O que esperar das rememorações de 50 anos do golpe chileno?
Atualizado: 3 de mai. de 2023
O segundo ano do mandato de Gabriel Boric começou com a difícil missão de conduzir as rememorações dos cinquenta anos do golpe de Estado chileno. Na primeira semana de março o governo divulgou um documento que traz uma linha de orientação interna para os diversos órgãos públicos sobre qual o tom que essas rememorações devem ter. O texto, intitulado La democracia es memoria y futuro, suscita importantes reflexões a respeito de uma data que certamente será marcada por intensas disputas.
“Las largas sombras de la Dictadura”
Em 2019, os historiadores Julio Pinto Vallejos, María Angélica Illanes, Rolando Álvarez, Mario Garcés e Verónica Valdivia[1] lançaram coletivamente, junto com o jornalista Francisco Figueroa e o crítico literário Naín Nómez, um livro intitulado Las largas sombras de la ditadura: a 30 años del plebiscito. A obra reúne reflexões dos sete autores sobre as marcas autoritárias deixadas pelo plebiscito de 1988. Tal plebiscito, retratado no filme No (2012), de Pablo Larraín, derrotou nas urnas o projeto de continuidade no poder do ditador Augusto Pinochet, iniciando assim o processo de transição política.
No livro, os historiadores destacam a importância das datas redondas para uma avaliação mais profunda e detalhada dos acontecimentos históricos. O diagnóstico lança luz sobre as “sombras” da ditadura e de suas práticas que ainda resistem no Chile. A permanência de um capitalismo neoliberal registrou consequências nefastas não só para a sociedade, mas, principalmente, para o meio ambiente chileno, que foi cada vez mais deteriorado em benefício de empresas e indústrias que lucram com a privatização da água, por exemplo. Outra consequência importante é a vigência da Constituição de 1980, promulgada ainda durante a ditadura através de um plebiscito fraudulento.
A obra, lançada em junho de 2019, não inclui as mudanças provocadas pelo chamado estallido social, que ocorreu em outubro desse mesmo ano. Dois anos depois do estallido e do fracasso da aprovação de uma nova Constituição no final do ano passado, parece que o Chile ainda está preso a essas “largas sombras”, que agora pesam sobre o novo governo em mais um 11 de setembro.
O 11 de setembro chileno
O dia 11 de setembro de 1973 possui, no imaginário político latino-americano, algumas imagens muito marcantes. As fotografias que mostram o palácio presidencial La Moneda em chamas enquanto é bombardeado por aviões das próprias Forças Armadas chilenas entraram para o rol das imagens que “arderam na consciência de uma geração”.
A expressão, utilizada pela filósofa Susan Sontag para se referir à trágica fotografia de crianças vietnamitas correndo das bombas de napalm, pode ser apropriada também para o caso chileno. Hoje, ao entrar no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, localizado na cidade de Santiago – um dos maiores museus desse tema na América Latina –, o público se depara com diversas televisões que reproduzem as cenas do golpe e o discurso feito pelo então presidente Salvador Allende de dentro do La Moneda em chamas. Essas imagens são certamente impactantes, mas não mais do que a sala seguinte do museu, que traz cartas de crianças às autoridades do governo buscando respostas sobre seus entes queridos que não eram vistos desde o dia 11 de setembro de 1973. Por ser o La Moneda um dos grandes lugares de memória do Chile, a porta lateral do Palácio – conhecida como Morandé 80 – ficou fechada e coberta durante os anos de ditadura militar, visando evitar manifestações no local. Trata-se da porta por onde havia saído o corpo sem vida de Allende no dia do golpe.
Até pelo menos 1978, o dia 11 de setembro era comemorado oficialmente pela ditadura como a data de “libertação” do Chile da ameaça do comunismo. Poucas manifestações conseguiam fazer frente à memória positiva que o regime buscava consolidar nesses primeiros anos. Entretanto, nos anos seguintes, iniciaram-se as primeiras manifestações contrárias, que foram ganhando cada vez mais espaço com a forte crise econômica que eclodiu a partir de meados dos anos 1980. De acordo com os historiadores Steve Stern e Peter Winn:
Os ativistas desafiaram a memoria oficial em seu próprio terreno minado – retiraram da palavra “onze” seu significado de celebração do aniversário da libertação dos marxistas e a converteram em seu símbolo de protesto e discordância. (WINN; STERN, 2014, p. 209)
Com o fim da ditadura militar, em 1990, a data passou a ser alvo de disputas de memória que emergiam no espaço urbano da cidade de Santiago. Os governos da Concertación de Partidos por la Democracia, nos anos redondos do aniversário do golpe, participavam de uma “marcha” comemorativa que percorria o seguinte trajeto: saía da praça Los Heróes, onde manifestantes e organizações políticas ficavam concentrados, e ia em direção ao La Moneda, passando pela rua Morandé e pela porta – que foi reaberta e está até hoje mantida como era em 1973. De lá, seguiam para o Cementerio General de Santiago, onde se encerravam os atos oficiais.
