O cinema de Godard e a ditadura militar brasileira
Atualizado: 4 de out. de 2022
No dia 13 de setembro de 2022, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard optou voluntariamente por encerrar a própria vida e recorreu ao suicídio assistido, método legalizado na Suíça, país onde residia há décadas. Rapidamente, a imprensa mundial passou a noticiar o ocorrido e a prestar as devidas homenagens ao artista de noventa e um anos de idade – sendo mais de setenta de carreira [I] – que somou cerca de cento e cinquenta produções audiovisuais em todos os formatos e suportes. Alguns chegaram a dizer que junto de Godard morria o cinema – ou até mesmo o século XX.
Nascido em Paris em 3 de dezembro de 1930, no interior de uma riquíssima família suíça, Godard foi marcado desde o início de sua carreira pelo desejo de se fazer contemporâneo e de refletir sobre questões morais, políticas e sociais de seu tempo. Em 1959, filmou Acossado (À bout de souffle, no original), seu primeiro longa-metragem, mundialmente saudado como um marco na história do cinema devido a uma série de inovações técnicas e formais. Nas seis décadas que se seguiram, Godard jamais interrompeu o exercício da experimentação formal e a discussão em torno da linguagem cinematográfica e da natureza das imagens. Sua obra reinterpretou constantemente a si mesma e construiu uma verdadeira mitologia do cinema em torno de seu nome.
O cinema de Godard chegou ao Brasil no primeiro semestre de 1961, quando Acossado estreou por aqui. Rapidamente, o cineasta se tornou objeto de disputa em nossa crítica. Em outubro do mesmo ano, alguns de seus curtas anteriores foram exibidos na VI Bienal de São Paulo, um importante evento para o cinema brasileiro moderno. A inovação godardiana encontrou no Brasil um país ávido pelas ideias de “novidade” e de “revolução” no cinema, nas demais artes, na política, na economia e nos costumes. Naqueles primeiros anos da década de 1960, jovens cineastas e críticos proclamavam o nascimento de um novo cinema no Brasil.
Ao longo dos anos 1960, conforme mais filmes de Godard chegavam ao Brasil, o cineasta franco-suíço ganhava mais notoriedade em nossos debates – sobretudo na crítica especializada e no circuito fechado de cinéfilos, em geral jovens universitários das classes média e alta, intelectualizados e politizados (geralmente à esquerda). Mas não só: no fatídico ano de 1968, auge de sua popularidade no Brasil, Godard chegou a figurar numa coluna social carioca como “mito”, uma celebridade de sucesso cujos filmes lotavam as salas de cinema não só do Cine Paissandu – reduto absoluto da classe média cinéfila – mas até mesmo de um cinema mainstream como o Rian, do Grupo Severiano Ribeiro, cuja programação habitual era composta basicamente por fitas de Hollywood e comédias nacionais (LOPES, 1968) [II]. Naquele ano, foram lançados quatro filmes de Godard no Brasil, e seu nome figurou até em charges e nas seções humorísticas dos jornais, como se vê nas imagens abaixo.
Em guarda contra a ameaça comunista
Há muito tempo, pesquisas brasileiras destacam a importância de Godard na história do cinema brasileiro moderno [III] e na história da censura cinematográfica no país. Trabalhos que se debruçaram sobre o conjunto de processos de censura cinematográfica durante a República [IV] apontaram Godard como um objeto de atenção especial por parte dos censores da ditadura militar [V].
No último dia 13, no contexto das múltiplas publicações a respeito do cineasta e de sua morte, a página no Instagram do Arquivo Nacional compartilhou a imagem de um parecer de censura emitido em 1968 sobre A chinesa (La chinoise, no original), filme lançado na França em 1967 e a princípio completamente interditado no Brasil. O post, que viralizou em redes sociais e portais de notícias, reporta o falecimento e traça breve descrição de Godard, cuja “produção polêmica” teria encontrado “forte resistência institucional” durante a ditadura. O Arquivo Nacional destaca a existência de vinte e dois processos censórios de filmes do realizador no fundo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Por fim, o texto comenta rapidamente o conteúdo do parecer de autoria da técnica Jacira de Oliveira, apontando a contradição entre a apreciação técnica positiva (“cinema dos mais perfeitos”) e o veto, de teor agressivamente anticomunista.
