O mundo do fim é um “mundo dos homens”: o futuro é feminista, decolonial, antirracista e antiespecis
Em 8 de março de 2018, para marcar o dia de luta, escrevi um texto à guisa de manifesto. Nele, eu elencava algumas formas de construção sócio-histórica do patriarcado e demonstrava, brevemente, como essas formas materiais e discursivas estabelecidas e reiteradas ao longo de séculos continuavam (e continuam) atuando como violentos dispositivos de opressão. Dispositivos que deixam, ainda hoje, mulheres e meninas em posições vulneráveis na sociedade, no mercado de trabalho e dentro de suas próprias casas. No entanto, ao fim, tratava-se de um texto otimista, pois eu havia decidido relembrar conquistas de nossas lutas e exaltar a força que os movimentos feministas vinham adquirindo nas últimas décadas.
Neste ano de 2021, não consigo ter o mesmo otimismo. Não que o movimento das mulheres tenha se enfraquecido, muito pelo contrário. Mas porque fomos literalmente atropeladas pelo fim do mundo – e, claro, o fim do mundo é pior para os grupos mais desamparados. Dentro destes grupos, ainda pior para aquelas que estão na base da pirâmide social: mulheres pobres, racializadas, habitando, sobretudo, as periferias do capitalismo.
Em 2020, as consequências do capitalismo predatório sob o qual vivemos tornaram-se mais evidentes com a eclosão de uma nova pandemia. Há décadas, cientistas dos mais diversos campos disciplinares apontam para o desenvolvimento de um novo período geológico, o Antropoceno, marcado pelo domínio dos humanos (homo sapiens) na Terra e, especialmente, pelas consequências – muitas delas irreversíveis – da ação humana sobre o planeta. Ainda que tenhamos experiência histórica de pandemias, o atual desequilibro ambiental e climático, associado à altíssima velocidade de circulação de mercadorias e pessoas e à brutal desigualdade de condições de vida no mundo, nos torna a cada dia mais suscetíveis tanto a catástrofes “naturais”, quanto ao surgimento de novas doenças.
Junto a isso, experimentamos, todas e todos, os desdobramentos do capitalismo financeiro (ou capitalismo pós-fordista). A hegemonia da Razão neoliberal, aliada às novas tecnologias de comunicação e controle, deu lugar a formas cada vez mais “flexíveis” de trabalho. Objetivamente, nas últimas décadas, generalizaram-se, por um lado, os contratos temporários, com poucos ou nenhum direito trabalhista; por outro, os serviços para aplicativos, em que trabalhadoras e trabalhadores ficam sujeitos às demandas do mercado e as empresas de tecnologia para a quais trabalham não se responsabilizam pelo valor de sua remuneração, por sua segurança, férias ou aposentadoria. Mas o desmonte do Estado de bem-estar social não está presente apenas no mundo do trabalho. Ele também se manifesta, por exemplo, nos investimentos cada vez mais baixos em saúde e educação públicas.
Este conjunto de fatores deixa as populações em situação de total insegurança (alimentar, financeira, habitacional e de saúde). Desde março de 2020, a pandemia de covid-19 aprofundou este cenário e, como sempre, tanto a doença como a falta de assistência abateram-se de modo mais violento sobre os mais pobres. Para as mulheres, razão de ser da escrita destas palavras, este contexto teve consequências devastadoras, e muito já foi escrito e divulgado sobre isto. São elas que dominam grande parte das profissões que estão na linha de frente do combate ao Corona-vírus. No Brasil, a enfermagem (que também abarca técnicos e auxiliares da área) é composta por 85% de mulheres. Dentre as técnicas e auxiliares, que estiveram e estão em contato mais direto com os pacientes, a maioria é negra e tem menor salário. De modo geral, o trabalho do cuidado – fundamental neste momento, sendo ou não remunerado – e outros serviços essenciais, como caixas de supermercado, têm recorte explícito de gênero e raça. As mulheres também sofreram mais com a suspensão das atividades presenciais de escolas e creches, pois é sobre elas que recai, em sua maioria, a responsabilidade sobre as crianças e a “chefia do lar”. Em todo o mundo, o confinamento resultou num aumento exponencial da violência doméstica e do feminicídio.
