo específico de personalidade foram atribuídos à excepcionalidade de sua posição geográfica, suas circunstâncias históricas e seu caráter enquanto povo para apresentar uma condição supostamente intrínseca e, por isso, desejável à sua vida política. Esse “caminho especial” foi uma ideia muito explorada, aliás, pelo regime soviético (DUBIN, 2012, p. 41). O caráter extraordinário da industrialização de um país de base rural escusou expropriações, deportações, conflitos étnicos e religiosos e processos políticos dignos da Inquisição, medindo seus resultados tão-somente em toneladas de aço.


Putin, aliás, faz questão de se cercar de elementos soviéticos, indo na contramão de outras tendências políticas. Esse passado possui uma relação umbilical com o conflito em curso, na medida em que é um ponto de referência para os novos Estados do Leste Europeu. Apesar da Rússia parecer querer reabilitá-lo com Putin, os desfiles militares, os coros do Exército Vermelho e a reencarnação da “Grande Guerra Patriótica” contra o perigo fascista estão tão desprovidos de ideias de esquerda quanto a política de “descomunização”. Ele apenas encontrou um meio, acredito, de removê-los sem precisar derrubar as estátuas de Lênin e, ao mesmo tempo, tirar algum proveito delas.


Desfile militar na Praça Vermelha em Moscou, em junho de 2020. Fonte: Serviço Oficial de Imprensa e Informações Russo. Wikimedia Commons.

Primeiro, pela lembrança da década de 1970, considerada a de maior estabilidade econômica e social da Rússia. Segundo, pela busca de uma definição essencialista do que é ser russo. Nela, a resistência à invasão nazista e as conquistas nas artes, na ciência e na indústria, equalizam os sentidos de pertencimento ao país. As especificidades históricas, contudo, são diluídas dentro da ideia de que Rússia é “o Estado sucessor legal da União Soviética” – mas isso seria apenas uma “parte da nossa história milenar”, nas palavras de Putin (2020, p. 265). Nesse sentido, um dos principais caminhos que vejo para decifrar os enigmas que o cercam é compreender e interpretar o seu modo de ver o mundo.


Créditos da imagem destacada: Vladimir Putin visita a Crimeia e Sebastopol em janeiro de 2020. Fonte: Serviço de Imprensa da Presidência da Federação Russa. Wikimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS:


CLARK, Christopher. Os Sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

DELIOLANES, Dimitri. Cómo la guerra de Putin divide a la diáspora comunista. Nueva Sociedad: Democracia y política en América Latina. mai. 2022.

DUBIN, Boris. The Myth of the “Special Path” in Contemporary Russian Public Opinion. Russian Politics & Law, v. 50, n. 5, p. 35–51, 2012.

DUNAEVA, Cristina Antonioevna. Preconceito racial e xenofobia na Rússia contemporânea: os mecanismos de categorização étnica e a dicotomia entre “nós” e “outros”. 2013. 263f. Tese de Dourado (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Campinas.

GELLER JUNIOR, Lúcio. Janelas entreabertas: histórias de mulheres soviéticas em movimento – de 1960 ao tempo presente. 2022. 200f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

GHODSEE, Kristen. Exonerando a los fascistas en la Europa del Este. Nuestra Historia, Madri, v. 4, p. 149-167, 2017.

KUTKINA, Anna. Between Lenin and Bandera: Decommunization and Multivocality in (post)Euromaidan Ukraine. Faculty of Social Sciences, University of Helsinki, Helsinki, 2020.

LIH, Lars. Not Marx, Not Locke, But Hobbes: The Meaning of the Russian Revolution. Crisis and Critique, v. 4, n 2, p. 211-232, 2012.

MEIER, Andrew. Terra Negra: uma viagem pela Rússia pós-comunista. São Paulo: Globo, 2005.

PETTINÀ, Vanni. La invasión de Ucrania desde una mirada poscolonial. Nueva Sociedad: Democracia y política en América Latina. Mar. 2022.

PUTIN, Vladimir. 75 anos da Grande Guerra pela Pátria. In. JÚKOV, Georgy. A decisão da Segunda Guerra Mundial: Moscou, Stalingrado, Kursk, Berlim. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.

SEGRILLO, Angelo. A Questão da Democracia na Rússia Pós-soviética. In. Alves, André Augusto de Miranda Pineli (org.) O Renascimento de uma Potência?: A Rússia no Século XXI. Brasília: IPEA, 2012. p. 97-128.

SHEVEL, Oxana. The Battle for Historical Memory in Postrevolutionary Ukraine. Current History, v. 115, n. 783, p. 258–263, 2016.


Como citar este artigo:

GELLER JUNIOR, Lúcio. O enigma de Putin. História da Ditadura, 7 fev. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-enigma-de-putin. Acesso em: [inserir data].


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