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O que há de crítica na “crítica ao identitarismo”?

“Populismo”, “conservadorismo”, “progressismo”... Atualmente, a gramática política da esfera pública está cercada de velhos e novos “ismos”. Um deles é tão volátil que transita da esquerda para a extrema direita; ora como reivindicação, ora como acusação. Trata-se do assim chamado “identitarismo”, sobre o qual teço aqui algumas considerações. Devo salientar, porém, que não irei abordá-lo dentro do espectro político geral, que incluiria as vertentes reacionárias (homofobia, misoginia, supremacia branca, xenofobia etc.).


O meu foco está num sentido de “identitarismo” atribuído às lutas dos grupos historicamente excluídos dos espaços de poder, das representações coletivas e de garantias sociais básicas. Aliás, uma das principais dificuldades em compreendê-lo está justamente nisso: o identitarismo é muito mais uma adjetivação (identitário!) do que um conceito tipo ideal, na acepção weberiana. Isso porque, ao longo dos últimos anos, mesmo entre as esquerdas, as mais variadas reivindicações políticas e sociais têm sua legitimidade não só indagada, mas desqualificada enquanto “identitária”. Basta ver o sentido pejorativo que muitas vezes lhe são atribuídas quando relacionadas à “ignorância”, à “histeria” e até às “agendas imperialistas”, como apresento adiante.


Identitarismo

Estes e outros termos foram encontrados a partir de uma análise de artigos de opinião publicados no portal de notícias Brasil 247, uma mídia digital com linha editorial de esquerda criada em 2011 pelo jornalista Leonardo Attuch. Neles, observei o que críticos à esquerda e militantes que assumem causas assim rotuladas entendem por “identitarismo”, com vistas a compreender o que há de novo na luta dos excluídos e o que define o termo guarda-chuva. Visto como um momento de reflexão das esquerdas longe do poder, o meu recorte partiu da queda da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ao retorno do ex-presidente Lula, na eleição de 2022.[1]


Com isso, foram levantados 13 artigos, dentre os quais 9 expõem suspeitas ou censuram o identitarismo, contra apenas 4 que procuram responder às críticas ou emitir opiniões mais matizadas. Através da autodescrição de quem os assina, é possível apontar alguns dados importantes. No primeiro grupo, todos os autores identificam-se como homens cis, têm ensino superior e possuem filiações partidárias.[2] A maioria é militante do Partido da Causa Operária (PCO), seguido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), além de um dirigente sindical. Os demais não indicam vínculos institucionais, apenas sua identificação com as esquerdas.


O segundo grupo também é formado majoritariamente por homens cis, contando com apenas uma mulher cis, e com as mesmas formações. Em sua maioria, são ligados ao PT, mas, diferentemente dos petistas anteriores, provêm de seções antirracistas, feministas e LGBTQIA+. Em todo caso, entre 2016 e 2022, a maioria das opiniões emitidas no portal não só desqualificaram a temática, como rechaçaram sua presença nas agendas de esquerda. Assim, cabe analisar o que cada um entende, afinal, por identitarismo.


Identidade ou identitarismo?


Antes disso, convém diferenciar o termo derivativo de seu substantivo original, isto é, a palavra “identidade”. Sobretudo porque os textos analisados não se preocupam com isso e o debate sobre a identidade não pode ser reduzido ao polimórfico “identitarismo”. Contudo, reabrir o esmagador arcabouço teórico dessa questão em tão curto espaço excederia em muito a minha competência. Contento-me em afirmar apenas que a problemática da identidade advém da longuíssima discussão sobre as razões pelas quais as pessoas criam diferenciações entre si.


O que hoje chamamos de identidades foram, por muito tempo, deduzidas da existência orgânica, da qual até mesmo as manifestações culturais seriam o seu reflexo. Foi apenas no final do século XIX que os estudiosos começaram a falar mais em “construções” do que em “natureza”.[3] Faltou-lhes, porém, explicar seus referentes (gênero, etnia, credo, classe etc.). Foram necessárias décadas para compreendê-los como construções socioculturais contingentes e relacionais que também criam os seus opostos – muito em função da atuação de intelectuais anticolonialistas, antirracistas, feministas e pós-estruturalistas, em âmbito transnacional.[4]


Isso para falar da dimensão teórica das identidades, que não diz respeito a uma diferença em si, tampouco significa que sejam superficiais. Fosse assim, as pessoas não discriminariam com base em ideias de diferença; nem surgiriam grupos que transformam rótulos pejorativos em identidades afirmativas. E é a partir desse último ponto que podemos falar em identitarismo, na medida em que, com o auxílio do sufixo “ismo”, o conceito de identidade é transformado em objetivo, ou seja, “se temporaliza em conceito de movimento” (Koselleck, 2006, p. 325). Ainda que, como dito, esse sentido muitas vezes não seja criado “a partir de dentro”, mas atribuído de maneira exterior aos movimentos diretamente envolvidos.