Godard decidiu filmar A chinesa no final de 1966, quando o maoísmo se tornava um tema da moda entre a esquerda francesa. Segundo o cineasta, sua intenção era produzir uma reportagem sobre a agitação revolucionária da juventude do período. O filme acompanha cinco jovens que se reúnem em um apartamento burguês na região parisiense para formar uma célula de atuação maoísta. Godard age como um etnógrafo e deixa que as personagens falem por si e denunciem o vazio e o dogmatismo dos próprios discursos. O filme expõe a desconexão com a realidade, a desunião de classes (a única mulher de origem humilde se torna copeira do grupo) e a inconsequência da militância de veraneio dos jovens maoístas. Dessa maneira, após sua estreia na França em setembro de 1967, A chinesa despertou a indignação de maoístas, stalinistas, trotskistas, situacionistas e até mesmo de embaixadores chineses que assistiram ao filme em Paris.
O parecer de Jacira de Oliveira, de 24 de janeiro de 1968, foi apenas o primeiro de muitos eventos que marcaram a conturbada trajetória de A chinesa antes de sua chegada às telas brasileiras. Este episódio certamente está na raiz da atenção especial conferida a Godard de que fala a bibliografia mencionada acima [VI]. Após o parecer de Jacira de Oliveira, o filme foi avaliado por um segundo censor, José Madeira, que destacou a “perspectiva comunista chinesa” e a profusão de menções a “figuras internacionais do comunismo”. Diferentemente da colega, Madeira não tomou uma decisão clara: ele sugeriu que o caso fosse encaminhado a oficiais do Exército, mais aptos para avaliar possíveis riscos à segurança nacional.
A questão, no entanto, não chegou a tais instâncias. Dias depois, o chefe da censura Manoel de Souza enviou uma carta ao coronel Florimar Campello, chefe do Departamento de Polícia Federal (DPF), comunicando a proibição. Souza não teve dúvidas: para ele, o filme propunha “uma sequência de debates no sentido da doutrinação política”, logo, “prejudiciais à causa da democracia”. Soa contraditório – e até mesmo grotesco – um censor recorrer à noção de democracia para justificar a proibição de uma obra de arte. Porém, na lógica dos militares no poder, a verdadeira ameaça à democracia era o comunismo, então qualquer medida tomada a fim de contê-lo era vista como essencialmente democrática – até mesmo a implementação de um Estado de exceção.
Pouco após ser decretada, a proibição passou a ser amplamente reportada e criticada na imprensa, atacada por artistas, críticos e jornalistas que argumentavam que os censores não haviam entendido o filme. O diretor da empresa distribuidora, a Companhia Franco-Brasileira, declarou sua indignação em entrevista ao Jornal do Brasil. Segundo ele, a proibição era “incorreta” e “absurda”, uma vez que A chinesa empreendia, justamente, uma crítica paródica à chamada “esquerda festiva”, e havia recebido duras críticas de L’Humanité, o jornal do Partido Comunista Francês [VII]. O diretor afirmava ainda que, caso não obtivesse a revogação da proibição por meio da pressão na imprensa, levaria a Censura Federal à Justiça.
Godard, o ministro e o coronel
Desde o final de 1967, a censura era uma questão particularmente tensa na sociedade brasileira. Diversos artistas e intelectuais, sobretudo os ligados ao teatro, se organizavam, protestavam e recorriam ao ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva buscando reverter decisões dos censores. Do outro lado da disputa, os militares se mostravam intransigentes e defendiam uma rigidez censória ainda maior – um deles era justamente o coronel Florimar Campello. Os embates se acirraram no início de fevereiro de 1968, quando Campello suspendeu a temporada da peça Um bonde chamado desejo (Tennessee Williams, 1947) em Brasília. A partir daquele momento, os protestos e ataques na imprensa se intensificaram. Por todo o Brasil, artistas se reuniam, escreviam manifestos e abaixo-assinados, organizavam passeatas e pediam a demissão de Campello. Foi nesse cenário de tensão que se decretou a interdição de A chinesa. A proibição do filme de Godard surgiu como mais um argumento dos ataques desferidos na imprensa contra a censura.
