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O legado da Comissão de Anistia e os riscos de uma gestão conservadora

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Ao longo dos últimos meses, a Comissão de Anistia ganhou destaque na grande mídia. Parte dessa visibilidade deve-se ao processo de substituição, que o atual governo conduziu, nomeando para o lugar dos antigos membros, novos integrantes cujas trajetórias políticas têm sido questionadas por movimentos sociais. As polêmicas se concentraram, principalmente, em torno da escolha de dois nomes; Paulo Lopo Saraiva, ex-sargento do Exército, que foi acusado de ter colaborado com a ditadura[1] e, Alberto Goldman, que teria se posicionado contra as reparações pecuniárias concedidas pela Comissão[2].

Paulo Lopo Saraiva (Imagem: Reprodução Internet)


Estas falas mais resistentes a medidas de enfrentamento do passado autoritário sempre foram muito presentes no Brasil. Contudo, até então, a Comissão de Anistia havia se tornado um lugar de contraposição a esse discurso. Portanto, a inserção de figuras inclinadas a um posicionamento político tão conservador num espaço como este, tende a ter efeitos brutais nos trabalhos de memória, verdade e reparação que o grupo tem desenvolvido nos últimos 15 anos, assim como no legado que eles têm a deixar.

Em face de todos esses fenômenos, torna-se importante contextualizar a atuação da Comissão de Anistia no processo de transição, a começar pelo momento de sua fundação. Ela foi criada em agosto de 2001 por meio da Medida Provisória n. 2.151 que, posteriormente, seria convertida na lei 10.559 de novembro de 2002. Subordinado ao Ministério da Justiça, o órgão teria como principal tarefa reparar os perseguidos que, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, haviam sido perseguidos por razões exclusivamente políticas. Portanto, segundo a lei, cabe à Comissão analisar os requerimentos de anistia e, sobre eles decidir a conveniência de concessão de atestado de anistiado político e de pagamento de indenização pecuniária, com base nos preceitos constitucionais.

Alberto Goldman (Imagem: Reprodução Internet)


Anteriormente as reparações pecuniárias eram concedidas pelo Ministério do Trabalho e incluíam apenas aqueles que tivessem perdido vínculo empregatício em virtude de perseguição política. A criação da Comissão foi, portanto, uma grande conquista do movimento de atingidos pela ditadura, que pedia a ampliação do grupo de pessoas contempladas pela reparação. O que se ressaltava na época é que a visão trabalhista da reparação ignorava os danos causados por vítimas de tortura e também acabava excluindo grupos que foram grandes alvos de perseguição, especialmente militantes que viviam na clandestinidade e que, por isso, teriam mais dificuldade para comprovar vínculo laboral, assim como integrantes do movimento estudantil e comunidades indígenas (RODEGHERO e DIENSTMANN, 2011, p. 270-273).

Desse modo, um dos marcos da lei n. 10.559 foi a ampliação do grupo de atingidos pela ditadura, que teria direito a reparações. Desde então, o benefício passou a abranger cônjuges, estudantes, profissionais liberais e trabalhadores rurais. Aos perseguidos políticos que não pudessem comprovar o vínculo laboral da época, foi garantida uma indenização em parcela única.

Desde a sua criação, a Comissão de Anistia passou por desafios diversos que envolveram tanto a organização física, financeira e administrativa do órgão até uma revisão do conceito de reparação (GATHE, 2015, p. 61-67). Contudo, apesar das especificidades de cada fase, e da sua importância no desenrolar da nossa transição inconclusa, vale destacar a gestão iniciada em 2007 com a nomeação de Paulo Abrão como presidente da Comissão de Anistia. Esse foi o período em que o grupo se dedicou a repensar os trabalhos realizados até então e passou a defender que, além da dimensão material, concretizada nas indenizações, era fundamental que se investisse também em uma dimensão moral da reparação.

Paulo Abrão na 87ª Caravana da Anistia (Imagem: Reprodução Internet)


Essa nova agenda política, iniciada em 2007, tinha como fundamentação uma série de debates em torno da aplicação da chamada Justiça de Transição em países que passaram por governos autoritários. O objetivo desse modelo de justiça seria o de implementar medidas de natureza política e jurídica que visassem garantir a não repetição dos crimes cometidos no passado ditatorial. Entre essas estratégias estariam a retratação e a reformulação do Estado; a promoção de valores democráticos e de respeito aos direitos humanos; e a execução de políticas de verdade, memória, justiça e reparação (CUYA, 2011, p. 39-43).

Seguindo essa perspectiva, conforme se pode identificar nos relatórios anuais de trabalho do grupo, eles passaram a estimular uma série de projetos e pesquisas sobre a ditadura militar a fim de ampliar os estudos e informações sobre esse período e aproximar esses dados da sociedade civil. Nesse interim, foram criados o projeto Anistia Política: educação para a democracia, cidadania e direitos humanos, destinado ao estímulo na produção de materiais educativos, ciclos de debates, palestras e produções culturais de temáticas relacionadas à ditadura; o projeto Marcas da Memória, voltado para a criação de espaços de fala e registro de experiências de pessoas impactadas por violência durante a ditadura; as Clínicas do Testemunho, destinadas a dar atenção psíquica a pessoas afetadas direta e indiretamente pela violência de Estado; e instituiu-se a criação do Memorial da Anistia Política, que seria tanto um centro de pesquisas quanto um museu destinado à exposição de materiais coletados pela Comissão de Anistia (BRASIL, 2010).

