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Foto do escritorVictor Figols

“O racismo é o normal na La Liga”*

Precisou um jovem de 22 anos, negro, imigrante e jogador de um dos maiores clubes de futebol do mundo, se revoltar – após inúmeros ataques racistas – para fazer a Espanha e o mundo perceberem o óbvio: o futebol espanhol, La Liga e a sociedade espanhola são racistas.


Desde quando Vini Jr. chegou na Espanha, foram pelo menos 10 ataques racistas. O primeiro foi em março de 2021, no clássico contra o Barcelona FC. O caso foi arquivado, porque as autoridades não identificaram o agressor. Não houve punição ao clube catalão.


Em março de 2022, em Mallorca, torcedores começaram a insultar Vini Jr. após ele comemorar um gol com uma dança. O então capitão da equipe de Mallorca, Antonio Raíllo, disse que Vini Jr. provoca seus adversários e usa o racismo como uma defesa às críticas que sofre. Assim como no primeiro caso, as autoridades arquivaram o processo, entendendo que não se tratava de crime de ódio. Aqui é interessante recordar que, no código penal espanhol, o racismo não é tipificado como crime. Na verdade, crimes cometidos contra minorias são entendidos como crimes de ódio e, só depois, podem ser entendidos como “motivações racistas”. Desde 2008, existe um ministério voltado para pensar políticas públicas de combate a preconceitos, principalmente contra as minorias. Entretanto, o Ministério da Igualdade mostra-se insuficiente em casos como este.


Vini Jr. em um jogo amistoso contra o Juventus em 2018. Wikimedia Commons.

Foi a partir do terceiro caso de racismo, que pudemos perceber uma escalada de ataques racistas a Vini Jr. Em setembro de 2022, no clássico contra o Atlético de Madrid, diversos torcedores rivais chamaram Vini Jr. de “macaco”, antes e ao longo da partida. Segundo as autoridades, os insultos racistas estavam dentro da normalidade da rivalidade esportiva. Na ocasião, o presidente da Associação Espanhola de Empresários de Jogadores, Pedro Bravo, afirmou que as “provocações” de Vini Jr. eram “macaquices”.


Em dezembro de 2022, houve mais um ataque racista contra o jogador. Enquanto caminhava para o banco de reservas, Vini Jr. foi xingado de mono (macaco em espanhol) por torcedores do Real Valladolid CF. O jogador usou as redes sociais para denunciar os ataques racistas que sofrera e aproveitou para criticar La Liga por não combater o racismo no futebol. A resposta do presidente da La Liga, Javier Tebas, foi evasiva. Ele disse apenas que “La Liga combate o racismo há anos” e que o jogador estava mal-informado. Apesar desta declaração, La Liga não tomou nenhuma atitude sobre o caso. Já o Real Valladolid identificou e baniu 11 torcedores do estádio até o final da temporada.


Em janeiro deste ano, o jogador sofreu um dos ataques racistas mais absurdos até então. Um dia antes do jogo contra o Atlético de Madrid, torcedores colchoneros estenderam uma faixa com os dizeres “Madrid odia el Real”, acompanhada de um boneco enforcado vestindo a camisa de Vini Jr. A gravidade deste caso, aparentemente, não foi o suficiente para as autoridades agirem. Na verdade, só em maio deste ano é que a polícia identificou três torcedores, que foram banidos dos estádios e acusados de “crime de ódio”.


Em fevereiro de 2023, mais dois casos de racismo contra Vini Jr. foram registrados, em Mallorca e Osasuna. No caso de Mallorca, um homem foi identificado e, por ser reincidente, as autoridades estudaram banir o racista dos estádios – por apenas seis meses –, além de aplicar uma multa de 3 mil euros.


Em março deste ano, mais dois novos casos. O primeiro em Sevilla, quando o Real Betis recebeu o Real Madrid em jogo válido pela La Liga. O jogador foi xingado inúmeras vezes de “macaco” durante a partida. O segundo caso desse mês foi no clássico contra o Barcelona, no Camp Nou. Em alguns momentos do jogo, foi possível ouvir insultos racistas dirigidos ao jogador. O clube catalão foi denunciado. Nos dois episódios, La Liga aceitou as denúncias de Vini Jr. e encaminhou para as autoridades espanholas. Não houve punição para nenhum dos clubes.


A gota d’água veio no dia 21 de maio de 2023. O Valencia CF recebeu o Real Madrid em jogo válido pela 35ª rodada da La Liga. O clube valenciano, apesar de estar flertando com a zona de rebaixamento, celebrava o centenário do estádio Mestalla. No minuto 27 do segundo tempo, começaram a ecoar cantos racistas dirigidos a Vini Jr., além disso, pelo menos um homem teria feito gestos imitando um macaco. Seguindo os protocolos da competição, o jogo foi paralisado pelo árbitro Ricardo De Burgos Bengoetxea e o sistema de som do estádio soltou um alerta para que os insultos parassem. Já no final da partida, após uma confusão entre os jogadores dos dois times, Vini Jr. foi expulso, mesmo tendo sido vítima de racismo e de ter sofrido uma agressão de um jogador do Valencia. Vini Jr. deixou o terreno de campo revoltado, denunciando os atos racistas que sofrera e toda a incapacidade da arbitragem em lidar com a situação.