Em abril de 2020, Sonia Coelho, dirigente da Marcha Mundial das Mulheres, comentou este panorama:
"Com a dificuldade de procurar os serviços de atendimento à mulher, a situação de subnotificação é uma realidade nos estados. Mesmo que os serviços estejam funcionando, as mulheres se sentem coagidas a se manter em silêncio, dada a dificuldade de fazer uma ligação com o seu agressor dentro de casa ou furar o isolamento para denunciar e correr o risco de ser contaminada com a covid-19. (...) A pandemia jogou luz sobre um problema antigo na vida das mulheres que têm vínculos de trabalho precarizados e já dividem a jornada de trabalho produtiva com a reprodutiva, executando trabalho doméstico e de cuidados em casa. Com uma renda baixa por estarem em postos de trabalho de baixa remuneração, a desigualdade social aprofunda ainda mais a sobrecarga das mulheres que estão tanto na linha de frente da pandemia, como as caixas de supermercado, trabalhadoras da área de saúde e serviços sociais, quanto as que estão em casa fazendo o cuidado de saúde, alimentação e higiene por toda a família. (...) O que também observamos é um maior número de assédios e violência nas ruas, o que se intensifica com as ruas vazias, mal iluminadas e com transporte público precário”.
A pandemia, provavelmente, chegará ao fim – ou, ao menos, ao fim de seu estado mais crítico. Nós, porém, continuaremos vivendo neste mundo em ruínas. E o mundo em ruínas, é bom lembrar, é um mundo dos homens. É um mundo que foi narrado e governado por homens, é um mundo que foi colonizado e explorado por homens: homens e suas armas e barões assinalados, homens e seus falos materiais e simbólicos, homens e suas vozes particulares convertidas em consciência universal, homens e seu fardo civilizatório. No século XVI, O filósofo Francis Bacon, em passagem bastante citada, afirmou: “a natureza é uma mulher pública. Devemos subjugá-la, penetrar seus segredos e acorrentá-la de acordo com nossos desejos”. E assim foi feito, ao longo dos séculos, não apenas com a “natureza” – vista como externa ao ser humano, na divisão fundadora do mundo moderno – mas com todos os seres que foram a ela associados: mulheres, “sociedades primitivas”, sociedades racializadas. A filósofa e professora Émilie Hache afirmava, em 2016: “a relação entre a destruição da natureza e a opressão das mulheres se compara a uma Fita de Möbius: as mulheres são inferiores porque fazem parte da natureza, e podemos maltratar a natureza porque ela é feminina”. No livro O Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, Silvia Federici descreve e demonstra as relações entre afirmação do capitalismo (e consequente exploração predatória dos recursos naturais), colonialismo e subjugação das mulheres (ao mesmo tempo como força reprodutiva e de trabalho).
A pesquisadora brasileira Claudia Junqueira de Lima Costa (UFSC), por sua vez, nos chama a atenção para a necessidade, urgente, de se aliar a luta anticolonialista e anti-imperialista a uma crítica às opressões econômica, racial, sexual e de gênero. Ela afirma:
"O feminismo cumpre um importante papel de desenvolver críticas à racionalidade masculina, ao sujeito cartesiano, àquele que emerge a partir das dicotomias entre razão-emoção, sujeito-objeto, natureza-cultura. Feministas, a partir de diversos lugares geopolíticos e epistemológicos, estão desenvolvendo outras formas de racionalidade".
Sendo assim, hoje, com este texto dolorido, convoco a pensarmos e construirmos, ainda que aos pouquinhos, cotidianamente, uma luta interseccional, que considere todas as diferentes formas de dominação, discriminação e opressão. Vamos juntas promovendo um combate anticapitalista, antiespecista, decolonial e antirracista, único caminho para um futuro possível, para um futuro em comum.
Gabriela Mitidieri Theophilo é doutora em história social pela UFRJ, professora de francês em formação e editora da revista Mulheres do fim do mundo.
Crédito da imagem destacada: Photo by Fer Padilla on Unsplash
Sobre a ideia de Antropoceno, suas relações com o capitalismo, com uma nova subjetividade e com novas formas de percepção e experimentação do tempo, recomendo os últimos estudos do pesquisador Rodrigo Turin.
https://www.brasildefato.com.br/2021/03/08/o-genero-feminino-na-linha-de-frente-sao-elas-que-combatem-diariamente-a-covid-19 ; https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/ibge-mulher-tem-peso-importante-no-chamado-trabalho-invisivel https://www.ecodebate.com.br/2020/02/03/mulheres-sao-responsaveis-por-75-de-todo-o-trabalho-de-cuidado-nao-remunerado-no-mundo-diz-oxfam/
Sobre a ideia de ruína faço, aqui, uma apropriação livre das reflexões de Isabelle Stengers e Anna Tsing.
Refiro-me à cultura ocidental, hegemônica.
Refiro-me, claro, à divisão “natureza / cultura”.
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