Apesar do caráter oficial da marcha, ela costuma incluir enfrentamentos entre forças policiais e manifestantes, especialmente nos arredores do Cementerio General. Em 2005, um grupo de cientistas sociais da Universidad de Artes y Ciencias Sociales (ARCIS) fez uma intervenção na marcha com o objetivo de inverter o seu sentido. Para esse grupo, o caminho trilhado do La Moneda até o Cementerio – representava a morte e o fim do sonho de construção de uma outra sociedade vivido durante os anos de governo Allende. Esses intelectuais buscaram inverter o sentido da marcha para reposicionar no centro do poder político chileno os projetos que haviam sido interrompidos pela ditadura:
A convocatória foi para marchar no sentido inverso, quer dizer, partindo desde o Cementerio General e em direção ao centro cívico da cidade: deixar a morte e suas vítimas confinadas no cemitério após homenageá-las, para reposicionar os atores sociais na vida política do país. A mudança se centrava em como queremos recordar os nossos mortos, seus ideais, seus projetos e em que lugar da cidade (ESCOBAR NIETO, 2008, p. 23).
O nome da marcha, “Rearme”, faz referência a uma ação performativa realizada durante seu percurso. Uma fotografia do Memorial del Detenido Desaparecido y el Ejecutado Político foi dividida em 64 peças, distribuídas por alguns integrantes da marcha. A proposta era levar, através da reconstrução desse mosaico, os mortos e desaparecidos de volta ao La Moneda. Durante a caminhada, diversas ações rearmes foram realizadas espontaneamente pelos integrantes, a “cada cierto tiempo los asistentes a la marcha se organizaban y juntaban las piezas rearmando el memorial” (ESCOBAR NIETO, 2008, p. 24).
Durante as primeiras horas da marcha, desde a saída do Cementerio General em direção ao La Moneda, não houve enfrentamentos com a polícia, mas a marcha foi desviada por um grande contingente policial, que passou então a acompanhar e vigiar os manifestantes:
À medida que os marchantes foram chegando, foram pegando as peças do memorial (...) ao mesmo tempo também foram chegando as forças policiais, cuja ação repressiva terminou de dispersar a manifestação e terminou com um saldo de uns 30 detidos que foram liberados no decorrer da tarde (ESCOBAR NIETO, 2008, p. 25).
A repressão que ocorreu nos mostra como o sentido da marcha é extremamente controlado. Entretanto, nas diversas poblaciones[2] que cercam Santiago, as disputas que envolvem a data realmente aparecem. Nos quarenta anos do golpe, lideranças das poblacionesde Villa Francia e Lo Hermida denunciaram a atuação das forças de segurança pública no local. De acordo com as declarações feitas na época, a situação em que viviam era de um verdadeiro “Estado de sítio”:
E digo com tudo porque já estamos cansados de ser criminalizados, acusados de terroristas, que nossa imagem está manchada porque usamos capuz. Honestamente, os únicos terroristas aqui, os únicos que violam os direitos humanos é o Estado chileno e a polícia no dia do 11 de setembro e em todas as vezes que atividades culturais são realizadas em nossa população.
No ano passado, vinte e sete pessoas foram presas por perturbarem a ordem pública e oito policiais carabineiros ficaram feridos. As declarações do governo em 2022 fizeram menção ao rechaço da proposta constitucional que havia ocorrido no início do mês e buscaram reconstruir a confiança em um projeto político mais democrático. No ano passado, o presidente Boric disse:
Eu confio firmemente na sabedoria do povo. E isso significa não desprezar, não menosprezar as decisões tomadas pelo povo. Porque, ao contrário de 49 anos atrás, a derrota que sofremos nas urnas – aqueles de nós que fomos pela opção derrotada pelo Aprovação – foi uma derrota democrática, ao contrário de 49 anos atrás, quando eram as armas, a violência, a ignomínia, a traição, a aquele que tenta se impor.
O que esperar de 2023?
O texto divulgado pelo governo no dia 3 de março de 2023 teve por objetivo “descartar el intento de algunos sectores de instalar la idea de una agenda revanchista y polarizadora” sobre os cinquenta anos do golpe. Essa preocupação já demonstra o clima instável em que vive o Chile hoje acerca da memória sobre o golpe. Em conversa com pesquisadores e jovens militantes de esquerda chilenos, é possível perceber que as expectativas para o 11 de setembro deste ano não são as melhores: há uma preocupação evidente com a forma como o governo irá conduzir a data, mas, em especial, há uma sensação de desânimo frente ao rechaço da Constituição que poderia pôr fim a uma das sombras mais permanentes do regime ditatorial de Pinochet.