Cartaz de evento do projeto “Marcas da Memória” (Imagem: Reprodução Internet)


Junto a esses trabalhos, o grupo também inseriu uma série de medidas simbólicas nas cerimônias de apreciação dos pedidos de reparação. Uma das mais importantes foi a inserção do pedido oficial de desculpas do Estado aos anistiados, momento em que o presidente da Comissão se levanta e pede, em nome do Estado, desculpas pelos crimes cometidos. Esse foi um momento relevante da transição brasileira, porque foi quando se passou a reconhecer a anistia como um pedido de perdão do Estado e não mais como um perdão concedido pelo Estado. Dessa forma, desconstruía-se a ideia de que a militância política desses indivíduos durante a ditadura seria algo a ser envergonhar. Reconheceu-se o status do ofendido; o direito à resistência; e o direito de adotar e defender as próprias convicções políticas. Conforme afirmaram Paulo Abrão e Marcelo Torelly, esse pedido de perdão visaria reparar a dignidade dos anistiados, que teria sido violada pela interrupção de seus projetos de vida (ABRÃO e TORELLY, 2010, p.46).

Outra medida importante inserida nesse processo foi a criação das Caravanas da Anistia, que são sessões de apreciação dos requerimentos de anistia realizadas em diversas cidades brasileiras. Criadas em 2008, as Caravanas teriam a função de dar mais transparência aos trabalhos do órgão e conseguir maior publicidade para as novas ações. Por normalmente ocorrerem em lugares públicos, menos formais do que os palácios de Brasília, essas sessões possibilitaram uma aproximação entre a sociedade e o tema, já que são realizadas em espaços mais acessíveis, como em universidades; no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro; e até no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Charqueadas, Rio Grande do Sul (ROTTA, 2012).

Cartaz da Carvana da Anistia (Imagem: Reprodução Internet)


Conforme analisa o antropólogo João Baptista Rosito, trabalhar com a reparação moral envolveu a implantação de uma série de atos simbólicos e as Caravanas da Anistia seriam o maior exemplo disso. Além do pedido oficial e público de perdão do Estado, nelas foram introduzidos uma série de ritos como: a exibição de um vídeo institucional da Comissão de Anistia, pelo qual se apresenta uma versão resumida da história da ditadura e da resistência, destacando, por fim, os momentos da luta pela anistia e dos trabalhos da Comissão; a construção da Bandeira das Liberdades Democráticas, composta por retalhos feitos de emblemas de diferentes movimentos sociais e instituições parceiras da Comissão, representando, dessa forma, a luta compartilhada por todos esses grupos; o ato de doação de documentos para o Memorial da Anistia Política; e as homenagens (ROSITO, 2010, p.69-110).

Bandeira das Liberdades Democráticas (Imagem: Reprodução Internet)


Tendo em vista essa agenda política da Comissão pode-se dizer que, além do trabalho ímpar em relação à implementação de políticas de memória, o grupo também é responsável por um riquíssimo acervo sobre a ditadura militar brasileira e sobre a transição. Além das entrevistas, filmes, documentários, relatórios de trabalho e livros promovidos por ela, esse acervo é composto, também, pelos mais de 60 mil requerimentos de anistia que foram apreciados pelo órgão, cada qual com fontes diversas anexadas pelos requerentes a fim de comprovar a perseguição sofrida durante a ditadura.

Arquivo na Comissão da Anistia (Imagem: Reprodução Internet)


Por todos esses aspectos, pode-se identificar o potencial desse acervo. Considerando que ele foi pouquíssimo estudado e que ainda carece de organização adequada e de maior facilidade de acesso, pairam os questionamentos sobre os riscos que ele sofre à luz das atuais instabilidades políticas. Como exemplo, basta relembrar as criticadas nomeações de conselheiros em setembro de 2016, assim como as demissões de 19 dos 24 membros da Comissão de Anistia. Isso, junto à renúncia de Paulo Abrão à presidência do órgão, provoca incertezas sobre a continuidade da agenda política que a Comissão adotou até então. Instaladas essas dúvidas, registra-se aqui a importância dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo e enfatiza-se a relevância de se preservar o seu legado através da continuidade das políticas de memória, verdade e reparação; e da garantia de acesso ao seu acervo para os futuros estudos sobre a ditadura militar brasileira.

Glenda Gathe é historiadora e professora de História.

 

Notas:

[1] ÉBOLI, Evandro. Nomeado para a Comissão de Anistia aparece como colaborador da ditadura. O Globo. 02 de Setembro de 2016.

[2] SANSÃO, Luiza. Alberto Goldman e o retrocesso da Comissão da Anistia. Carta Capital. 6 de fevereiro de 2017. Disponível em: Carta Capital.

 

Bibliografia:

Paulo Abrão; Marcelo Torelly. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. (Org.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010, p. 104-123.

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações educativas da Comissão de Anistia: relatório de gestão – 2007-2010. Brasília: Comissão de Anistia, 2010.

Esteban Cuya. Justiça de Transição. Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 37-78, jan/jun 2011.

Evandro Éboli. Nomeado para a Comissão de Anistia aparece como colaborador da ditadura. O Globo. 02 de Setembro de 2016. Disponível em: O Globo

Glenda Gathe. A Virada Hermenêutica da Comissão de Anistia: a anistia brasileira e as diferentes estratégias de reparação (2007-2010). 159 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2015.

Glenda Mezarobba. Um acerto de contas com o futuro. A anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro. 2003. 213 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de ao Paulo (USP), São Paulo. 2003.

Carla Simone Rodeghero; Gabriel Dienstmann e Tatiana Trindade. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, pp. 270-273.

João Baptista Rosito. O Estado pede perdão: a reparação por perseguição política e os sentidos da anistia no Brasil. 2010. 141 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2010.

Maria José Rotta (Org.). Caravanas da Anistia: o Brasil pede perdão. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2012.

Luiza Sansão. Alberto Goldman e o retrocesso da Comissão da Anistia. Carta Capital. 6 de fevereiro de 2017. Disponível em: Carta Capital.


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