Oito de março, um manifesto*
Atualizado: 30 de abr. de 2021
Mais um 8 de março chega e eu não vou falar sobre como o mundo ocidental, tal como o conhecemos, foi fundado na construção de uma série de representações debilitantes das mulheres e no domínio sobre seus corpos e sua força reprodutiva. Não vou falar que a transição das formas comunitárias de vida para o capitalismo foi baseada não apenas numa divisão internacional do trabalho, mas em uma divisão sexual do trabalho (que desvalorizou, ao máximo, o trabalho feminino).
Não vou dizer, ainda, que a gênese do mundo moderno foi marcada pela famosa “caça às bruxas” que, para além da violência infligida aos corpos, significou a desarticulação de grande parte das relações de trocas de saberes e solidariedade entre as mulheres, inclusive (sobretudo), as trocas relativas ao controle sobre a concepção. Não vou evocar o fato de que, entre os séculos XVI e XVIII, diversos Estados europeus estabeleceram leis que proibiam a associação entre mulheres, as reuniões de mulheres, a coabitação de mulheres, e que restringiam suas possibilidades de ganhar o próprio sustento, a partir da construção de representações que as infantilizavam enquanto reerguiam e reforçavam a antiga figura do pater familias. Neste 8 de março, não vou dizer que a modernidade associou as mulheres às emoções descontroladas, à natureza e ao espaço privado; ao mesmo tempo em que elegeu a “razão” como fundamento de produção do saber, o domínio da natureza como fonte de progresso, o comedimento como modelo de comportamento e o espaço público como lugar de exercício da cidadania.
Não vou lembrar que, no contexto da famosa Revolução Industrial e do desencadeamento de uma série dispositivos discursivos que visavam à imposição da disciplina nos corpos da nova classe trabalhadora, os dispositivos de controle sobre o corpo feminino foram ainda mais violentos, já que a reprodução de braços humanos era fundamental à acumulação do capital. Não vou enfatizar que, no interior da classe trabalhadora, o trabalho feminino valia menos e as operárias estavam sujeitas a situações constantes de assédio.
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Não quero dizer que, entre os séculos XIV e XIX, o patriarcado ocidental levou sua cosmovisão para todos os lugares que dominou. E que jesuítas ensinavam, a comunidades indígenas – que não conheciam a noção de propriedade ou de superioridade masculina –, que “o homem é o senhor”, que a mulher deveria ser controlada pelo marido e que os filhos não eram “da tribo”, mas pertenciam a cada um dos homens. Neste 8 de março, não quero falar que, por serem associadas ao espaço privado e à emoção, a história contada sobre o mundo ocidental foi, durante muito tempo, uma “história sem mulheres”. Eu também não queria comentar que milhares de artistas, escritoras, intelectuais, cientistas, militantes foram esquecidas pela “história oficial”, já que os mecanismos de produção social de cânones eram, eles também, patriarcais.
Não vou mencionar o fato de que, ainda hoje, mulheres ganham menos que homens, mesmo que ocupem os mesmos cargos; que mulheres ainda andam nas ruas com medo de estupro, ainda pegam taxi com medo de estupro, entram em elevadores com medo de estupro, pegam ônibus com medo de estupro. Aliás, não vou repetir que, em casa, mulheres e meninas também têm medo de estupro. Não vou comentar que a história da indústria do entretenimento no ocidente está permeada de misoginia e violência. Não vou dizer que mulheres continuam tendo que criar filhos sozinhas e que filhos ainda são considerados um impedimento para trabalho (formal) ou estudo. Não vou lembrar que mulheres ainda escondem gravidez no trabalho por medo de serem demitidas. Não vou dizer que o trabalho doméstico ainda é considerado “trabalho de mulher” e que mulheres pobres continuam sendo exploradas no serviço doméstico.
Neste 8 de março, não quero falar sobre nada disso. Hoje, quero relembrar as lutas das mulheres em todos os tempos e sociedades. Quero recordar das lutas das mulheres contra o fascismo e contra os colonialismos. Quero mencionar as lutas das operárias nas fábricas da Europa e dos EUA no início do século XX. Quero lembrar do movimento sufragista desde meados do século XIX. Quero evocar as guerrilheiras curdas, as líderes zapatistas, as militantes camponesas. Quero enfatizar o vigor das lutas das mulheres contra as diferentes formas de autoritarismo no Brasil e no mundo. Quero comemorar a força teórica e política do movimento feminista negro e das reivindicações das mulheres periféricas. Quero lembrar do largo movimento intelectual que, nos anos 50, optou por escrever uma história das mulheres. Quero pensar nas várias estratégias de sobrevivência e criação de laços de solidariedade entre mulheres nas mais diversas sociedades enfrentando diferentes problemas. Quero debater a solidariedade do movimento feminista, em algumas de suas mais difundidas orientações teóricas, em relação a todos os povos e sujeitos silenciados ou subalternizados da história do ocidente. Quero reforçar a potência dos debates feministas que, com todas as suas profundas diferenças internas e embates, nos ajudam a imaginar novos mundos e novas subjetividades. Quero lembrar da resistência cotidiana de cada um de nós. Quero dizer que, nesse 8 de março e por todos os dias de nossas vidas, ativaremos, com alegria e vitalidade, essa força diagonal, essa força das margens, das comunidades clandestinas, criando outras formas de estar no mundo através das fissuras dessa episteme que nos moldou.
Gabriela Theophilo é historiadora e professora de História.
* texto inspirado pela leitura do livro O calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici.
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