No entanto, o aparato repressor não cedeu face aos protestos. No dia 19 de fevereiro, o coronel baixou uma portaria na qual reforçava a interdição de A chinesa. Segundo ele, a obra retratava “atos visando à subversão da ordem, bem como debates no sentido de doutrinação política, o que a faz passível de interpretações distorcidas, tornando-se contrária aos interesses nacionais”. Após comunicada, a distribuidora recorreu diretamente ao ministro Gama e Silva e, no dia 6 de março, enviou-lhe uma carta. Juntamente, foram enviados seis textos publicados sobre o filme em diferentes jornais – um deles, inclusive, no periódico francês de direita Le Monde. A argumentação alegava que na França A chinesa fora um “enorme sucesso”, exibido “sem quaisquer restrições de autoridades governamentais” e objeto de críticas favoráveis.
A carta prossegue enfatizando o caráter satírico da obra, o que não permitiria enquadrá-la como uma “propaganda comunista”. Pelo contrário, insistia a distribuidora, o filme denunciava a “quebra de unidade” entre os comunistas russos e chineses e, por isso, desagradou os comunistas do Brasil e de outros países do mundo. Por fim, são citadas quatro matérias de jornais em que se ressalta a reação negativa por parte da esquerda francesa. Outro argumento empregado foi que a proibição, ao invés de garantir a segurança nacional, poderia ser um pretexto para críticas por parte da “imprensa mundial ávida por denegrir [sic] nossas instituições”. Buscando convencer o ministro, a Companhia Franco-Brasileira apelava para a imagem do governo brasileiro no exterior, uma das grandes preocupações do regime militar, que se empenhava em projetar internacionalmente a imagem de um Brasil que vivia em estado de normalidade democrática.
No dia 21 de março, Gama e Silva emitiu seu parecer no qual, finalmente, liberou a obra. Em seu texto, o ministro seguiu o caminho indicado pela Companhia Franco-Brasileira no pedido de recurso, chegando mesmo a citar trechos das reportagens enviadas pela distribuidora. O magistrado afirmou que assistira à película e concluíra que as razões evocadas por Campello eram inválidas. Afinal, dizia ele, A chinesa era uma “obra satírica e destituída de mensagem positiva a favor do marxismo-leninismo”, que denunciava a “divergência irremediável” do mundo comunista, bem como a “inutilidade dos debates dos temas político-ideológicos por jovens utópicos”. Gama e Silva afirmou que A chinesa não representava “qualquer risco à segurança nacional e à formação política de nossa mocidade”, e liberou o filme para todo o território nacional com a classificação etária máxima de dezoito anos. No dia seguinte, seu gabinete enviou carta ao DPF na qual anunciou a decisão final do ministro. Juntamente, foi enviada uma nota manuscrita na qual se exigia que o certificado de liberação do filme fosse expedido com a seguinte “ressalva” (termo sublinhado no documento): “Liberado por decisão do Exmo. Sr. Ministro da Justiça” – conforme as imagens abaixo.
Esse episódio nos oferece um exemplo das negociações que setores da sociedade civil buscavam estabelecer com o Estado autoritário. Naquele momento, a interdição de A chinesa representou um importante capítulo de uma crise interna vivida pela ditadura em torno da censura, e sua liberação representou uma vitória da sociedade civil contra o recrudescimento do serviço censório.
Porém, mesmo após liberado, o filme continuou gerando polêmicas. Sua pré-estreia no Rio de Janeiro, inicialmente marcada para o dia 2 de abril, foi cancelada por imposição de “autoridades militares”, que “aconselharam a não exibição do filme ‘até que se acalmem os ânimos’”. Naquela altura, o Rio vivia o ápice da crise estudantil desencadeada pelo assassinato do estudante Edson Luís, ocorrido apenas cinco dias antes, em 28 de março. Passeatas e manifestações tomavam diariamente as ruas, mas a ditadura não aceitaria abrandar seu aparato repressivo naquele momento, ainda mais em se tratando de um filme que já causara tanta polêmica e resistência.