Em todo caso, Angela Alonso (2023) sistematizou pontos cruciais da história das correntes políticas assim designadas atualmente no Brasil. Segundo a socióloga, após a redemocratização, dois estilos dominaram a política das esquerdas. O primeiro veio das lutas por direitos sociais, liberdades civis e democracia, nascidas com o fim da luta armada em finais da década de 1970. Essa corrente, ligada ao sindicalismo operário, a setores da Igreja e a veteranos no combate ao regime, originou o PT. Mesmo com a queda do muro de Berlim, ela seguiu o estilo conhecido ao longo do século XX de passeatas e greves verticalizadas, uso farto de vermelho e símbolos e imagens de heróis do socialismo (Alonso, 2023, p. 58).


A segunda vertente prosperou nos anos de Lula e Dilma, mas ao largo de seus governos. Essa nova geração queria tratar de questões que, para cada passo adiante, vinham mais dois para trás, como a dominação branca e masculina, a liberdade sexual, a criminalidade etc. Uma primeira ala, que Alonso (2023, p. 59) nomeia neossocialista, se inspirou na descentralização organizacional do zapatismo, que recuperou a mitologia agrária do campesinato e uma simbologia latino-americana, de guerrilhas a Frida Kahlo. Outra, batizada de autonomismo, partiu da recusa a qualquer hierarquia. Sua estética era mais anarquista, com táticas de escracho e ação black bloc (Alonso, 2023, p. 61).


Os dois flancos dessa segunda vertente, conforme Alonso (2023, p. 28), convergiram para o surgimento de uma esquerda alternativa que, ao mesmo tempo, reconhecia as ações dos governos do PT e os pressionava por mais. Isso passou a ser feito não só virando de cabeça para baixo os marcadores “essencialistas” da diferença, como através da presença em espaços antes tacitamente vedados à diversidade. É nestes termos que Alonso (2023, p. 74) fala, sem juízo moral, de uma “política identitária”, na medida em que esta investe numa visibilização da diferença, só que não a reiterando enquanto tal, mas contrariando modismos, estereótipos e desigualdades.


Em uma perspectiva de longa duração, a atenção com a identidade na política nunca foi uma completa novidade na história brasileira, nem mesmo para as esquerdas que hoje a condenam. Desde a queda da Monarquia, em 1889, os ideais de pertencimento ao país são disputados politicamente para consolidar as nossas identidades. O que em um primeiro momento, obviamente, foi feito pelas elites, relegando ex-escravizados, indígenas, mulheres, entre outros, às margens da representação nacional.


No século seguinte, “quem é o povo brasileiro?” foi uma questão central. A noção de “democracia racial”, por exemplo, foi criticada pelo “jacobinismo negro” que, paralelamente, divergiu da esquerda marxista (Flores, 2007). Nem esta, a propósito, ficaria de fora. Embora impelida a revelar “cientificamente” a realidade social, as velhas esquerdas de 1950 a 1970 não só eram nacionalistas, como romanticamente enalteciam o passado brasileiro. Seja simbolicamente, com a busca do Cinema Novo pelas raízes populares que serviriam para moldar o futuro (Ridenti, 2014); seja politicamente, ao atuarem pela modernização desenvolvimentista da nação (Delgado, 2007).


Interpretando o identitarismo


Feitas estas distinções, passo finalmente para o conteúdo dos artigos. De maneira oportuna, começo pela forma como as esquerdas do primeiro grupo encaram o tema da identidade para entender por que hoje ela “incomoda dentro do âmbito da esquerda”, como expresso no artigo de Matheus Brum (2021). Assim como Marcelo Ridenti (2014) concluiu sobre as antigas esquerdas, parece que a tendência de renegar preocupações desse viés é ainda muito forte. Quando não servem para desqualificar seus companheiros, são recalcadas em nome de uma demanda iluminista de explicar, pelas lentes do marxismo, a “história como ela realmente é, ou seja, fruto da luta de classes e do movimento das forças produtivas”, como defendeu Paulo Amaro Ferreira (2021).


