O que falaremos sobre o horror? Os corpos e a História que há de vir
Atualizado: 9 de jan. de 2023
Não são poucas as vezes em que nos perguntamos: como será elaborada a história destes últimos quatro anos? Trata-se de uma questão ampla e recorrente, já que também a encontramos nas redes sociais, em conversas cotidianas ou em simples expressões como “a História lembrará” ou “a História cobrará”. Neste breve texto, não gostaria de apresentar um modelo ou uma fórmula pronta que sirva de resposta para esta interrogação, sobretudo porque ainda estamos imersos nas consequências deste período, tão marcado pelo uso da intolerância e da truculência diária como formas de governo. No entanto, se algo pudesse ser endereçado para a historiografia que há de vir, se fosse possível enviar um recado para os historiadores e historiadoras do futuro – seja ele próximo ou distante –, minha mensagem, ou melhor dizendo, o meu apelo seria: lembrem-se dos corpos.
Se a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva representa uma oportunidade de apaziguar as cisões de um tecido social tão fraturado pelos discursos de ódio e pela demonização da diferença, isso não pode significar um esquecimento de tudo o que se passou, especialmente após anos de ataques constantes que a extrema-direita de Bolsonaro direcionou às instituições, às minorias, à saúde pública, aos pobres e ao meio ambiente. Não existe reconstrução democrática, não existe pacificação possível e efetiva sem o reconhecimento do terror e sua reparação, o que também implica na necessidade de “desbolsonarizar” a política brasileira. Basta nos recordarmos dos efeitos que sentimos hoje em decorrência da impunidade daqueles que promoveram desaparecimentos, mortes, torturas e tantas outras violências que caracterizaram a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
Qualquer possibilidade de que os laços sejam reatados em nossa sociedade dependerá de um trabalho coletivo que permita nomear, desprezar e tornar inadmissível o racismo, a misoginia, o negacionismo, o anti-indigenismo, a homofobia e o ecocídio que o bolsonarismo instaurou e permanecerá instaurando de norte a sul do Brasil. Neste mesmo empenho, de nada ajuda a afirmação de que “já passou”, de que foi um “delírio coletivo” ou de que aquilo que vivenciamos foi “uma loucura”: a historiografia que há de vir terá o papel de jamais esquecer a dimensão estratégica e racional do horror. Diferentemente de dizer que se tratou de uma histeria coletiva, ela não poderá excluir o caráter racional das práticas violentas que foram legitimadas, calculadas e banalizadas pelos aparatos governamentais, por setores da mídia, por representantes religiosos e por indivíduos ligados aos saberes médico e jurídico.
É importante reconhecer que este esforço já se encontrava sendo feito no campo acadêmico, inclusive em importantes exercícios de diagnóstico e intervenção na cena política, dentre os quais destaco os trabalhos de Letícia Cesarino, Ester Solano e Rodrigo Nunes. Contudo, no interior da nova paisagem política que se abre neste início de 2023, gostaria de insistir na necessidade de que a dimensão do corpo ocupe um papel central na história que há de vir, uma vez que a sua presença é inseparável das permanências e das rupturas ocorridas nos últimos anos. Muitas vezes naturalizado ou simplesmente ignorado, o corpo é um campo de batalha, é o objeto por excelência dos mecanismos de poder, da manifestação dos preconceitos, do fanatismo religioso ou do desprezo que instaura a morte ou que simplesmente deixa morrer. Afinal, “é só uma gripezinha”. Todo gesto ou discurso que foi ou que ainda é produzido no campo social atravessa a nossa dimensão corpórea, uma vez que é ela quem liga a vida com a política. Se o corpo é a superfície de inscrição dos acontecimentos, como nos ensina Michel Foucault (1994), são nas suas extensões, marcas, movimentos, gritos e sofrimentos que os historiadores e as historiadoras deverão interrogar o abismo que se tornou a nossa atualidade.
Uma genealogia do bolsonarismo deverá levar em conta que o horror que vivenciamos nestes últimos quatro anos também foi fruto do racismo, da desigualdade e da violência que constituíram nossa história. Mesmo assim, não devemos ignorar as condições de possibilidade específicas para a existência do governo de um militar reformado que, em 1992, após o seu terceiro mandato como deputado, já defendia impune a esterilização de pobres.