No final daquele mês, mais uma aparente vitória da classe artística: Campello foi exonerado de seu cargo. No entanto, os acontecimentos que se sucederam ainda em 1968 não permitiram que a sensação de vitória durasse muito tempo. Em novembro, a Presidência da República aprovou um projeto de lei de reformulação da censura, redigido pelo próprio Gama e Silva. A centralização do serviço censório em Brasília se intensificou e a censura de peças teatrais e filmes se tornou ainda mais rigorosa. Pouco depois, no dia 13 de dezembro, foi outorgado o AI-5, também redigido por Gama e Silva, que pôs fim a muitos dos canais de negociação existentes nos quatro primeiros anos do regime militar.
Em nome da moral e dos bons costumes
Cerca de seis meses após as polêmicas envolvendo A chinesa, em julho de 1968, mais uma obra de Godard foi proibida: Uma mulher casada (Une femme mariée, no original), filme lançado em 1964 e que já enfrentara problemas com a censura na França [VIII]. Para a censura brasileira, o filme atentava contra a moral ao retratar um comportamento feminino muito distante daquele esperado pelos setores mais conservadores da sociedade. A distribuidora, Columbia Pictures of Brazil, chegou a recorrer a Gama e Silva, desta vez sem sucesso: passados cinco meses das polêmicas envolvendo A chinesa, o ministro não se dispôs a confrontar a burocracia da Polícia Federal e passar por cima da legislação censória. O momento não era mais o da forte crise de fevereiro-março e o ministro estava agora muito mais próximo do governo federal, o que culminaria, no final do ano, na nova lei de censura e no AI-5. Ademais, com Uma mulher casada, a censura executava aquilo que era sua explícita e legalmente amparada razão de ser: a preservação da “moral e dos bons costumes”. Vale a pena reproduzir o parecer de um dos censores favoráveis à proibição, Constâncio Montebello. O documento é bastante exemplar da moral que norteava o funcionamento ideológico do aparato de repressão cultural da ditadura.
O filme foi liberado apenas em março de 1970, reavaliado pelo mesmo Constâncio Montebello. Curiosamente, ele emitiu um parecer totalmente distinto do anterior. Segundo ele, tal mudança se devia às novas regras do aparato censório, agora mais “liberais” em decorrência da pressão popular. Assim, a proibição de Uma mulher casada não faria mais sentido e, por isso, o censor optou pela liberação. Sua única sugestão foi um corte na legenda de uma fala julgada “grosseira”, na qual a protagonista fazia alusão a sexo anal (“e atrás, também é amor?”).
As normas que regiam o órgão censório podiam até ter abrandado, mas a população brasileira ainda deveria ser privada do contato com certos comportamentos tidos como desviantes. Além disso, é necessário problematizar a afirmação do censor de que a censura estaria mais branda devido a demandas da sociedade civil. Se após a reformulação iniciada no final de 1968 a censura tornou-se mais permissiva em relação a determinadas questões morais, foi porque a preocupação central passou a ser com a censura política, dentro da lógica da Doutrina de Segurança Nacional, intensificada após o AI-5.
A partir do AI-5, a ditadura entrou em seus “anos de chumbo” e, preocupada com os grupos de oposição armada que atuaram até 1974, intensificou a paranoia anticomunista de seu aparato repressivo. Exemplar desse processo é a reavaliação do filme de Godard O desprezo (Le mépris, no original) para exibição na televisão no final de 1973. Em 1969, o filme fora liberado para os cinemas com longos cortes nas sequências de nudez de Brigitte Bardot. Porém, quando reavaliado, duas censoras o julgaram impróprio para a TV por se tratar de um filme de Godard, “o maior expoente do cinema político de mensagem subliminar de teor subversivo”, em cujos filmes “as mensagens subliminares são uma constante”. Aqui, fica evidente a imagem negativa fortemente consolidada a respeito do realizador no aparato censório.