Logo após a partida, o técnico do Real Madri, Carlo Ancelotti, denunciou os atos racistas no estádio Mestalla, e saiu em defesa de seu jogador. O próprio Vini Jr. usou suas redes sociais para – mais uma vez – denunciar o racismo sistêmico da La Liga: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam”.


A revolta do jogador ao expor o racismo no futebol espanhol escancarou um problema latente na sociedade espanhola: o racismo. Os desdobramentos de todos os casos de racismo em que Vini Jr. foi vítima mostram que o racismo é um problema real na Espanha.


O caso do dia 21 de maio é ainda mais gritante, pois todo o seu desenrolar demonstrou que o racismo é normal no futebol espanhol e, mais do que isso, não há interesse em combatê-lo de fato.


Mesmo a arbitragem tendo seguido o protocolo de paralisar a partida, na súmula do jogo, os atos racistas não foram reportados no primeiro momento. Um adendo foi acrescentado à súmula, após a repercussão do caso tomar proporções para além da própria Espanha. Os responsáveis pelo VAR daquela partida editaram as cenas da confusão para induzir o árbitro Burgos Bengoetxea de que Vini Jr. foi o responsável pela confusão no final do jogo, omitindo a agressão do jogador do Valencia, que deu um mata-leão no jogador do Real Madrid. Após a repercussão negativa, o responsável pelo VAR foi demitido.


No dia 23 de maio, pelo menos quatro pessoas foram identificadas e detidas, todas suspeitas de terem cometido atos racistas contra Vini Jr. no último 21 de maio. Porém, assim como aconteceu com aqueles que penduraram o boneco representando o jogador, os suspeitos foram soltos depois prestarem depoimento.


Após a declaração de Vini Jr. dizendo que o racismo era algo normal no futebol espanhol, houve uma enxurrada de discursos racistas vindo de várias direções.


O diretor do Valencia FC abusou do racismo e da xenofobia, dando a entender que Vini Jr., por ser estrangeiro, teria ouvido outra palavra ao invés de mono, e negou os atos racistas por parte da torcida. O técnico do clube valenciano, Rubén Baraja, minimizou o racismo e ainda soltou a clássica frase: não somos racistas, “tivemos e ainda temos jogadores negros em nosso time”. Aqui vale relembrar o caso Diakhaby, jogador do Valencia, que foi vítima de racismo em 2021. O caso foi arquivado por falta de provas e ninguém foi punido.


Entre os dirigentes do futebol espanhol, a fala de Javier Tebas talvez tenha sido a que mais reforça o caráter racista de La Liga. O presidente da instituição usou suas redes sociais para atacar – novamente – Vini Jr. Além de minimizar o racismo em La Liga, Tebas ainda desqualificou o jogador e deu a entender que o atleta deveria se limitar a fazer aquilo que é de sua competência e não questionar a ação da Liga.


Aqui precisamos falar brevemente quem é Tebas. De longe, esta pessoa é a menos preparada e interessada em resolver o racismo no futebol espanhol. O presidente da Liga é um fascista declarado de longa data. Nos anos 1980, Tebas fez parte do Fuerza Nueva, um partido que buscou assumir a herança deixada pela Falange (partido franquista). Hoje, o presidente da Liga é abertamente apoiador do VOX, um partido de extrema-direita ultranacionalista que destila ódio, xenofobia e racismo na Espanha. Tebas também enxerga com bons olhos a Liga fazer acordos comerciais com a monarquia absolutista – ou ditadura teocrática – da Arábia Saudita.


Em suma, as autoridades responsáveis pelo futebol espanhol são coniventes com o racismo no futebol. Dentre os dirigentes, uma das poucas vozes que saiu em defesa de Vini Jr. foi Luis Rubiales, presidente da Real Federación Española de Fútbol, que além de condenar os atos racistas, repudiou a fala de Tebas.


Além das falas racistas dos dirigentes do futebol espanhol, é possível encontrar diversos jornalistas e torcedores pela internet tentando justificar o racismo sofrido por Vini Jr.: “ele não entende o idioma”, ou pior, “Vini Jr. é um provocador”, dando a entender que o jogador merece os insultos racistas.