Isso fica evidente em dois textos sobre controvérsias recentes ligadas à história brasileira. O primeiro trata das celebrações do feriado gaúcho de 20 de setembro, que marca o início da chamada Revolução Farroupilha, em 1835. O autor está indignado com uma “esquerda pequeno burguesa” que se limita “a emitir juízos de valores”, por meio de seus “tribunais da inquisição identitária” (Ferreira, 2021). Em suas palavras, o principal exemplo disso seria a crítica feita aos líderes do movimento farroupilha por serem escravocratas. O segundo discute a ação do grupo que ateou fogo no monumento paulista em homenagem ao bandeirante Borba Gato em 2021. Na mesma linha, o autor reprovou os métodos da “‘luta’ dos identitários”, sobretudo por içarem “questões duvidosas como ‘branquitute, decolonizar’”, e assim por diante (Farac, 2021).


Por um lado, os autores assumem posições hiper-historicistas ao verem o passado como um objeto estável que prescinde da cultura e da sucessão das épocas. Por outro, admitem a sua relação com o presente quando o ligam com a luta pela reforma agrária. Mas essa afirmação, contraditoriamente, só é possível quando reconhecemos as permanências da ordem colonial vinculando-as ao passado da colonização. Dizer que efemérides e estátuas carregam os sentidos e significados de uma época, e só dela, rejeita o segundo ponto de vista e sugere, vejam só, a existência de uma “identidade temporal coesa”: a da sincronização cronológica (Avelar, 2022, p. 147). Nessa linha, embora omitida, haveria apenas uma única consequência decorrente desse passado, com a qual as esquerdas precisam lidar. Essa, como defende Alex Saratt (2020) em seu artigo, não será solucionada pela “promoção de grupos ‘minoritários’”.


Para os autores do primeiro grupo, o que realmente importa é a luta de classes, vista como a base sobre a qual perpassam todos os problemas sociais e “o ponto de partida de toda luta progressista”, segundo defende Brum (2021). Apenas com a “união de forças” ante o capitalismo, escreve Luiz Fernando Padulla (2021), “eliminaremos gradativamente os demais problemas”. O erro do identitarismo, nas palavras do mesmo autor, é de que “de nada adianta elegermos indígenas, pessoas gays, trans, negros sem a conscientização de que o sistema nos impõe uma luta de classes que precisa ser enfrentada” (Padulla, 2021).


Surge, assim, uma oposição mecanicista entre um universal (a “luta de classes”) e um circunscrito (as “identidades”), como se este último não fosse fruto de lutas contra práticas seculares de exclusão sexual, racial, étnica e regional. Sem contar que, se a questão está nos marcadores da diferença, é do lado dos que atacam essas lutas sociais que é possível perceber um “identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus” (Safatle, 2022, p. 47). Afinal, não é isso que reiteram os argumentos “universalistas” sobre o 20 de setembro e os bandeirantes paulistas?


Os seus olhares, contudo, parecem pouco inclinados ao ensinamento de Carlos Drummond de Andrade e seu anedótico czar naturalista que, ao caçar só homens, ficou espantado ao descobrir que também se caçam andorinhas. Isso porque, a partir de um olhar externo, tendo em vista que seus interlocutores sequer são mencionados, o identitarismo é definido negativamente como a ausência do componente de classe e a inversão do que seria a ordem natural de qualquer mudança social. Isto é, primeiro o todo, depois as suas partes. Em razão disso, três procedimentos são feitos para apartá-lo do campo da esquerda. O primeiro é a pura desqualificação moral, rotulando-o de “infantil”, “esquizofrênico”, “histérico” e “demagogo” (Ferreira, 2021; Padulla, 2021; Saratt, 2020). O próprio discurso de Padulla segue essa premissa ao negar aos segmentos arrolados qualquer capacidade de compreender o “sistema”.


O segundo combina a definição negativa ao aspecto depreciativo para lhe atribuir a falta “de um mínimo de pensamento crítico” (Simonard, 2021). Novamente sem buscar compreendê-lo a partir de dentro, sobram prescrições do tipo “lembrar um pouco de Marx ajuda” (Cavalcante, 2017) ou “não leram Marx, ou o leram muito mal” (Ponciano, 2020). O terceiro, por fim, o associa com a direita e a uma suposta manipulação imperialista, na medida em que suas causas, ou forneceriam munição aos opositores, ou seriam indiferentes ao espectro político e aos interesses internacionais (Padulla, 2021; Atalla, 2022).