Meses depois, a distribuidora encaminhou pedido de reconsideração, alegando ter realizado uma série de cortes e eliminado qualquer referência ao nome do diretor. Naquele momento, até mesmo o nome do cineasta era considerado uma influência negativa para o público brasileiro, e omitir que uma obra era de autoria de Godard era uma estratégia visando sua liberação. No entanto, o censor que reexaminou a obra em julho de 1974 foi ainda mais radical que as pareceristas anteriores: para ele, O desprezo buscava incitar o espectador à subversão da ordem estabelecida. Ele listou nada menos do que dez falas proferidas pelas personagens nas quais haveria “mensagens de desagregação, de combate à religião, ou sentimento religioso, e à sociedade capitalista, chamada de sociedade de consumo”. Dessa forma, manteve a proibição: “achamos que um filme com todo esse arsenal não deve ser liberado para televisão, pois não há como se proteger os menores em formação das toxinas injetadas a pequenas doses”. O filme foi liberado para a TV apenas em 1979, quando o AI-5 já havia sido revogado.
É evidente como o rigor da avaliação censória e a paranoia anticomunista se intensificaram na década de 1970. Se, em 1969, O desprezo, filme anterior ao engajamento marxista de Godard [IX], incomodara apenas por atentado ao pudor, entre 1973 e 1974 ele foi lido como instrumento de doutrinação comunista. Além disso, a trajetória de O desprezo no órgão censório nos revela outra característica fundamental da política cultural da ditadura. Fica evidente que a liberação de um filme para a televisão seguia critérios muito mais rígidos que no caso do cinema: mais importante do que determinar o que poderia ser visto, era determinar quem poderia ver. O regime estava preocupado sobretudo com a politização da classe trabalhadora, e não com a elite intelectual de esquerda. Assim, os filmes poderiam ser liberados até mesmo sem cortes para os cinemas – especialmente para “cinemas de arte”, festivais e cineclubes – mas não para a televisão, que era a diversão pública de maior alcance popular desde meados dos anos 1960.
Nova República, velhos problemas
Por fim, vale a pena mencionar outro dado acerca da recepção do cinema de Godard no Brasil: ele foi o único artista a ter uma obra censurada já durante a Nova República — em 1986, durante o governo de José Sarney (1985-1990). Dessa vez, o objeto da polêmica foi o filme Eu vos saúdo, Maria (Je vous salue, Marie, no original), de 1983, que transpõe o mito bíblico da imaculada concepção da Virgem Maria para a Suíça contemporânea [X]. Desde seu lançamento nos cinemas franceses, em 1985, o filme despertou a ira de organizações religiosas, que acusavam Godard de blasfêmia e de atentado contra a fé cristã. O Papa João Paulo II se pronunciou publicamente em repúdio à obra. Em diversos países, entidades eclesiásticas tentavam barrar a exibição do filme – e no Brasil não foi diferente. Em outubro de 1985, antes mesmo da película ser distribuída no país, membros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foram falar pessoalmente com Sarney a fim de alertá-lo a respeito da obra. Pressionado por importantes apoiadores de seu governo, Sarney optou pela proibição.
A medida foi recebida com louvor por setores retrógrados da sociedade, suscitando um festival de conservadorismo em cartas enviadas por leitores à imprensa – além de um telegrama enviado ao presidente pelo cantor Roberto Carlos. Contudo, a proibição de Sarney gerou uma vasta onda de protestos por parte da juventude, da classe artística [XI], da intelectualidade, de políticos e de juristas – alcançando uma repercussão ainda maior do que aquela suscitada pela interdição de A chinesa dezoito anos antes. Quase vinte anos se passaram desde o auge da repercussão do cineasta no país e, ainda assim, um filme seu foi capaz de gerar tamanho incômodo e, ao mesmo tempo, vasto engajamento de setores da sociedade civil.