Da parte do governo espanhol, o primeiro-ministro Pedro Sánchez anunciou uma campanha para combater os discursos de ódio nos estádios. Entretanto, na Espanha, já existe uma série de legislações e entidades que visa combater o racismo. Para além do já citado Ministério da Igualdade, criado em 2008, existe um conjunto de leis que pretende lutar contra a xenofobia e o racismo especificamente no futebol. A Ley del Deporte (1990) recebeu um adento em 1992, prevendo medidas disciplinares em caso de racismo. Porém foi em 2007 que uma lei específica para combater o racismo no esporte espanhol foi criada a Ley contra la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte. É verdade que, antes da criação da dita lei, já existiam órgãos responsáveis por monitorar casos de intolerância. Entre 2008 e 2010, mais dois órgãos foram criados, ambos visando combater a intolerância no esporte: Comisión Estatal contra la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte (2008) e o Reglamento de prevención de la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte (2010). Há ainda um observatório que monitora casos de racismo e xenofobia no esporte espanhol: Observatorio Español del Racismo y la Xenofobia. O observatório pertence ao Consejo Superior de Deportes, uma divisão do Ministerio de Cultura y Deporte. Todas essas leis e órgãos demonstram que existem mecanismos que podem combater o racismo no esporte – e no futebol – espanhol, mas, na prática, vemos uma falta de vontade política para que os casos de racismo sejam levados às instâncias judiciais maiores. Ou seja, as instituições de combate ao racismo no futebol espanhol estão perpetuando o racismo na medida em que as denúncias são arquivadas ou as investigações dos casos não têm continuidade.


Percebam como o futebol espanhol – e seu entorno – é estruturalmente racista. Todas as denúncias de Vini Jr. ou foram arquivadas ou não tiveram uma conclusão. Nas poucas denúncias em que os acusados foram identificados, ninguém foi preso ou punido. Para além do racismo cotidiano nos estádios, o jogador ainda tem que enfrentar torcedores, dirigentes e jornalistas que justificam o racismo chamando Vini Jr. de “provocador”. O jogador sofre pelo menos duas vezes: primeiro, quando é vítima de racismo e, segundo, quando é culpado pelo racismo que sofreu.


La punta del iceberg, 24 maio 2023, Eneko.

Mais do que uma vítima da estrutura racista do futebol espanhol, Vini Jr. é uma vítima do racismo estrutural da sociedade espanhola. Não podemos perder de vista que o racismo, como conhecemos hoje, é fruto da Europa colonizadora e do catolicismo. A Espanha é só mais um país europeu que ajudou a forjar o racismo contemporâneo. A colonização e a escravidão de negros africanos é uma invenção europeia, branca e católica. E tais ideias ainda seguem vivas na sociedade espanhola. O país não enfrentou o seu passado colonizador e, somado a isto, ainda viveu uma experiência fascista com a ditadura de Francisco Franco, entre 1939 e 1975. Aliás, o passado franquista segue bem vivo na sociedade espanhola. Não à toa, grupos de extrema direita ocupam diversos setores da sociedade – de partidos políticos, como o já citado VOX e o Partido Popular (PP), até torcidas de futebol, como o caso dos ultras do Valencia FC (os Yomus), e tantas outras.


Dos anos 1990 para cá, são incontáveis os jogadores que sofreram racismo no futebol espanhol. Estamos falando de jogadores, em sua grande maioria, imigrantes, que são explorados pelos clubes e pela Liga: Roberto Carlos, Diakhaby, Marcelo, Eto'o, Paulão, Kameni, Yaya Touré, Agbonavbare, Umtiti, Iñaki e Nico Williams, Akapo, Chukwueze, Daniel Alves, Neymar, Vinícius Tanque, entre muitos outros, da primeira divisão às divisões mais amadoras. Todos são vítimas de um racismo estrutural e estruturante do futebol espanhol, pois os clubes da La Liga exploram vários jogadores negros e estrangeiros, e vende a competição para o mundo como a “La Liga das estrelas”. La Liga se beneficia do racismo, desde que as vítimas não denunciem.


O posicionamento de jogadores, torcedores, clubes, dirigentes, jornalistas e até políticos é importante, mas é preciso mais. Os mecanismos de combate ao racismo no futebol espanhol já existem, mas não são efetivos. É preciso cobrar e pressionar as autoridades espanholas para que haja punições exemplares aos racistas – e aqui o governo brasileiro poderia atuar também, já que um acordo de combate ao racismo no esporte foi firmado entre Brasil e Espanha no começo de maio. É preciso combater na estrutura. E no caso de figuras repugnantes, como é o caso de Tebas, é preciso extirpá-los do futebol. Aliás, Tebas não deveria ter lugar no futebol e muito menos na sociedade.


* Este texto foi publicado originalmente no portal Ludopédio.


 

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Como citar este artigo: FIGOLS, Victor. “O racismo é o normal na La Liga”. História da Ditadura, 30 mai. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-racismo-e-o-normal-na-la-liga. Acesso em: [inserir data].


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