Foi na crença em um tipo de corpo utópico, munido de revólveres e pautado pela evocação das Forças Armadas como sinônimo de virilidade e potência, que um corpo ideal passou a povoar o pensamento, os desejos e os anseios de seus apoiadores, como bem assinalou Caroline Bauer (2019). Do mesmo modo, foi a partir de uma dada compressão do que é o corpo do outro que emergiram afirmações como “não te estupro porque você não merece” ou “o filho é gay porque não apanhou direito”, expressões de ódio que puderam germinar na podridão que sempre habitou o país, sob o apoio e a chancela de parcelas significativas da população. Igualmente, foi com relação ao corpo que se evocaram a suposta “ideologia de gênero”, a “mamadeira de piroca”, o “kit gay”, o “mimimi das minorias” e a “doutrinação educacional”, temores constantemente repetidos por aqueles que se apresentavam como sinônimos da moralidade, mas que se escondiam atrás das máscaras da hipocrisia.
Sabemos que foram diversos os fatores que tornaram possível o início de um governo que pode ser entendido como uma verdadeira aberração ética e política. Mas se os corpos foram visados, objetificados e atingidos pelas estratégias de uns ou pela incompetência criminosa de outros, eles próprios permitirão aos historiadores e às historiadoras do futuro assinalarem as consequências da normalização do terror.
A história que há de vir deverá lembrar que, ao contrário do fortalecimento das políticas de saúde, um bem indispensável para a população, um país inteiro foi visado pelo desmonte e pela negligência que caracterizaram os últimos quatro anos, quando mais de 690 mil pessoas que perderam suas vidas em decorrência da COVID-19, muitas das quais como cobaias de medicamentos ineficazes. Ao contrário de um período de segurança pública efetiva e comprometida com todas as parcelas da população, esta história fará emergir os corpos das chacinas que as diversas operações militares produziram nas periferias brasileiras. Ao contrário de um país que se vangloriou como a “terra do agro” ou como o “celeiro do mundo”, a história que há de vir apresentará uma cena diferente, composta por mais de 33 milhões de pessoas que passaram fome nestes anos de mandato. Ao contrário da preservação ambiental, serão lembrados os corpos dos povos originários e de pessoas fundamentais para a proteção destes territórios, como Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados em junho de 2022. Ao contrário da euforia pela vinda do coração imperial, os historiadores e historiadoras escreverão sobre o silêncio daqueles que não demonstraram nenhuma sensibilidade com as perdas que atingiram todo o país. Ao contrário da prudência exigida para um cargo governamental, um pressuposto importante para a democracia, não nos esqueceremos das lives que buscavam instigar, ofender e ridicularizar críticos e opositores, alimentando ainda mais a fúria de uma multidão sedenta pela “moral” e pelos “bons costumes”. Em suma, falar dos corpos será falar igualmente da condição frágil e precária da vida, tão negligenciada pela falsidade daqueles que se afirmavam como os seus mais ferozes e legítimos defensores.
A genealogia do bolsonarismo não poderá ser feita sem que se interpele a história dos corpos que foram visados pelo autoritarismo e pela ambição de poder. No olhar atento para os sinais que neles foram assinalados, para as penúrias da fome, da doença e dos discursos odiosos que lhes foram endereçados que poderemos produzir novos cenários de transformação política. Tal capacidade de abrir outras paisagens, de afirmar novas formas de vida, novas maneiras de existir, de habitar, de governar, de se relacionar com o outro e com o mundo demandarão também o que Imhoff, Queirós e Toledo (2016) chamam de um “tempo potencial”, isto é, um tempo que nos permita afirmar possíveis. Para estas intelectuais feministas, urge em nosso presente um tempo que nos possibilite lutar contra o que nos é imposto como uma direção irrecusável.
É pensando neste “tempo potencial” que ouso reunir algumas das tristes recordações dos últimos quatro anos para dizer que, apesar de tudo e depois de tudo, ainda somos capazes de recusar aquilo que dizem ou que querem dizer que nós somos ou poderemos ser. Mesmo a duras penas, fomos e somos capazes de não aceitar o que foi afirmado por alguns como um destino ideal: o nacionalismo, a teocracia, o não-reconhecimento da existência do outro, a superioridade racial, a macheza, o charlatanismo, a heterossexualidade compulsória, o culto às armas ou a suposta liberdade de proferir preconceitos para justificá-los como opinião.