Se nas décadas de 1960 e 1970 Godard foi encarado nos porões burocráticos da ditadura como um imoral doutrinador comunista, em 1986 ele se tornou o inimigo público da grande nação católica. O veto de Sarney não foi revogado e o filme só foi liberado para exibição comercial após a promulgação da Constituição de 1988, que extinguiu a censura (ao menos aquela oficializada sob o poder do Estado). Naquele momento, foi um filme de Godard o responsável por expor as fragilidades democráticas e os resquícios autoritários da nascente Nova República – cada vez mais evidentes nos últimos anos.
NOTAS:
[I] A primeira experiência de Godard como diretor foi em 1954 com o curta-metragem documental Operação concreto (Opération béton), que tratava da construção de uma barragem nos Alpes Suíços. Contudo, considero o início de sua carreira no cinema em 1950, ano de publicação de suas primeiras críticas na Gazette du cinéma. Mesmo com a idade avançada, o cineasta mantinha-se ativo. Seu último filme foi Imagem e palavra (Le livre d’image), que integrou o Festival de Cannes de 2018. Em outubro de 2019, o cineasta foi entrevistado e estampou a capa dos Cahiers du cinéma, revista na qual ele foi um crítico importante e um dos propositores da célebre “política dos autores”. Em março do ano passado, em entrevista ao Figaro, Godard anunciou que estava trabalhando em seus dois últimos filmes e que, então, se aposentaria. Em se tratando de Godard, não duvido que em breve saibamos que tais filmes foram concluídos antes de sua morte voluntária e que serão lançados postumamente. Dessa forma, considero que a carreira cinematográfica de Godard se encerrou apenas com sua morte, tendo durado precisamente setenta e dois anos.
[II] A coluna de Rosita Thomas Lopes, uma célebre atriz à época, era uma mescla de agenda cultural, colunismo social e fofocas do mundo das celebridades.
[III] Em trabalhos clássicos, Ismail Xavier recorreu à figura-chave de Godard como elemento comparativo em análises de filmes de cineastas modernos brasileiros como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Andréa Tonacci. Para Xavier, os filmes de Godard dos anos 1960 representaram um verdadeiro emblema da década. Nessa direção, o autor também destacou a centralidade de Godard nos debates travados entre os críticos brasileiros naquele período, os quais, segundo ele, podiam ser divididos entre “godardianos” e “não godardianos”. Tais considerações podem ser encontradas em diferentes momentos de algumas de suas obras, como: O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência; Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome; Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal; e O cinema brasileiro moderno.
[IV] É importante lembrar que a censura não foi exclusividade da ditadura militar: ela atravessou toda a história brasileira, da Colônia à República, e foi juridicamente extinta apenas na Constituição Federal de 1988. A própria legislação censória que vigorou durante a ditadura era anterior a ela, datada da Constituição de 1946, que se manteve como sua base legal. O que o regime militar empreendeu foi uma intensa burocratização e racionalização do aparato censório, sua centralização na capital federal e uma gradual “politização”, visando combater cada vez mais as mensagens “comunistas” – sem, com isso, excluir a perseguição no âmbito das pautas morais. No caso do cinema, introduzido no Brasil no final do século XIX, há casos de interdições e cortes em filmes já nas primeiras décadas do século XX, realizados tanto por membros da Igreja quanto da polícia. Na década de 1920, a censura cinematográfica começou a se institucionalizar em alguns estados como Rio de Janeiro e São Paulo.
[V] Segundo o jornalista Inimá Simões (1999), Godard era visto como uma espécie de “besta-fera”, o “messias do cinema moderno e subversivo”. Mais recentemente, a historiadora Meize Lucas (2014) afirmou que Godard era “um dos cineastas que tinham suas películas mais cuidadosamente apreciadas” pelos censores.
[VI] Em minha pesquisa de mestrado em História Social, realizada na Universidade de São Paulo entre 2016 e 2018, fui à Coordenação Regional do Distrito Federal do Arquivo Nacional, em Brasília, onde levantei todos os processos de censura produzidos sobre filmes de Godard. Tal documentação foi analisada no quinto capítulo da dissertação, disponível online. Mais recentemente, retomei e reatualizei a discussão em um artigo.