O documento começa fazendo uma avaliação sobre a composição da sociedade chilena atual. É a primeira vez que teremos uma geração inteira nascida depois do fim da ditadura vivendo uma data comemorativa:
Desta vez, a comemoração incorpora uma geração que cresceu com o fim da ditadura, que se tornou adulta sem a ameaça da Guerra Fria e do holocausto nuclear, que é nativa da informática, que constrói identidades próprias, que vive a globalização, que tem como prioridade salvar a Terra do aquecimento global e tem aprofundado as lutas históricas e reivindicações feministas. Precisamos olhar o passado com mais olhos e perspectivas renovadas, para enfrentar com lucidez um futuro que se avizinha incerto.
Esse momento é visto pelo governo como uma oportunidade para produzir um intercâmbio entre as gerações e para agradecer àqueles que defenderam a democracia. Democracia, memória e futuro são os grandes conceitos destacados pelo documento presidencial, que faz também menção à solidariedade internacional que o Chile teve nos anos sombrios de ditadura.
A parte do texto mais destacada pelos jornais e publicações que o comentaram é o trecho em que são mencionados os perigos para a democracia atualmente:
Se as forças que acabaram com a democracia em 11 de setembro de 1973 parecem agora distantes, vemos diariamente a irrupção de novas correntes que a ameaçam. Esta é também, portanto, uma ocasião para refletir sobre os riscos e ameaças que ela sofre atualmente e para renovar nosso absoluto compromisso democrático.
O texto termina convocando todos a pensar esse momento como uma forma de “renovar la esperanza en un mañana mejor” e destacando a palavra “futuro”. A partir de agora, o Ministério da Cultura, através da mesa interministerial para a comemoração dos cinquenta anos do golpe, começará a desenhar o que vai ser o projeto do governo para a data. Mas sabemos que o sentido será disputado ainda com os diversos setores da sociedade civil que, como demonstrado neste texto, se apropriaram dessa data ao longo dos anos e a tornaram um momento ativo de construção política. Os dados foram lançados e só nos resta esperar e acompanhar para saber de que forma os cinquenta anos do golpe serão lembrados.
Gostaria de encerrar esta coluna com uma mensagem que li numa visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O Museu abriu um espaço dentro de sua exposição para que os seus visitantes pudessem responder a seguinte pergunta: “A 50 anos do golpe, o que acontece se esquecemos?”. As respostas foram dadas em pequenos papeis que podem ser vistos no Museu e são geralmente anônimas. Em uma dessas respostas encontrei uma frase que nos faz refletir sobre o momento atual chileno:
Por aí dizem que quem esquece sua história esta destinado a repeti-la. A memória é parte do que somos agora e o que é mais importante que conhecermos a nós mesmos?
Notas:
[1] A historiadora Verónica Valdívia foi entrevistada pelo site História da Ditadura em 9 dez. 2021: https://youtu.be/a7Pavqlkn-8.
[2] Como são conhecidas as regiões mais pobres, afastadas do centro de Santiago. Seria algo equivalente às “favelas” brasileiras.
Referências:
DROGUETT, Roberto. Los lugares de la memoria del golpe y la dictadura militar en Chile. Un análisis autoetnográfico de la marcha del 11 de Septiembre. Cuad. Neuropsicol. 2007; 1(2), 150 – 164.
DROGUETT, Roberto; ESCOBAR NIETO, Marcia. Performatividad, memoria y conmemoración: la experiencia de la marchaRearme em el Chile post-dictadorial. Forum: qualitative social research, vol. 9, n. 2, Art. 36, maio 2008, p. 2-3.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 12. 1993.
PIPER, Isabel. La memoria como moda y la conmemoración como farándula: reflexiones críticas em torno a los 40 anos del golpe de estado em Chile. Anuari del conflicte social, 2013, p. 1018.
SILVA, Lays Correa da. A marcha do 11 de Setembro em Santiago: disputas de memória através do espaço urbano. Revista Latino-Americana de História, v. 9, n. 21, p. 11-31, 2019.
VALLEJOS, Julio Pinto (et al). Largas sombras de la dictadura: a 30 años del plebiscito. LOM Ediciones, 2020.
WINN, Peter; STERN, Steve; LORENZ, Federico; MARCHESI, Aldo (Org.). No hay manana sin ayer: batallas por la memoria histórica en el Conor Sur. Santiago: LOM Ediciones, 2014.
Como citar este artigo:
CORRÊA, Lays. O que esperar das rememorações de 50 anos do golpe chileno? História da Ditadura, 2 mai. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-que-esperar-das-rememoracoes-de-50-anos-do-golpe-chileno. Acesso em: [inserir data].
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