A permanência daqueles que ainda sonham com estes imaginários empobrecidos é um sinal de que a liberdade é sempre provisória, uma vez que ela só se dá em práticas, embates e disputas constantes e que demandam a nossa atenção. Tudo isso pode nos assustar, mas os momentos recentes de alívio nos lembram que uma historiografia comprometida com os valores democráticos é também composta por pessoas que são capazes de sorrir, pois uma vida fascista requer corpos tristes, como ressaltou Foucault (2018). O riso é uma arma poderosa diante dos apaixonados pelo poder que, aos berros, anseiam por um mundo regido somente a partir dos seus valores.
Rir é um dos sinais da sensibilidade e um aspecto fundamental para o saber histórico, pois é precisamente a dimensão sensível que nos possibilita levar em conta as dores, os sentimentos e os anseios dos corpos narrados em nossos textos, apresentados em nossas imagens e mencionados em nossas falas. Neste sentido, é pela capacidade de poder respirar que os historiadores e historiadoras do futuro deverão se recordar daqueles que perderam suas vidas sem ar. É pela possibilidade de se alimentar que os praticantes da historiografia deverão enfatizar aqueles que vasculharam latas de lixo em busca de ossos para vencer a fome. É pela procura em romper com o preconceito que este trabalho histórico deverá inserir a presença dos corpos das mulheres, da população LGBTQIA+, dos indígenas e dos quilombolas, assinalando que um presidente foi capaz de descrever que indivíduos poderiam ser “pesados em arrobas”.
Intermináveis foram as baixezas que seria impossível enumerar as situações infelizes que sentimos ou que pudemos acompanhar. Entretanto, desejo insistir que a atenção para os corpos é indispensável para uma historiografia que recusa o simples argumento de que “o que passou, passou”. Se os vencidos aguardam de nós uma redenção, tal como descreveu Walter Benjamin (1987), é diante dos corpos daqueles que se foram, ou das feridas e cicatrizes dos que ficaram que a reconstrução dos tecidos sociais demandará, antes de tudo, uma História que procure se inserir nas fraturas da nossa sociedade para agitá-la. É no sacudir da poeira e de toda a sujeira reunida pela instrumentalização do ódio que novos bordados, tramas e desenhos serão possíveis.
Não que o conhecimento histórico seja uma solução para tudo – sabemos que ele não é. Não que ele sirva para curar – sabemos amargamente que ele não serve. Não que ele faça justiça, pois também sabemos que ele não é um tribunal – como a vida longa e impune de vários torturadores da ditadura civil-militar nos faz recordar. A História talvez nos ajude a fazer outro tipo de coisa: afrontar o nosso presente para deslocar o próprio possível, mostrando que o passado e o futuro podem ser muito mais diversos do que qualquer guru, astrólogo, general, médico sem ética ou representante religioso fanático consegue imaginar. Contra a caretice, a hipocrisia e o mau-caratismo daqueles que queriam, que querem ou que vão querer dizer quem somos e o que poderemos fazer, me dou ao direito de sonhar com novos tempos possíveis. Será ali, nas brechas da indocilidade, que poderemos conceber uma História à flor da pele, à flor dos textos, à flor das telas e teclados, enfim, à flor do mundo.
Créditos da imagem destacada: Blog Farofeiros.
Gabriel Pochapski é doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
REFERÊNCIAS:
BAUER, Caroline. La dictadura cívico-militar brasileña en los discursos de Jair Bolsonaro: usos del pasado y negacionismo. Relaciones Internacionales, v. 28, n. 57, p. 37-51, dez. 2019.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal, 1994.
FOUCAULT, Michel. Introdução à uma vida não fascista. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. 2018, p. 17-28.
IMHOFF, Aliocha; QUEIROS, Kantuta; TOLEDO, Camille. Les potentiels du temps: art et politique. Paris: Manuella Editions, 2016.
Ladrão de nove dedos não aceito em meu país
O ladrão de nove dedos,quer destruir nosso país,fora ditadura comunista do Brasil
Espetacular, meu amigo.