[VII] O filme foi exibido em agosto de 1964 no Festival de Veneza sob o título La femme mariée – em português, A mulher casada. No entanto, quando examinado pela censura francesa no final de setembro, sofreu interdição total. O presidente da comissão censória, em carta ao ministro da Inteligência, acusou o filme de apresentar um ultraje à moral e condenou seu título, que sugeriria, por generalização, que todas as mulheres casadas apresentavam o mesmo comportamento adúltero e obsceno da protagonista. A proibição gerou vasta repercussão na imprensa francesa, que se engajou em defesa de Godard. O cineasta foi pessoalmente negociar com o ministro da Inteligência. Após uma série de mudanças – como a remoção de diversas cenas e a troca do título–, o filme foi liberado no final de novembro de 1964, com classificação etária de dezoito anos (BAECQUE, 2010. p. 266-269).
[VIII] A trajetória de Godard ao longo da década de 1960 costuma ser dividida em ao menos duas fases. Nessa divisão, é apenas em um segundo momento, a partir de Masculino, feminino (1966), que o cinema de Godard teria se politizado, pois foi com esse filme que o cineasta passou a abordar temas políticos stricto sensu como a militância da juventude parisiense, o imperialismo estadunidense, a Guerra do Vietnã e o maoísmo. Essa inflexão na filmografia de Godard esteve associada a mudanças bruscas na trajetória político-ideológica do cineasta. Na primeira metade da década de 1960, Godard era tido no debate francês como um “anarquista de direita”, pessimista e provocador. Foi apenas ao final de 1965 que o realizador se inclinou ideologicamente à esquerda, aproximando- se de militantes do Partido Comunista Francês. No entanto, ao final de 1966, Godard mudou novamente de posição e, atraído pelo maoísmo em ascensão na esquerda francesa, passou a criticar ferozmente o PCF como “revisionista”.
[IX] A Maria de Godard é uma jovem estudante que joga basquete, trabalha em um posto de gasolina e namora José, um taxista infiel e que possui uma amante. José não acredita quando Maria diz que, embora continue virgem, está grávida e a acusa de traição. É necessária a interferência violenta de Gabriel, o anjo enviado por Deus em um avião, para que José aceite a versão de sua namorada, bem como seu destino de padrasto do filho do Senhor. O filme apresenta diversas cenas de nudez da protagonista que, embora não recebam um tratamento erótico, chocaram os mais moralistas.
[X] Caetano Veloso, por exemplo, escreveu um texto para a Folha de S. Paulo em que atacou a “burrice” do telegrama de Roberto Carlos. Para Caetano, defender a censura de Sarney era uma vergonha para a classe artística brasileira, a qual ele convocava a “manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam”.
REFERÊNCIAS:
ANCONA, Luiz. Jean-Luc Godard no Brasil: da recepção à interdição (1961-1970). Dissertação de Mestrado em História Social. São Paulo: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
ANCONA, Luiz. “Uma verdadeira aula de comunismo”: A chinesa (1967) de Jean-Luc Godard e sua interdição no Brasil. Sures, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 16, p. 13-31, jul. 2021.
BAECQUE, Antoine de. Godard : biographie. Paris: Grasset et Fasquelle, 2010.
BAECQUE, Antoine de. Jean-Luc Godard e a crítica do tempo histórico. Traduções Abraccine.
CRISE adia exibição de “A Chinesa”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 17, 3 abr. 1968.
GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). Tese de Doutorado em História Social. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
LOPES, Rosita Thomas. Godard, o mito. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2º cad., p. 3, 14 maio 1968.
LUCAS, Meize. Cinema e censura no Brasil: uma discussão conceitual para além da ditadura. Projeto História, São Paulo, n. 51, p. 190-214, dez. 2014.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora SENAC, 1999.
VELOSO, Caetano. Fora de toda lógica. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 2 mar. 1986.
Créditos da imagem destacada: Brigitte Bardot em cena do filme O desprezo (1963). Reprodução.
Como citar este artigo:
ANCONA, Luiz. O cinema de Godard e a ditadura militar brasileira. História da Ditadura, 29 set. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/ocinemadegodardeaditaduramilitarbrasileira. Acesso em: [inserir data].
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