Em contraposição, os artigos do grupo que assume as críticas ao identitarismo procuram não apenas respondê-las, mas operar a partir delas para mostrar como estão cientes de seus desafios. O texto de Ádamo Antonioni (2022) não hesita em dizer que “a política identitária não pode se limitar a promover identidades [...], mas deve estar voltada para o bem comum”. Sem articulá-la com a precariedade, a representatividade apenas reforçaria “a retórica neoliberal da meritocracia, do individualismo, da competitividade capitalista”, que transforma tudo em produto de consumo (Antonioni, 2022).


Em relação à ausência da luta de classes como um critério definidor, em nenhum dos artigos é possível ler essa suposta característica. O que há, de fato, é a intersecção entre componentes de classe, de gênero, étnicos, regionais etc. Como escreve Artur Figueiredo (2021), os menores salários são reservados às pessoas negras, na medida em que se tira lucro da desigualdade racial, como conclui Thaíse Pacheco (2022). “As ‘minorias’”, escreve Mauro Lopes (2022), “são a imensa maioria do povo brasileiro” e é essa diversidade que forma “todos os segmentos de trabalhadoras e trabalhadores do país”.


Identitarismo, uma representação das identidades


Em síntese, concluo que os dois grupos compreendem o identitarismo de diferentes formas. O primeiro o define pelas lentes daquilo que acredita ser o método mais “fático” de análise da sociedade e de seus próprios dogmas. Logo, o identitarismo aparece sempre como um “outro”, desprovido de originalidade e de causas basilares, como a classe social. Já o segundo procura demonstrar que o que estaria ausente no identitarismo é, na verdade, uma preocupação tão central que leva este a interseccionar uma miríade de desigualdades sociossexuais e étnico-raciais. Conforme seus fiadores, essa seria a sua principal marca na luta dos excluídos de hoje, fazendo também com que o termo abarque um mosaico de movimentos sociais.


Resta saber como, e se, o debate será motivado de outras formas, a não ser pela deslegitimação prévia de grupos igualmente excluídos, moralizando e idealizando certas posições políticas.


 

Notas:

[1] A filtragem dos materiais deu preferência aos artigos que fizeram uso do termo guarda-chuva “identitarismo”, excluindo aqueles que pudessem não se remeter a ele diretamente.

[2] Outros marcadores sociais não são declarados nas autodescrições.

[3] Convém destacar os estudos seminais de Émile Durkheim e Marcel Mauss e de Max Weber.

[4] O debate reúne nomes que vão de Frantz Fanon a Edward Said; e de Judith Butler a Gayatri Spivak, passando por Lélia González.


Referências:

ALONSO, Angela. Treze: A política de rua de Lula e Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

ANTONIONI, Ádamo. O identitarismo é um empecilho à esquerda nas eleições de 2022? Brasil 247, 6 mai. 2022.

BRUM, Matheus. O identitarismo na Luta de Classes. Brasil 247, 5 jan. 2021.

CAVALCANTE, Ângelo. Deu a louca no PSOL. Brasil 247, 7 ago. 2017.

DELGADO, Lucília de Almeida das Neves. Nacionalismo como projeto de nação: a Frente Parlamentar Nacionalista (1956-1964). In. FERREIRA, Jorge; AARÃO REIS, Daniel (Orgs.). As esquerdas no Brasil: nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FERREIRA, Paulo Amaro. O 20 de setembro e a Revolução Farroupilha. Brasil 247, 21 set. 2021.

FIGUEIREDO, Artur. Consciência Negra: identitarismo não é mimimi, é resistência! Brasil 247, 24 nov. 2021.

FLORES, Elio Chaves. Jacobinismo negro: lutas políticas e práticas emancipatórias (1930-64). In. FERREIRA, Jorge; AARÃO REIS, Daniel (Orgs.). As esquerdas no Brasil: a formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2006.

PACHECO, Thaíse. O racismo da Folha exige retratação ou boicote. Brasil 247, 16 jan. 2022.

PADULLA, Luiz Fernando. Identitarismo sem luta de classe é demagogia! Brasil 247, 3 dez. 2021.

PONCIANO, Roberto. A falsa dicotomia entre identitarismo e luta de classes. Brasil 247, 20 nov. 2020.

SARATT, Alex. Uma esquerda conservadora? Brasil 247, 4 ago. 2020.

SIMONARD, Juca. Identitarismo serve para justificar agressões imperialistas. Brasil 247, 17 mar. 2021.


Como citar este artigo:

GELLER JUNIOR, Lúcio. O que há de crítica na “crítica ao identitarismo”?História da Ditadura, 2 set. 2024. Disponível em: . Acesso em: [inserir data].

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